Raul achava, por fim, que sim, vinha ali para encontrar-se com o pai. Naquela paisagem, naquele silêncio, naquela paz. Raciocinando sobre isso, foi que, certa vez, a irmã havia perguntado. Tu vai ao cemitério por causa da saudade de papai, é? Não. De estalo respondeu. E se for, emendou?
Eram práticos, os três, a mãe, a irmã e o menino de 15 anos. Os dois filhos sabiam que haviam herdado dos pais toda essa praticidade. A relação do casal era prática. No sentido da resolução dos problemas mais intrincados, quando surgiam, entre os dois. Não no sentido da superficialidade. Não havia superficialidade entre eles. Ora bolas, diria a avó. Não havia, digo eu. Ponto.
Ele deduzira que não precisaria ir a cemitério nenhum, principalmente ao que ia, para rememorar o que fosse. Mas ia, e estava acabado. A irmã não mais o importunou. Certa vez, viu a mãe chorando. Era um dia de chuva. Limpava as lágrimas. Ele se abraçou a ela. Ela lhe segurou os braços que a enlaçavam. Papai faz muita falta, ele disse. Pois é, ela falou. Para isso, ele não nos preparou.
O menino queria dizer que ele os havia preparado para o que acabou por ocorrer, quer dizer, sua partida precoce. Mas para a falta que fazia, não tinha como. A mãe agachou-se e se abraçaram um ao outro. Raul era um homem raro. Você já visitou lá a cova dele, mãe? Não. Não é preciso, ela disse. Você quando vai lá, visita? Não, mãe, não é preciso. Riram os dois.
Um dia, à mesa, enquanto a mãe se servia, perguntara ao marido: o que você faz indo tanto a cemitério? Não vou tanto, ele disse, vou num só. A mãe fez cara de deboche. Ele riu. Sim, mas para fazer o quê? Andar, meditar, ver, observar. Falou aasim pausado. Parecia olhar através. Que mania besta. E para que leva o menino? Para que se acostume com o lugar onde, um dia, vamos todos estar.
Achavam no pai essa única excentricidade. Parceiro dele era o filho. Evidente que não associava à mania do pai qualquer despiste e não se esperava que fosse preparação para desfecho trágico. Nenhum deles assim interpretava, senão o menino. E nisso era intuitivo. Talvez fosse essa a razão por que, frequentando ainda o campo, poucas vezes se avizinhasse do túmulo do pai.
Excentricidade. Toda a família absorveu igual a perda. Afagaram-se e se uniram em torno do colapso. É claro que a personalidade dele ajudou. E, no final das contas, sua intimidade com jazigos, tumbas e mausoléus, no campo dos idos, acabou por ajudar. Diante da morte, mesmo que diminuto, qualquer conforto ajuda.
Mas não era o caso da família. Porque ele os preparara para qualquer trauma. A vida que viveram era um dom. Viviam uma vida que incluía o preparo para a morte. Não que fosse assim compassiva. Morte é sempre morte. Mas a intensidade com que viviam, compensava o incompensável.
E todos os três lembravam que, em função disso mesmo, a morte dele foi menos dolorosa. Ficaram juntos o tempo todo. As pessoas vinham e os consolavam. Havia muitos amigos. Havia muitos parentes. Ele era um gerente de lojas. Seu jeitão o tornava essencial para a rede, amável com todos os colaboradores e clientes. Um achado para os patrões e chefes imediatos.
Sua genialidade, bom humor e criatividade eram seu principal trunfo. Meio atlético, futebol todo finalzinho de semana. Sexta à noite. Sábado e domingo eram exclusivamente da família. Shopping e piscina. Não necessariamente nessa ordem. Um dia, um tio convidou para irem a uma igreja. Era simpático a qualquer proposta familiar. Bastava representar agregação.
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