quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

A última noite - Parte 4

   Esperou. Religião é um paliativo. Dependendo do freguês, vira pura hipocrisia. A coisa é de dentro para fora. Quem acha que a formalidade da religião, como roupa bonita, vai cobrir a nudez, de nudez eu entendo e de máscara também. 

     Pensou em comentar sobre o nível do diálogo. Assustou-se com esse pensamento. De onde lhe vinha a ideia de fazer uma análise  crítica. Não combinava com o seu perfil. Foi quando pensou (e lembrou) de outras Pessoas que poderiam estar presentes ou, pelo menos, participando da conversa. 

     Viu de novo, desta vez nos olhos, o traço de riso no rosto do Ancião. Deteve-se, desta vez. Não sabia direito que sentimento abrigar, lutando intimamente em como aprofundar e mesmo demonstrar simpatia pelo Seu interlocutor.

     Fique à vontade com seus sentimentos. Quanto a outros, presentes aqui, não há. Como também esses recursos aos quais os humanos se acostumaram, perda da privacidade e vigilância contínua. A conversa aqui é privada, minha privacidade é insondável e não a reparto com ninguém e, quanto a alimentar simpatia por mim, sempre foi uma oferta contínua e permanente a toda a humanidade.

     Quanto aos outros dois, de que você lembrou, e deve ter sido por causa da nossa conversa mencionar religião, você deve saber duas coisas, aliás, fáceis para qualquer um saber. Que nada tem a ver com religião. Meu instrumento para me mostrar nunca foi religião. Mas se pensam serem necessárias, se não resistem  --- para usar um linguajar tangível a vocês --- se não resistem à tentação, inventem suas religiões, mas não se percam dentro delas, inventando, em meu nome, coisas que nunca prescrevi, ao menos disse ou que nunca legitimei.

     Isso vale para todos os seres humanos, de todos os quadrantes do planeta, e para qualquer religião que tenham inventado. Mas voltando à nossa linha de raciocínio, somos Um. Os outros dois, de quem você agora sente falta, como Pessoa, não participam desta fase. O papel e função específica de cada um é outro e outra.

     Aqui, a conversa é com o Juiz. Ao ouvir esse grau de vocábulo, ao mesmo tempo definidor da Pessoa e do ato em si, de toda a cena e seu desenrolar, pensou em se assustar, ao mesmo tempo que achou desnecessário. E mais uma vez, ao mesmo tempo que travou, no íntimo, foi tomado de uma paz, de que um dia, há muito tempo, se é que agora fazia diferença, ele ouvira falar. 

      Faz toda a diferença, ouvia, agora, do Ancião. Vamos por partes. Primeiro, sobre o termo "juiz", que apliquei a esse e nesse contexto, eu tenho muito apreço pelas palavras e suas definições. Eu as guardo todas e sempre trago à memória o seu valor e o empenho com que foram ditas. Por isso esta antesala. Ninguém avança adiante sem conferir comigo toda a palavra um dia empenhada. 

     E tem mais, para Mim, palavra, pensamento e ação têm o mesmo valor. Ninguém escapa dessa conferência e desse diálogo. Ponto seguinte: sim, os Outros dois não estão aqui, mas você está aqui por eles. Não há diálogo ou relação comigo sem a mediação deles. Eu até posso dizer, sem Minha mediação neles. Porque, e você já deve saber, pelo menos intuitivamente, Eu e cada um deles somos Um.

     Eu digo intuitivamente e menciono mediação, porque era necessário ser Homem para alcançar homens e mulheres e era necessário ser Espírito para formar nos demais homens e mulheres o que Eu mesmo, como Homem, fiz. O Espírito, de dentro para fora, forma no ser humano o que Eu mesmo, como Homem, fiz, quer dizer, mais nitidamente ainda, o que Eu Sou. Entendeu? Fui claro? Se preferir, posso perguntar de outra forma: Fomos claros?

      Ele esperou um pouco, ainda pensando. O Ancião replicou: a tarefa de pensar nisso é de todo ser humano. Ah, sim: ainda atropelando seu raciocínio, faltou dizer que sim, quer dizer, não, os dois não estão presentes aqui, em Pessoa, mas, para você estar aqui, e aí e agora, estão, sim, presentes em você. 

     Como que ohou para si mesmo, voltou assustado mirando o Ancião, quase infartou de emoção, se ainda pudesse infartar-se, e não precisou dizer o que o pensamento palidamente esboçava, porque o Ancião disse, e agora pôde ver a sua face, na profundidade de seu olhar, como até agora nunca antes nessa conversa.

     Com ar de riso, disse o Ancião, sim, estou dentro de você. Nunca estaria aqui e nunca estaríamos cara a cara, se você não acolhesse o que fizemos, cada um de nós em separado e como Um por você. Ele achou que ia chorar. Pensou se ainda podia chorar. Rir e chorar faz parte. Lembra lá, da sua religião, repetirem para você "bem-aventurado os que choram?". Rir e chorar faz parte.

     Me sinto outro. Demorou, respondeu o Ancião. Não, espera, ainda estão na minha mente um monte de coisas... um monte de lixo. Há um lixão em mim. Não há mais, respondeu o Ancião. Memória dele sim, mas o efeito dele não mais. As coisas velhas já passaram, lembra desta frase lá, da sua religião. Não, ele não lembrava.

     Não precisava eu ter morrido xingando e blasfemando. Sim, concordo. Blasfêmia contra Mim, é perda de tempo. Cansa o freguês, escandaliza alguns que ouvem e trabalha contra quem diz. Entendeu? Não que eu queira manter Minha imagem: não preciso disso. Mas acalentar no coração uma chama, ainda que tênue, para Me conhecer, é muito bom para o ser humano. Como diz no Livro, basta uma fagulha (de tênue esperança) para um grande incêndio, quer dizer, Eu dentro e o efeito disso. 

    

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