terça-feira, 31 de maio de 2016

Especial


    Dorcas.

    Que caminhos percorres, Dorcas? Por onde te vejo caminhar?
     Ha ha, você contou que caminhava pelos alicerces da igreja em Nilópolis, quando teu pai, o vô Tula ajudava na construção.
    Ei, Dorcas, você me contou, quando caminhava no chão de folhas, chão macio sobre terra batida, enfeite estranho do dia de barracas na quermesse para fundos das obras do velho templo da Mena Barreto.
    Alicerce de igreja, tudo a ver. Você, Dorcas, combina com alicerce de fé. Que caminhos percorres? Acho que sobes e desces, terra batida, o chão do morro da Dr. Rufino, idas e voltas à igreja, desde muito cedo aprendias e ensinavas tudo o que aprendias.
    Ei, Dorcas, que  caminhos?
    Alfabetizavas, em casa, a criançada da vizinhança, na velha mesa ovalada, lembram, primos mais velhos? E depois ajudavas, com mais Merinho e Eber o sustento da casa, Natal de rico, comenta seu noivo, Cid, já em 1949, pelo pouco que sobejou e permitiu mesa farta.
      Que caminhos, Dorcas? Retornas em 12 de março de 1956, completavas 26 anos e vinhas do sepultamento de Cid, o primeiro nascido, terceiro parto que vinga após dois abortos espontâneos.
       Ora, Dorcas, que caminhos. Voltas dos Servidores, apelido do HSE onde estiveste, fazendo média no plantão lá na enfermaria da ortopedia, 6o andar, onde Cid Mauro esteve, de junho a setembro de 1967, internado, sob risco de perder a perna.
      Esse menino que ensinaste a guiar pelos mesmos caminhos, igreja, escola, desde mesmo tenra idade, no ônibus Cascadura-Nilópolis, você pro Nilopolitano, Curso Normal, ele pra o Filgueiras, Jardim de Infância, idos de 1963.
      Que caminhos, Dorcas: marido funcionário público, você contratada para Belford Roxo, Eden, Nilópolis, acho que até Queimados e Nova Iguaçu tentou.
      O menino vai pegar bronquite, disse o médico. Oração, com Cid e com o menino. Casa alugada em Cascadura, umidade ingrata subindo pela parede. Apareceu, apareceu não, Deus proveu, no Méier - que luxo, na época- uma saída.
       Lá vai Dorcas, pernas a fio, mascate de roupas e joias para ajudar a quitar o financiamento pela Caixa. Quantos caminhos. Moisés em Paracambi, Cardoso em Água Santa, sem benzimento, eram os fornecedores.
        Caminhos pela Denominação. Ah, Dorcas, sua Denominação: me mostra alguém que a prezasse e amasse e defendesse tanto quanto você, mostra, que eu não acredito.
      Caminhos por Nilópolis, caminhos por Cascadura: dobrávamos ali na Ernani Cardoso, saindo da Mendes de Aguiar, cortávamos pela vila, ladeando a horta - ha ha, eu rasgava e degustava nacos de couve - assim fizemos juntos até que, a partir de 1967, já no Meier, vínhamos, dominicalmente, de 667, Meier-Cascadura.
       Ultimamente, já uma anciã, os caminhos te levavam às festas, como você é festeira e visitadeira, todas as festas de filhos de primos: não perdeu uma, eu perdi todas.
       Ficava sabendo por meio dos teus telefonemas ao Acre, sim, aonde tuas pernas te levaram, pelo menos uma vez por ano, nos 21 anos que lá eu já vivo.
       Por que caminhos chegamos juntos ao Cardoso Fontes? Será, Dorcas, que vamos nos separar? Por quanto tempo? Quisera eu pisar mais rente suas pisadas.
       Dona Dorcas. Eu estava te chamando assim na enfermaria. Uma das broncas mais recentes, porque está me chamando assim? Reverência, dona Dorcas. Me chama de mãe. Tá bem, dona Dorcas. Você é mesmo minha mãe.
   

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Mal traçadas linhas 29


        As não escritas.

       Muitas coisas fez Jesus que não estão escritas neste livro. João Apóstolo anota esta observação ao final do Evangelho que escreveu.

       Bem, confabular, a respeito, é pura digressão. Ora, que demais coisas é possível imaginar Jesus fazendo, que não foram escritas? Porém, sem medo de exagerar é, sim, possível e permitido alinhar algumas.

       Já falei aqui de suas, do Mestre, gargalhadas. Certamente soavam sonoras por ali, à noite e à luz de fogueiras, às margens do Lago de Genesaré. Como, por exemplo, daquela vez em que devem ter recordado, naquele mesmo lago, ter acordado Jesus, que cochilava no barco, ninado pelo jogo das águas.

         Mas eram solavancos que não acordavam o Mestre, embora o mar, como diz o autor sacro, estivesse encapelado. Amedrontados, após seguidas tentativas de evitar que o barco fizesse água, os experientes pescadores pediram arrego e saíram à cata do milagre.

        Um desplante, incomodar o Mestre ali, a roncar sonoro, a ressonar ao jogo da procela, de novo o autor sacro, mas insistiram pois, afinal, com ele tudo se resolvia. Ora, afinal não era Jesus? E o acordaram. Está lá no Evangelho, ele deu uma bronca no vento, outra no mar e a seguinte no grupo: homens de pequena fé.

         Daí se deduzem algumas lições: (1) quem sai à cata de milagre que lhe compense o esforço, é porque falha na fé; (2) se Jesus está tranquilo, fique tranquilo; caso ele se alvoroce, então espere o comando ou fique na sua, como foi com os vendilhões, no Templo; (3) se o Mestre estiver na sesta, cochilando, favor não lhe interromper o sono.

        Sem dúvida ao lembrar uma cena dessas, devem ter rido muito e feito Jesus sorrir e ainda emendar outras lições sobre fé, ansiedade, medo e falta de paz mesmo sabendo-o perto. Oi, Jesus.

       Outras gargalhadas, certamente, ao recordarem-se, foi quando repassaram entre si, no grupo, pelo menos outras duas situações entre tantas outras: aquela presença fantásmica do Mestre andando sobre as águas e outra, ainda com cenário em Genesaré, quando Pedro pagou o mico de quase afundar com tudo, ou melhor, todo nas águas escuras, resgatado que foi pelo próprio Jesus.

        Devem ter relacionado a reação de cada um, lembrando caras e bocas, sustos e constrangimentos. Um rindo do outro, anotados os detalhes, gozadores que eram, atributo este universal a qualquer povo ou cultura.

          E terá Jesus ressuscitado outros, além dos três casos anotados? Muitas outras curas, certamente. Mais do que os cinco sermões anotados em Mateus, segundo os comentaristas, é certo que formulou. Discursos e polêmicas, além dos anotados pelo mesmo João, também sim. Outras variadas e diversas parábolas foram proferidas, para além das já registradas.

       João fala acertado sobre esse rol de coisas não reveladas. Uma montanha de outros documentos, denominados "evangelhos apócrifos" ou "pseudoepígrafos" foram escritos, na sua maioria inventando coisas outras. Atualmente, costumam ser valorizados em polêmicas  irrelevantes sobre falso e verdadeiro a respeito de Jesus.

        O que João fala acertado e ao que se propôs quando reuniu sua seleção de relatos, foi dizer o objetivo: para que creiam e tenhais vida em seu nome, ou seja, vida no nome de Jesus. Para isso, bastam os relatos conhecidos. O restante, pura especulação, que não precisa ser estéril e nem absurda.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Mal traçadas linhas 28


       Mas estes foram escritos.

      Este é João. Conclui seu Evangelho chamando a atenção, ao mesmo tempo, para as coisas que Jesus disse e fez, as que ele, como apóstolo, registrou, e aquelas absolutamente não registradas.

      Poderíamos, aqui, refletir sobre essas não registradas. Numa outra oportunidade. Agora desejo refletir sobre essas registradas. Experiências anotadas, enfáticas ao Mestre, certamente, como tudo o que fez, mas notáveis também a João, que as selecionou.

      A Bíblia é um compêndio de experiências dessa natureza. Selecionadas para registro, dizem respeito e têm seu significado na origem, a quem as selecionou e para quem são direcionadas.

       Interessante perguntar, então, qual a relevância delas e se, no trânsito da origem à finalidade conservam ou perderam seu efeito. Isso porque é possível floreá-las, divagar sobre elas e até poetizá-las, de modo a que soem refinadamente belas ao ouvido, porém inócuas.

       O problema delas começa na origem. Não discuto aqui não é nem sua credibilidade ou historicidade, lógica ou possibilidade científica, pois até milagres ocorrem, mas origem no sentido de ser ponto de contato Deus-homem, pretexto e temática de todas essas experiências.

       Segundo tópico, é como foram anotadas. Aqui desenha-se um rol de ciências do texto que, enfileiradas, produziram já toda uma biblioteca de títulos e que já completam um século de existência. São as diversas críticas da forma, da redação, da transmissão oral dos relatos, crítica histórica, enfim.

      E o terceiro ponto somos nós, os receptores. Que trato dar aos relatos? Vencidas todas as resistências e todo o empate (e embate) relacionado à produção e vivência do relato, o que dizer, ao final, do modo como será recebido pelos destinatários últimos?

       Floreados, enfeitados poeticamente ou refinados em oratória, na produção final e transmissão dos relatos bíblicos, que resultado e propósito, enfim, terão, considerada a finalidade para que foram produzidos e tradicionados?

      João mesmo responde: para que creiam. Relatos e experiêncIas bíblicas foram produzidos e escritos para conduzir à fé, discorrer sobre sua natureza e sondar sobre todas as suas possiblidades. Tonar possível conhecer o ponto de origem, onde se torna possível e real o contato Deus-homem e suas consequências.

       Nada de diletante. Não há, somente, prazer ou deleite retórico em ouvir sobre eles ou, de um modo elaborado ou refinado, discorrer sobre eles. Têm uma finalidade precípua, que é tonar possível contato, consequente comunhão e caminhar conjunto Deus-homem.

      O que têm a dizer sobre Deus? O que têm a dizer sobre mim e Deus? O que têm a dIzer sobre minha comunhão com Deus? O que têm a dIzer sobre as consequências dessa relação? Origem, transmissão e recepção desses textos, para uma precípua finalidade, como diz João: para que creiam e tenhais vida em Seu nome.

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Artigos soltos 6


         A congregação no deserto

         Há pessoas que não entendem o valor do Antigo Testamento. Há dois erros básicos, dois extremos: acepção literal de todo o texto, ou desprezo exagerado do todo ou partes.

        Por exemplo, aspectos da lei cerimonial da religião judaica daqueles tempos idos, não têm hoje prevalência, como sacrifícios de animais. Já aspectos da lei moral, como o Decálogo, têm valor universal e permanente.

        No sentido amplo, essa parte mais antiga da Bíblia expõe os traços do caráter se Deus, nos traços dos diversos textos e histórias descritas. Outro traço distintivo, são os aspectos culturais específicos da época, não aplicáveis na época atual como, por exemplo, os relacionados à posição da mulher.

         A leitura do Antigo Testamento sempre será proveitosa, dependendo do ponto de partida para a abordagem do todo. Uma vez acertada a visada, é possível ajustar ao contexto e retirar lições apropriadas, inclusive, para o dia de hoje.

         Exemplo disso é encarar a congregação do deserto, como assim a denomina o profeta Amós, como figura correlata com a congregação do Novo Testamento, nele denominada igreja.

        Do mesmo modo que à igreja, o autor de Hebreus também indica que àquela congregação foram anunciadas as boas novas, palavra que a muitos não aproveitou, não acompanhada por fé naqueles que a ouviram.

          Como caracteriza Pedro Apóstolo em sua carta com relação à igreja, o autor de Êxodo 19 também aponta, no Pacto do Sinai, a indicação que, na aliança feita com Deus, o povo Lhe seria nação santa,  como paradigma de conduta diante dEle aos povos, e reino de sacerdotes, como mediadores de bênçãos às nações.

         Ainda em Êxodo 33, em meio à drástica crise no deserto, após o povo, diante da covardia de Arão, ter hipotecado culto ao bezerro de ouro, quando então Moisés intercede, destacando que o distintivo de Israel como nação é caminhar e ter Deus caminhando no meio de povo, característica plena também da igreja.

        "Pois como se há de saber que achamos graça aos teus olhos, eu e o teu povo? Não é, porventura, em andares conosco, de maneira que somos separados, eu e o teu povo, de todos os povos da terra?", argumentou Moisés.
         
        É das figuras a mais linda visualizar, na descrição em Números, o acampamento das tendas no deserto no entorno do Tabernáculo ao centro, tenda central, construída segundo o modelo concedido no monte, simbolizando a presença real de Deus no meio do povo, com ele acampado e com ele peregrino.

        Nada mais nítido com relação ao sentido bíblico de ser igreja, do que compreender que é carregar consigo a própria tenda sobre as costas, armá-la e desarmá-la onde for, sem esquecer que o mais determinante é a marca do testemunho e a presença real de Deus no viver.

        Ao longo da história, a igreja que havia começado nos átrios do Templo em Jerusalém, nas pradarias da Galileia, foi hóspede da sinagoga, instalou-se de casa em casa e até à beira do rio em Filipos, antes que procurasse a discutível grandeza de catedrais, deveria primeiro confirmar-se, no crente, como edifício erguido e dedicado à morada de Deus e templo do Espirito.

        Deus não habita em templos feitos por mãos humanas. Habita homems e mulheres, aspirou a esse lugar tornado santo, desde os dias de peregrinação da congregação no deserto, época a que o profeta Oseias chamou de namoro.

        Deus, enamorado pelos homens e mulheres, desejou comunhão em habitar neles, caminhando como peregrino nesse mundo, habitando em tendas, armando e desarmando Sua tenda nessa caminhada e, para isso, fez-Se homem, definitivamente, num batismo permanente de comunhão.

         Não há figura mais linda do que essa, no texto do Antigo Testamento, da Tenda da Congregação, tabernáculo erguido para tipificar a disposição de Deus em residir entre os homens, mais especificamente no homem/mulher.

sábado, 21 de maio de 2016

Mal traçadas linhas 27


       O sentido de missão

       Creio ser, pelo pouco que sei, que tanto nas forças armadas quanto no Bope, a tropa tornada mais conhecida na mídia pelo filme Tropa de Elite, que "missão dada é missão cumprida" tornou-se o mote definitivo do sentido de missão.

       Um morreu por todos, para que os que vivem, não vivam mais para si mesmos. A Bíblia, na sua fraseologia, depara dilemas para seus leitores. Em seus versículos, basta um deles, para que o sentido de missão que o Livro sugere fique claro, claríssimo, e o que eu costumo chamar "senso do absurdo", do máximo e definitivo absurdo, revele-se em suas páginas.

        Explico. No versículo acima, a Bíblia propõe uma simples troca. Hipoteca de vida por vida. Ela sugere que seu personagem principal, Jesus, trazia um sentidio de missão que haveria de cumprir, até a morte. Quer dizer, nem a morte o assustaria ou o afastaria desse senso de missão.

          Ainda, o sentido de missão estaria específica e precipuamente definido na sua, dEle, morte e ressurreição. O sentido do Livro, seu ponto central e único prescrito é comprometer todos, qualquer um, qualquer uma, cada qual, individualmente, no mesmo sentido de missão com, de, em Jesus. Trata-se de um batismo, um batismo de missão, morte e ressurreição em vida, em Cristo, na mesma morte e ressurreição de Cristo.

         Divisado está o senso do absurdo do Livro: tudo ou nada. É isso ou nada. Não há outro sentido para ou no Livro. Lucas anota em seu Evangelho, talvez traço reconhecido por ele ou identificado por um dos mediadores de seu relato, que Jesus, certa feita, demonstrou no semblante resolução de que nada o afastaria o impediria de caminhar na direção de Jerusalém.

        Um visionário. Hipoteca de vida. A Bíblia afirma, no fulcro principal de seu conteúdo, que há um batismo em Jesus Cristo, nessa mesma resolução, que compromete, definitivamente, a vida de quem o assume, para que os que vivam, não vivam mais para si mesmos.

        Paulo Apóstolo exergou, entendeu e procurou aplicar isso a sua própria vida. Certa vez, afirmou que em nada considerava para si relevante ou importante sua vida, se não cumprisse esse sentido de missão, que ele chamou ministério, serviço.

        Algumas pessoas tomam para si esse aspecto que transparece no texto das Escrituras e saem, por aí, dizendo-se vocacionadas, chamadas, marcadas por assumir esse sentido de missão. Problema delas. A Bíblia foi escrita para isso e lhes dá esse direito.

         Terão que, de agora em diante e diante, confrontando-se com esse senso de batismo, entender e, inteligente e diligentemente interpretar sua vida nesse sentido de missão: missão dada é missão cumprida. Quem enxerga, entende e quer para si, é porque também enxergou e entendeu, pelas Escrituras, a missão do Espírito.

        Porque Jesus, exegeta prático da missão do Espírito, afirmou que derramaria o Espírito porque este veio glorificá-lo. Ou, se preferir outra leitura, Jesus veio derramar o Espírito para glorificá-lo. Ainda, somente é possível batismo em Jesus e tornar-se pleno do sentido de missão uma vez batizado no e pelo Espírito Santo, que é o batismo em Jesus Cristo.

        Trazem consigo esse sentido de missão os que estão plenos no Espírito. Ele é o Espírito de missão. Espírito Santo não é diletante. Jesus foi homem cheio do Espírito. Na linguagem dos Evangelistas, guiado, conduzido, até mesmo, atrevidamente disse Marcos, impelido pelo Espírito.

       Missão dada é missão cumprida. Nada na vida deve ou pode distrair a atenção, seduzir olhar e senso de direção de uma resolução de enxergar, entender e, inteligente e diligentemente cumprir esse sentido de missão: missão dada é missão cumprida.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Mal traçadas linhas 26


 Caráter e ortodoxia.

      Tudo a ver. Quer dizer, nada a ver. Tudo a ver, discutir isso. Nada a ver, porque ortodoxia não incute caráter. Inquisidores eram ortodoxos. Aliás, impunham aos outros ser como julgavam obrigatório ser, sob pena de tortura e morte, devidamente registradas em ata.

       Não acho negativo o papel e função dela. Na verdade, ortodoxia é método e organização. Quem crê, precisa de um corpo estruturado e de um sistema assim bem definido.

        Ora, isso é uma coisa: eu crer e ter organizada, inteligentemente, minha confissão de fé, rol de doutrinas e visão bíblica peculiar. Outra, diferente, seria eu impor a outros essas peculiaridades ou achar que somente por essa ótica é possível enxergar o mundo.

        E mais distintivo ainda é associar ortodoxia a caráter. Uma coisa não depende da outra. É possível encontrar canalhas plenamente ortodoxos, sobeja e suficientemente. Ocorre mais ou menos aquela máxima: não é que todo ortodoxo seja canalha, mas há canalhas ortodoxos.

        Caráter vem de outra raiz. Aliás, pode-se abusar da mesma fórmula rasteira de máximas, para dizer: quem tem caráter, terá chance de ser um saudável ortodoxo; mas nem todo ortodoxo tem chance de ter caráter. É matemático: se, e somente se for de caráter, será verdadeira e saudavelmente ortodoxo.

       A recíproca não é verdadeira. Há quem seja ortodoxo e não tenha caráter. Ortodoxia não depura o caráter. Este é construção à parte, tessitura de outro viés. Na Bíblia, é determinante e determinado por  Deus, pessoal e impreterivelmente.

       No início das histórias do Livro, Deus interpela Caim, padrinho de todos os homicidas, para forjar nele caráter. Pelo menos, três aspectos foram sugeridos: (1) o homem é capaz de engendrar, por si, desejos que são contra ele e contra o próximo; (2) pode e deve desenvolver capacidade de dominar esses impulsos; (3) implícito ficou no diálogo, caso queira dominar, terá Deus como parceiro, caso não, seguirá seu rumo sozinho, entregue a si mesmo.

       Caráter, na Bíblia, para ser restaurado no ser humano, homem ou mulher, é obra de Deus. Fez-nos a Sua imagem e semelhança e, segundo escreveu Paulo Apóstolo, Deus nos refaz, poema de Sua autoria se, e somente se recriados em Cristo como matriz.

        Simplesmente, para a Bíblia, só tem um jeito para essa história de regeneração de caráter. O nome já indica: re + gerar significa "gerar de novo". Isso mesmo, Deus cria de novo, do zero, a partir e em Jesus. Deus o autor, o batismo em Jesus Cristo a raiz e caráter torna-se o resultado.

        Por isso a Bíblia apresenta nomenclatura variada, nenhuma delas indicando linguagem figurada, ou seja, metáfora: feição e formação de caráter na Bíblia é, literalmente falando, novo nascimento, morte/ressurreição em Cristo, regeneração.

         Nada a ver, tudo a ver. Venha com tua ortodoxia, que o Livro te confronta com a possibilidade de teres regenerado o teu caráter. Então, uma vez assim revestido, a chance de encarar ortodoxia do modo positivo, sadio e mediador de bênçãos será flagrante e única possível.

      

terça-feira, 17 de maio de 2016

Salmos - Crônicas - 2


      Crônica 4 - Salmo 8

       Alguns salmos se destacam entre os demais. Seja por sua temática, organização do assunto ou mesmo a beleza e inspiração do autor em sua tessitura.

      Exemplo desses é o Salmo 8. Começa com uma invocação, figura de linguagem chamada apóstrofe, ao nome do Senhor, repetida como refrão no final marcando, entre si, o que o autor tem a dizer.

      Então segue respondendo as razões por que invoca o nome do Senhor, designando-o magnífico, ou seja, explicitamente digno de sua grandeza. Seguem, pois, as razões.

       Estrutura: (1) invocação do nome e proclamação de Sua grandeza, 8:1a; (2) razões por que é grande esse nome, 8:1b-2; (3) o que é o homem, diante da grandeza de Deus; 8:3-8. Nessa segunda divisão, fragilidade e, ao mesmo tempo, mérito conferido por Deus ao homem, Sua excelsa criação, são indicados:

         (a) fragilidade do homem frente a criação de Deus, 8:3-4; (b) grandeza conferida por Deus ao homem, como destaque na criação, 8:5; (b.1) domínio sobre o restante da criação, 8:6; (b.2) sustento a partir dos recursos da mesma criação, 8:7, incluída a preservação dela, 8:8. Repetição da invocação como refrão ao final, 8:9.

        Este salmo classifica-se entre os messiânicos, pois a referência ao homem enquadra-se na condição de todos os homens, incluída a experiência do Filho do homem, Jesus. Na epístola aos Hebreus 2:5-10, o autor explica em que sentido Jesus se coloca abaixo doa anjos, precipuamente na experiência da morte, nunca experimentada por nenhum deles.

Salmos - Crônicas - 1


        Crónica 3 - Salmo 4

        Escolha aleatória, este salmo está ligado à memória de criança, época em que meu pai ensinou-me seu último versículo. Trata-se de uma oração, ao mesmo tempo feita, registrada e publicadas as lições aprendidas.

        Quase que não é possível agrupar versículos em tópicos temáticos, em sua estrutura, visto que as conclusões são expostas num ritmo em profusão, do primeiro ao último versículo.

       Escolhemos agrupar as lições, à medida em que o salmista as deduz a partir de sua experiência pessoal: (1) experiência pessoal com Deus em oração, 4:1; (2) lições aprendidas e exortações deduzidas: 4:2-6; (3) conclusões pessoais e consequente conforto recebidos, 4:7-8.

       As lições podem ser assim subdivididas, em 4:2-6: (a) advertência contra a inversão de valores do ser humano, 4:2; (b) experiência individual de apego ao Senhor, 4:3; (c) prevenção contra a ansiedade e exortação à paciência, 4:4-5; (d) exortação contra a dúvida de que Deus sempre responda com bondade, 4:6.

       A conclusão de todo o salmo aborda duas coisas essenciais que, mormente na vida do homem contemporâneo, a perda ou a tentativa desesperada do ganho delas produz grande angústia: (1) alegria, felicidade; (2) paz e tranquilidade no sono.

       Segue-se uma sequência de salmos que são orações, do Salmo 5 ao 7, que sugiro, como exercício, sejam lidos e sua estrutura, ou seja, o modo como, em cada oração, a temática se desdobra por assunto, seja anotado por você, leitor.

Mal traçadas linhas 25


      Lázaro, sai para fora.

      Por detrás destas palavras é que ocorreu o milagre. A ciência deve uma explicação, de como células degeneradas se regeneram e um cadáver putrefato se ergue e se apresenta vivo.

       É certo que há quem diga que o texto não passa de uma elaborada construção teológico-literária, cujo objetivo, dentro do contexto maior do Evangelho de João, é estabelecer um perfil de Jesus como capaz dos milagres descritos.

         Mas não necessariamente que os tenha exercido. No final das contas, não se trata de fatos, mas sugestão deles. Ora, impossível florear sobre esses textos, atribuindo-lhes a importância que for, negando-lhes a autenticidade dos fatos.

         Se não são factuais, sua credibilidade fica comprometida e a narrativa bíblica prejudicada. Se não é verdadeira com relação aos fatos históricos, por que seria com relação aos fatos doutrinários e metafísicos?

        Se Jesus não ressuscitou Lázaro ou, pelo menos, a filha de Jairo e o filho único da viúva, por que devo acreditar na afirmação bíblica de que vai me ressuscitar? Refiro-me às afirmações bíblicas de que se deram as aqui citadas e que se darão essas outras ressurreições prometidas.

         O fato é que há uma tremenda resistência em acreditar na possibilidade real da concretude desses sinais. Isso não se deve ao espírito do Livro, pensado e escrito para que, de fato, as histórias e as respectivas argumentações decorrentes fossem encaradas de modo literal.

         Essa rejeição e dissociação entre as duas vertentes, descrição de milagres X parte doutrinário-argumentativa, vem de fora para dentro do Livro, colocada como ideia dos tempos modernos, projetada para a antiguidade.

         É o homem moderno que se sente ridículo em admitir que aceita sem questionamentos as narrativas bíblicas de milagres. E caminha a partir do ponto de progressiva desmistificação dessas narrativas.

        O problema é que não sabe quando parar e só mesmo se detém na ressurreição do cadáver Jesus. Na busca do "Jesus histórico" por detrás das narrativas dos Evangelhos, caramba, uma vez rejeitada a ressurreição de Jesus, detona-se a fé. Como o próprio Livro argumenta, se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregacão e vã a nossa fé.

        Portanto, cessam as desconstruções das narrativas de ressurreição, propositadamente a mais escandalosa de todas, a de Lázaro - deixada de fora aqui aquela, gozadíssima, do homem jogado na cova de Eliseu, cadáver que já ressuscita correndo -, quando dão de cara com a ressurreição gérmen de todas as demais, a de Jesus.

        Logo, considero insustentável esse método e tal dissociação. Anular o milagre na Bíblia, definitivamente, compromete todo o seu conteúdo. A partir do texto, foi concebido, intrincadamente, o miraculoso como base argumentativa para a personalidade do Mestre e base de sua argumentação.

         Não há como dissociar da identidade de Jesus os atos descritos: ora, para provar que o Filho do homem tem poder para perdoar pecados, eu te mando, levanta, toma a tua cama e anda.

        E também não há como sustentar a ideia de que o Livro precisa ser lido dissociadas essas duas vertentes: aceita-se a argumentação e rejeita-se o maravilhoso.

         Definitivamente, é um dado posto de fora para dentro do Livro, intrinsecamente estranho a sua metodologia. É visão de modernidade projetada para a antiguidade, resultado da iconoclastia fora de controle do Renascimento.

        Como argumenta Paulo a Timóteo, aceita-se a piedade, mas nega-se a Deus o poder. É construída uma espiritualidade destituída do maravilhoso de Deus. Este é o "Deus científico", desenhado à imagem e semelhança dos parâmetros da razão em seu contexto maior de método, que são os (r)estritos limites da ciência.

          Caso ela possa descrever, explicar ou sugerir "hipóteses científicas", aceita-se. Caso não, não existem parâmetros fora destes e o que se propõe torna-se absurdo. Trata-se da nova e definida Criação: "No decurso, criou a ciência os ceus e a terra. Ela era sem forma e vazia, mas o espírito  científico pairou sobre a face das águas."

         Se ela, a ciência, não sabe descrever como células mortas de um corpo sem vida voltam a se rejuvenescer sob o comando da voz de Jesus e um cadáver, nessas condições, volta à vida apenas com odor de seu suor, não há milagres.

        Ela dedica a nós o Jesus Histórico. Ela corrige a leitura da Bíblia, em nosso socorro. Não deixa de ser uma redenção (e uma nova redação, ajuda-me o corretor automático de meu zap). Aceita-se e pratica-se a piedade, mas nega-se a Deus o poder. Espírito de uma época, segundo o autor da 2 carta a Timóteo (terá sido mesmo Paulo? Ora, mas essa é uma outra discussão).
     
        E ainda, por pura ironia, a definição bíblica de fé confere, direitinho, com a definição de método científico: certeza de coisas que se esperam - no caso da ciência, tudo o que ainda não pode explicar, mas tem total certeza de fé de que, um dia, explicará - e convicção de fatos que não se veem - por exemplo, a colisão do Big Bang e o Bóson de Higgs como "mensageiro dos deuses".
       
             

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Mal traçadas linhas 25


      Lázaro, sai para fora.

      Por detrás destas palavras é que ocorreu o milagre. A ciência deve uma explicação, de como células degeneradas se regenaram e um cadáver putrefato se ergue e se apresenta vivo.

       É certo que há quem diga que o texto não passa de uma elaborada construção teológico-literária cujo objetivo, dentro do contexto maior do Evangelho de João, é estabelecer um perfil de Jesus como capaz dos milagres descritos.

         Mas não necessariamente que os tenham exercido. No final das contas, não se trata de fatos, mas sugestão deles. Ora, impossível florear sobre esses textos, atribuindo-lhes a importância que for, negando-lhes a autenticidade dos fatos.

         Se não são factuais, sua credibilidade fica comprometida e a narrativa bíblica prejudicada. Se não é verdadeira com relação aos fatos históricos, por que seria com relação aos fatos doutrinários e metafísicos?

        Se Jesus não ressuscitou Lázaro ou, pelo menos, a filha de Jairo e o filho único da viúva, por que devo acreditar na afirmação bíblica de que vai me ressuscitar? Refiro-me às afirmações bíblicas de que se deram as aqui citadas e que se darão essas outras ressurreições prometidas.

         O fato é que há uma tremenda resistência em acreditar na possibilidade real da concretude desses sinais. Isso não se deve ao espírito do Livro, pensado e escrito para que, de fato, as histórias e respetivas argumentações decorrentes fossem encarados de modo literal.

         Essa rejeição e dissociação entre as duas vertentes, descrição de milagres X parte doutrinário-argumentativa, vem de fora para dentro do Livro, colocada como ideia dos tempos modernos, projetada para a antiguidade.

         É o homem moderno que se sente ridículo em admitir que aceita sem questionamentos as narrativas bíblicas de milagres. E caminha a partir do ponto de progressiva desmistificação dessas narativas.

        O problema é que não sabe quando parar e só mesmo se detém na ressurreição do cadáver Jesus. Na busca do "Jesus histórico" por detrás das narrativas dos Evangelhos, caramba, uma vez rejeitada a ressurreição de Jesus, detona-se a fé. Como o próprio Livro argumenta, se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregacão e vã a nossa fé.

        Portanto, a desconstrução das narrativas de ressurreição, propositadamente a mais escandalosa de todas, a de Lázaro - deixada de fora aqui aquela, gozadíssima, do homem jogado na cova de Eliseu, cadáver que já ressuscita correndo -, cessa quando dá de cara com a ressurreição gérmen de todas as demais, a de Jesus.

        Logo, considero insustentável esse método e tal dissociação. Anular o milagre na Bíblia definitivamente compromete todo o seu conteúdo. A partir do texto, foi concebido, intrincadamente, o miraculoso como base argumentativa para a personalidade do Mestre e base de sua argumentação.

         Não há como dissociar da identidade de Jesus os atos descritos: ora, para provar que o Filho do Homem tem poder para perdoar pecados, Eu te mando, levanta, toma a tua cama e anda.

        E também não há como sustentar a ideia de que o Livro precisa ser lido dissociadas essas duas vertentes: aceita-se a argumentação e rejeita o maravilhoso.

         Definitivamente, é um dado posto de fora para dentro do Livro estranho, intrinsecamente, a sua metodologia, visão de modernidade projetada para a antiguidade, resultado da iconoclastia fora de controle do Renascimento.

        Como argumenta Paulo a Timóteo, aceita-se a piedade, mas nega-se a Deus o poder. É construída uma espiritualidade destituída do maravilhoso de Deus. Este é o "Deus científico", desenhado à imagem e semelhança dos parâmetros da razão em seu contexto maior de método, que são os (r)estritos limites da ciência.

          Caso ela possa descrever, explicar ou sugerir "hipóteses científicas", aceita-se. Caso não, não existem parâmetros fora destes e o que se propõe torna-se absurdo. Trata-se da nova e definida Criação: "No decurso, criou a ciêncianos ceus e a terra. Ela era sem forma e vazia, mas o espírito científico pairou sobre a face das águas."

         Se ela, a ciência, não sabe descrever como células mortas de um corpo sem vida voltam a se rejuvenescer sob o comando da voz de Jesus e um cadáver, nessas condições, volta à vida apenas com odor de seu suor, não há milagres.

        Ela dedica a nós o Jesus Histórico. Ela corrige a leiturabda Bíblia, em nosso socorro. Não deixa de ser uma redenção (e uma nova redação, ajuda-me o corretor automático de meu zap). Aceita-se e pratica-se a piedade, mas nega-se o poder.

        Espírito de uma época, acertou o autor da 2 carta a Timóteo: terá sido mesmo Paulo? Ora, mas essa é uma outra discussão.
     
        E ainda, por pura ironia, a definição bíblica de fé confere, direitinho, com a definição de método científico: certeza de coisas que se esperam - no caso da ciência, tudo o que ainda não epxlica, mas tem total certeza de fé que, um dia, explicará - e convicção de fatos que não se veem - por exemplo, a colisão do Big Bang e o bóson de Riggs como "mensageiro dos deuses".
       
             

sábado, 14 de maio de 2016

Artigos soltos 5


         Ora, Deus 2

        Falando em diletantismo, falar sobre Deus é um deles. Sim, porque se há alguém eapecializado em Deus, é louco. Aprecio muito aquela palavra de Paulo a Timóteo, quando diz que há gente que não compreende direito e ainda faz ousadas asseverações. Pois é.

        E há, ainda, outro aspecto, que as Escrituras corroboram, especificamente quando dizem que Deus não faz acepção de pessoas, portanto, para falar de Deus, qualquer um(a) está habilitado. É isso ou é a ortodoxia, que não passa mesmo de enjaulamento de Deus.

        Não que não seja necessário haver certa disciplina. Aliás, já mencionado neste espaço cibernético aqui, o meu professor de Seminário, M. Porto Filho, dizia que doutrina é a disciplina da fé. Fé, mesmo ela, democrática como se configura, acessível e, como dizem, de novo, as Escrituras, sem o que é impossível começar com e a respeito de Deus qualquer coisa, qualquer um entende, a ela qualquer um tem acesso e dela qualquer um compartilha. Mesmo assim, necessita de disciplina e ortodoxia.

       Portanto, fé não pode ser uma coisa bagunçada. E, de novo, outra vez, Paulo fala a Timóteo que a doutrina tem de ser sadia: sã doutrina, na tradução corrente. Então, ao contrário disso há, sim, formas doentias de crer, há ortodoxia opressora, que viola o não fazer acepção de pessoas e fé não autêntica, que desvia de Deus.

       Por isso, repito, Jesus certa vez agradeceu ao Pai, numa breve, porém paradigmática oração, que era grato que Deus houvesse escondido dos "sábios" e "entendidos" as coisas da fé e do Reino. Pronto, está feito o estrago. Sim, afinal, as coisas da fé, da ortodoxia, da doutrina, enfim,  no falar de Paulo, "o que de Deus se pode conhecer" está restrito a uma elite intelectual ou acessível a qualquer?

        Por isso reclamam do termo "ecumênico", ora, medo estúpido, esse,  o medo de palavras ou ideias. Acesso e conhecimento de Deus são democráticos. Certo, eu tenho minha fé, religião, doutrina e ortodoxia. Elas explicam Deus para mim. Mas outra coisa, outra postura é eu querer enquadrar todos neste meu nicho.

       Certo, então farei concessões e vou abrigar mais alguns: sou evangélico, vou incluir outros de mesma cepa, sem deixar de achar, porém, que são concessões, o que significa dizer que a minha, que o meu ainda sobressai. Começou a se tornar problemático, já começo a fazer acepções, coisa que Deus não faz.

         Ortodoxia é igual a número de calçado: use o seu e deixe cada um usar o próprio. Não faça acepções (e nem assepsia). Não faça ousadas asseverações, a não ser que, de modo humilde, entenda muito do riscado. Não seja elitista: Deus democratizou o acesso a Ele. Então, facilite para os outros e não imponha barreiras.

     E lembre-se de Rubem Alves: fé e noção que temos, imagem que temos de Deus, tem muito de projeções de nós mesmos.

terça-feira, 10 de maio de 2016

Artigos soltos 4


         Desamparo.

         Na cruz, quando Jesus se dirigiu ao Pai dizendo "por que me desamparaste", uma das falas registadas no original aramaico, experimentava o contrário da suprema providência. Era o extremo desamparo.

        Situações do dia a dia, aliás, um dos supremos argumentos de quem não acredita em Deus é esse, ora, por que Deus desampara, usualmente é utilizado para total expressividade da não existência de Deus.

       Argumenta-se, um Deus justo e bom não largaria ao desamparo. Pois bem, extremo desamparo experimentou Jesus, suprema decepção, talvez procurasse em Deus via alternativa, aquele desamparo total: não, por favor, suplico outra via.

       Ora, se Deus assim desampara seu Filho, único Filho, o que esperar com relação aos demais? O que Deus pretendia com isso? Alguma relação com o abandono. Deus largou seu filho Jesus ao abandono.

       Então, deve também ter largado ao abandono toda a humanidade, todo o restante de homens/mulheres. Agora se, por acaso, foi abandono aparente ou se, nesse abandono de Jesus a sua própria sorte houve uma espécie de paradigma da condição humana, então há resgate.

         E se Deus resgata seu Filho, nEle resgata a todos. Porque o homem relegou-se ao desamparo. Ele não tem regra ou senso de justiça. Não pode cobrar de Deus que o ampare em sua desdita ou desgraça pessoal, porque ele mesmo se colocou nessa posição.

        Só havia um meio e foi desse que Deus se utilizou. Como que relegou seu Filho ao desamparo, vivenciado por todos os homens, mas resgatou-o dessa condição, por um gesto, porque em Jesus não houve pecado. Ele sempre foi modelo e matriz de comunhão com Deus.

       Então temos um modelo de homem que busca a Deus, vivendo em justiça diante dEle. Experimenta em si injustiça, porque denunciava a incoerência humana a todo momento. Foi, então, arrancado por juízo opressor, como dissera Isaías, profeta. Experimentou, então, duplo desamparo: traição dos homens, abandono da parte de Deus.

        Nunca use o argumento de que desamparo é prova de que Deus não existe. Desamparo é a opção de vida da humanidade. Jesus experimentou esse modelo, não que o praticasse em relação a Deus, mas os homens que o condenaram praticaram em relação a ele, prova de que o praticavam em relação a Deus.

          Mas Deus, que fez recair sobre Cristo essa sina, no final o resgata da morte, clímax da condição humana e, visto que o Filho jamais praticara o abandono, nem em relação à vontade do Pai e nem em relação à atenção para com as mazelas do homem, então, em Jesus, Deus resgata todo o que crê.

        Não mais viva desamparo porque, em Cristo, Deus te resgata.
       

     

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Filigranas de Memória 4


     Troca de eixo

     São José do Rio Preto, nossa visada, a partir de Santa Fé do Sul, era ponto de referência. Marcava uma curva, como que a última, para nós saída do eixo Norte-Sul para o eixo do Sudeste.

      Ali fazíamos o contorno do trevo para Mirassol, referência no Guia 95, trocando para a rodovia Presidente Wilson e deixando a Euclides da Cunha, que percorrêramos inteirinha, das margens do Paraná ao referido trevo.

       Saíamos da travessia numa balsa imensa, umas quatro vezes, se não fossem seis ou oito o tamanho daquela do rio Madeira, na foz do Abuña, em Rondônia. Aquela era a nossa primeira travessia ali naquele ponto da jornada, nos idos de 1995.

      Anoitecera. O eixo da Euclides da Cunha faríamos, Regina e Isaac pela primeira vez eu, pela segunda, estávamos em março e eu percorrera em janeiro, indo definitivamente para o Acre com o pastor Paulo Leite.

      Regina ficou dentro do Gol 1000. Enfrentáramos a fila de carros, que foram alinhados em forma de letra U, com vértices retos, é claro. Ficara um espaço apertado e comprido bem no meio, entre eles, depois descobri por quê. Estávamos, eu com Isaac ao colo, reparando essa arrumação e bem na proa reta da embarcação, mirando as águas escuras da travessia.

       Falava coisas de pai pra filho ao menino, nem sei se ele se lembra, quando nos voltamos para ver a acomodação, certamente, daquele último veículo que faltava: uma bruta carreta carregada, quem sabe umas 35.000 t, pelo menos.

      A dita era a última carga daquela partida. Entrou rangendo, esforços de sua tonelagem, na balsa que, monstro domesticado, nem se mexia. Eu, com o menino no colo, por detrás da fileira dos carros na popa, acompanhava a manobra.

      E veio o monstro mirim acomodando-se em meio a todos os carros. Os compressores do freio chiando, anunciavam as etapas da acomodação. Eu, Isaac ao colo, nós dois acompanhávamos. Foi quando, vindo ao nosso encontro, bem cara a cara em nossa direção, o truck deu o que parecia ser a última parada. Estacou.... shshsh...shshsh....shshs.

      Mas não era. Começou a recuar, de ré, após alguns giros de contato com gente lá de trás, não percebidos por nós. Pensei, ué, vai ficar de fora essa derradeira carga, por causa do peso? Mas não saiu todo. Foi quando. O monstrinho cresceu de tamanho, precisamente quando acelerou e, pior, precisamente em nossa direção.

       Arregalei olhões, Isaac nem era com ele, e o caminhão acelerou. Cara, é claro que o sangue ficou frio, mas a adrenalina deu sinal. Por que acelera desse jeito? E justo em nossa direção. Aumentava a velocidade e eu me perguntava, eu, hein, nunca vi isso.

       Foi quando entendi: desde que acelerou lá na entrada da balsa, aumentou o monstro a sua velocidade e, a uns três metros da linha de carros onde, entre eles, descansava o bólido Gol 1000, freiou bruscamente, enquanto, evidentemente, eu esperava por isso, mas ainda sem entender.

       Então todos os compressores deram, sincronizados, seu definitivo suspiro mas, desta vez, ruído monumental de ferros poderosos rangeram, orquestrados no mesmo solavanco, porque toda a balsa sacolejou e veio à frente num tranco, com todos e com tudo acima.

        Então entendi, princípios da física, com malícia e traquejo do mais recente passageiro de todos: a freada da carreta, por meio do atrito e da inércia, acabara de desencalhar a chata enorme, agora pronta para singrar as águas escuras daquela noite de março de 1995, primeira travessia da família pelo rio Paraná.

sábado, 7 de maio de 2016

Mal traçadas linhas 24


          Quebre o cântaro, derrame a vida

          Simão, o fariseu, reuniu sua turma e armou, em sua casa, o circo para desmoralizar Jesus. Era um festão, no estilo oriental, a nata no mais interior da casa e o povão fora, ao redor.

          No círculo mais íntimo, acesso mais restrito, Jesus, Simão e os dele. Repentinamente, lá adiante, pode-se imaginar o círculo, circuito da conversa e convívio entre eles, entrou a mulher.

         Até ali, risco calculado, pois sabiam ser Jesus arguto e agudo em suas falas. Se o propósito da malta reunida era apanhá-lo em falta seria, ao mesmo tempo, fácil e difícil.

       Fácil, porque Jesus nunca teve calo na língua e qualquer chance era oportunidade de exortação. Difícil para eles, porque sabiam, como ocorrera outras vezes, que Jesus expunha ao ridículo as ideias e intenções de grupos como aquele.
         
            Frisson. Ela entrou, com seu porte milenar, característico das mulheres que vendem a si mesmas por preço porém, naquela tarde, um tanto despojada de si. Mas a sutileza desse olhar e dessa visão somente Jesus, por ter coração desarmado, enxergava.

         Trazia uma cânfora de perfume à mão. Silêncio. Os olhos de todos acompanhando-lhe movimento e atrevimento. Sabia o que queria. Olhou no grupo e localizou Jesus.

         Caminhou na direção dele, debruçou-se-lhe sobre os pés e, derramando neles o perfume que trazia, lavou-lhe os pés, e acariciou-lhe os pés, e secou-lhe os pés com os cabelos, beijando-os. Todos os olhos acompanhando a milímetros a cena. Olhos postos nas reações de Jesus. Olhos postos nos gestos da mulher.

      Foi quando Jesus interveio. E quando Ele o faz, sempre que o faz, coloca homem/mulher no centro da questão. Ali, naquele dia e quanto àquele fato, propôs uma parábola. Isso mesmo: parábola de Jesus nos coloca no centro da história.

       Entre sábios, naqueles tempos idos, costumava-se propor parábolas. Simão, Jesus chamou e, muito provavelmente, ele deve ter estremecido. E aí o Mestre estabeleceu a símile a respeito de dois homens devendo a um mesmo credor: um deles, devia 500; o outro 5000, assim, nessa proporção.

      O credor mandou chamar os dois e, começando pelo primeiro, conferiu-lhe a dívida e, imediantamente depois, deu documento de quitação, surpreendendo o homem. Evidentemente que o outro atinou com o fato se ter sido também chamado: ele vai abater-me 500, muito provavelmente, e passarei a dever 4500.

      Qual não terá sido a surpresa do segundo quando a ele se dirigiu o credor, conferiu dívida e deu o mesmo instrumento de quitação dela completa; quase um infarto, só de alegria. Jesus terminou, propondo aos ouvintes a moral da história.

        Quem ficou mais feliz na entrevista, após a audiência dos endividados? O que mais devia, respondeu com certeza a acertadamente Simão. E assim, colocou-se por si mesmo como personagem no centro da parábola.

       Certo, disseste-o bem: quem mais deve, mais alegre fica quando perdoado. Quem mais deve? Quem se reconhece, sensivelmente, culpado. Não era esse o caso do fariseu anfitrião.

        Comparativamente falando, do ponto de vista dele, achava-se moralmente menos endividado do que a meretriz profissional. Erro de cálculo. Não há esse menos ou mais endividado, quando a questão é a culpa: todos estão no mesmo patamar endividados.

       Erro de cálculo. O fariseu achava ser melhor do que a mulher. Também avaliava que Jesus havia dado à mulher muita cancha. Mas Jesus quis lhe ensinar que o que se destacava na mulher era um sentimento que passava distante ao fariseu: amor.

       A cânfora tinha o bálsamo para pelo menos um ano. Era perfume usado para os banhos de aroma, na troca de parceiro para parceiro. Agora, a mulher trocara de vida. Por isso derramou o cântaro aos pés do Mestre, à vista dos convidados do fariseu.

        Como se dissesse, a minha vida derramo a teus pés. Tocada por teu amor, reconheço que me aceitas. Os homens viram por outros olhos, escandalizaram-se naquele ato, muito provavelmente não enxergando o amor.

           Com um gesto, apenas, aquela mulher dizia que recomeçava sua vida a partir dali. Jesus ainda avançou detalhando como, no gesto dela, a mulher cumprira o acolhimento com que o fariseu não brindou, nem formalmente, Jesus, quando o recebeu em casa.

          Muito me ama, porque muito deve. Na proporção do tamanho da dívida, reconhecidamente, é a proporção do amor.  A quem pouco se perdoa, é porque pouco deve, ironizou Jesus. A quem muito se perdoa, é porque muito deve, portanto, mais ainda e na proporção certa ama.

           
     

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Artigos soltos 3


       O real e o diletante.

       A realidade se impõe. Querendo ou não, aceitando ou não, o mínimo é dizer puxa, mas é isso? Sim, escolha por que meio formular ou definir, é isso que está aí. Choque de, com a, contra a realidade.

      Jesus era alguém sempre pronto, perto e atrás do fato, do real, ocupava o centro da realidade. Certa vez, descreve Marcos Evangelista, cuidado de família, mãe e irmãos foram procurá-lo.

      Deram com Jesus, tarde da noite, numa casa repleta de gente e ele atendendo a todos em tudo. Mandaram chamá-lo fora, cuidados de família, que se recolhesse cedo, cuidados com saúde, alimentação, enfim: chamem-no lá; digam que somos nós, que ele entende.

       Jesus mandou recado, para dizer:  diga lá que minha família está aqui e é esta. Doutra feita, recomendaram escolhesse melhor seu círculo de amizades: prostitutas, publicanos e pecadores, essa marginália, definitivamente, não pegava bem, arranhava imagem e prestígio, ficava ruim na fita, queimava o filme.

           Não entenderam nada. Jesus não era, nem minimamente, diletante. Jesus queria sempre estar no meio, contexto, centro do fato. Outra vez, cercado de gente, cada qual com seu interesse, sem contar os interesseiros. Um toque. Um toque de mulher. Era o fato no centro do fato.

        Quem visse de longe, assim grafaram os evangelistas contando essa história, contemplaria como se dividiam as atenções do grupo. Ora, os discípulos também não entenderam a ênfase de Jesus. Mestre, como, se todos te apertam?

      Os discípulos, embrião de igreja, precisavam aprender essa distinção. Igreja não pode ser diletante: na visão de mundo, no estabelecer prioridades, na sua distância do real. Como Jesus, visão de mundo: onde se coloca a realidade.

       Vida marginal? Onde se coloca a igreja? Oprimidos e opressores? Onde se coloca a igreja? Necessidade de milagre? Onde se coloca a igreja?

     Certa vez, num progama de rádio, à convite e desafio do locutor, uma ouvinte ligou para contar seu dilema: sofria da coluna, precisava cuidar da mãe cadeirante, tinha uma filha especial em casa sobre a cama e o filho viajaria pelo TFD - Tratamento Fora de Domicílio, já com reserva prévia de passagem aérea.

      O locutor foi diletante: tanta doença era uma casta de demônios. E dirigiu-se aos ouvintes: venham para a corrente (diletante) de oração (na igreja de mídia dele, era claro), para evitar que uma casta daquelas entrasse na casa dos ouvintes. Isso foi uma ameaça ou um convite? Pensei, cara, será que o locutor diletante terceirizou as castas?

       Como seria a realidade? Minha senhora, qual seu endereço? Vamos falar em off e vamos orientá-la. Grupo de faxina da igreja do locutor na casa da ouvinte. Contratação de, pelo menos, uma diarista para ajudar na casa da ouvinte, com escala de mutirão pelo grupo de jovens.

       Despesas com remédios? Quais poderiam ser doados, quais pegos na farmácia popular ou postos de saúde? Com passagem aérea reservada ao filho, onde hospedar-se na cidade grande e quem o acompanharia: despesas?

       Realidade. Impõe-se. Igreja e o choque do real. Milagres custam dinheiro. Milagres custam atenção. Milagres custam aproximação e comunhão. Custam  força centrifuga, do centro (das atenções e vaidades) para a periferia.

       Jesus veio derrubar barreiras. Se a igreja ergue barreiras, deixa de ser igreja e passa a ser diletante. Ao encontro do fato. Ao centro do fato. Basta um toque, para que dela saia virtude. Da igreja, talvez, ainda saiam virtudes.

         

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Filigranas de Memória 3

     
       Última dormida.

       Foi em São José do Rio Preto, SP, pousada que aprendemos a usar na viagem inaugural do Gol 1000 em janeiro de 1995. Mas para chegar nela, partimos de Rondonópolis após parada obrigatória na Carolina, a ela já nos referimos.

         Afinal, o milagre foi mais sutil. O mecânico me mostrou deformada a tampa do cárter, que é o depósito em si do óleo que refrigera o motor, encaixado, de baixo para cima, no corpo do mesmo.

         Após retirá-la, sim, porque o tal peito de aço protetor jazia ao chão, retorcido, num canto da oficina, o mecânico apontou para a bomba de óleo, intacta, como uma haste que se projetava para baixo, a partir do monobloco do motor.

         A deformidade da tampa a fez encostar à distância mínima, espessura de uma folha de papel. Caso amassasse o ponto de sucção, na bomba, que suga óleo a partir do depósito do cárter para a refrigeração dos pistões, fundiríamos a máquina.
     
        Dimensão exata do livramento de Deus, nessa viagem louca dos recém-casados e mais a cria de 1 ano incompleto.  Descendo por Mineiros, GO, a navegação indicava mudar o rumo à direita, no trevo de entrada de Jataí, BR 364, a fim de atravessarmos Mato Grosso do Sul, em direção à tríplice fronteira MG, MS e SP.

          Passei direto no trevo, na entrada para Jataí, como quem vai por Uberaba, MG, caminho que deduzíramos mais longo. De ré, retomei o curso, manobra meio arriscada, abertamente proibida, dentro do trevo.

       Adiante a Polícia Rodoviária nos parou, pedindo documentos de identificação do carro e motorista. Dois problemas: a manobra, em si; documentos do carro, que não tinha seu IPVA devidamente registrado.

       Eu levava, como na viagem inaugural, a nota fiscal de proprietário. A placa, o Detran de Niterói enviara ao Acre, sutileza que essa mesma repartição (como dizia meu pai) no Rio jamais faria.

      Por isso, coloquei o carro no endereço de meu tio Isaías Barcellos de Oliveira, de Niterói, para onde seguiria, posteriormente, o IPVA e, quanto à placa anteriormente enviada, fui ao Detran AC e lacrei-a no carro. Só na viagem de volta estaria com o IPVA.

      Essa situação expliquei ao policial, que me disse ser irregular e não sabia se eu iria longe assim. Mas eu queria mesmo era ser liberado ali. Com oração a gente enfrentaria o restante. Ele o fez, advertindo para a manobra estúpida e confirmando minha suspeita do que isso lhe chamara a atenção e o fez nos parar.

        Primeiro percurso pelo interior de Mato Grosso do Sul. A navegadora dividia atenção entre o menino, as vezes dormindo, e o mapa do Guia. Mas também era tática nossa não deixá-lo dormir senão, à noite, ele não dormiria e a gente precisava estar ok para os 1000 km do dia seguinte.

       O segredo da economia de km sempre esteve nesse interior de MS, isso porque serpenteiam estradas por entre cidades, ora asfaltadas ou não, dependendo da informação atualizada do Guia 95, comparada à de caminhoneiros.

     Por isso, os arredondados 4200 km Rio-Rio, variavam  para menos. Houve certa vez que fizemos, numa dessas viagens, 4090 km, economia de 110. E varando zona rural, plantações, fazendas de gado e mata virgem, chegamos a Aparecida do Taboado, onde encontramos o rio Paraná, na época com balsa para a travessia, rumo a Santa Fé do Sul, SP, na outra margem.

Filigranas de Memória 2

 
       Cálculos à parte

       Pensar alcançar Rondonópolis no segundo dia, a partir de Ji-Paraná, foi loucura. Cobrimos o, na época, ermo norte de Mato Grosso, horas e horas a 100, 120/h, quando muito 140 nas retas, à bordo do quadrado Gol 1000, sem ver vivalma.

        Íamos, é claro, genialíssima ideia, ouvindo fitas cassete no tocas-fitas moderno. Isso distraía, desconcentrava as tensões e inspirava a mente: louvores excelsos, dentre outros profanos.

       Irrompemos bem ali, na curva, em Cuiabá, que define quem vai prosseguir em direção à Rondonópolis, arredondados 200 km à frente. Isaac interpretou todo o estresse da jornada, visto que, se planejáramos para o dia cerca de, exageradamente, 1300 km, naquele ponto já passávamos de 1000: abriu o maior berreiro no colo da mãe.

        O instante que me virei para trás, para tomar altura e dimensão do desabafo do recém-nascido, foi suficiente para emplacar um buraco que cobria toda a via. Haja peito de aço, acessório que, na alvorada pátria daquele momento econômico, pós URV do FHC, alvíssaras do Plano Real, fui obrigado a amealhar junto com os tapetes do soalho e a maravilha tecnológica que era o toca-fitas: se não o fizesse, não retiraria o Gol 1000, por consórcio, da autorizada WV ali da Barra, Rio, RJ (sem contar os faróis de neblina).

         Recuperamo-nos do susto, amansamos a fera neném e, logo à frente, paramos num posto. Pedimos completar o tanque e, prontamente agachei-me, a fim de apalpar o prejuízo, bem ali, por debaixo do cárter de óleo do motor.

         A anatomia da peça, assim denominada, refiro-me ao peito de aço, estava disforme e distorcida. Procurei, com a mão, sinal de besuntar as mãos em óleo quente do motor. Nada. Constatamos, então, não ter rompido o depósito de óleo e, incontinenti, ao mesmo tempo ainda iludidos, partimos em direção a Rondonópolis.

       Falo assim porque, ainda ocorreria o incidente que nos ensinaria, como regra para todas as demais viagens a fazer, não empreender jornada nenhuma à noite, principalmente nas estradas do norte e centro-oeste percorridas repetida e insistentemente.

        Na subida da costumeira serra que liga Cuiabá a Rondonópolis, já após o trecho sempre horripilante de movimento de carretas e asfalto, retão que corta por fora o centro de Cuiabá, deformado exatamente pelo peso delas, esse penoso percurso jogou-nos à noite no início da subida.

       Desciam quatro faróis alinhados. E, antes que eu atinasse no sentido daquilo, que ser ou aberração das estradas mostra alinhados na horizontal quatro faróis, a mãe do menino, sentada atrás, alça de mira por entre os bancos, o que é aquilo, são duas carretas, uma cortando a outra.

         Bastou para eu me posicionar no miúdo acostamento, talvez 1 m deles, sentir a vegetação roçar na lataria do carro, o arquear do solo esburacado e o ameaçador deslocamento de ar da carreta, fazendo balouçar o Gol como uma caixa de papelão, a marca definitiva desse livramento e a lição para não mais, nunca mais estipular estirões que nos fizessem dirigir à noite.

        Chegamos à cidade. Tateando no Guia Quatro Rodas 1995, na época atualíssimo, encontramos dois hotéis modestíssimos. A ministra das finanças, mãe do bebê, certamente optaria pelo mais em conta. Eu já fechara questão sobre ficar em qualquer um, porque desde o estresse bebê, as emoções haviam sido marcantes.

         Mas sempre prevalece a orientação feminina, nessas horas: escolhemos o menos pior, porque o outro, além do odor característico, a luz mortiça e uma plataforma fixa de concreto com colchão por cima, como lápide de sala acadêmica de aula de dissecação, fechei questão: Regina, é no outro.

          Ufa! Pelo menos, duas camas de solteiro, o cheiro característico diferente, porém presente, luz ligeiramente menos amarela e, graças a Deus, apenas o grito da esposa quando deparou uma barata no banho. Dormimos uma boa noite, previamente decididos a procurar a Carolina, a autorizada WV da cidade, segundo nos indicava o manual do nosso novíssimo veículo.

Filigranas de Memória 1

Como foram os dias.

      Os dias dos 150.000 quilômetros das viagens de carro Rio-Rio, ou seja, Rio Branco, AC - Rio de Janeiro, RJ. Digo conta inteira, porque os cerca de 4.200 km ida e volta, somam 8.400, oito dias de viagem, porém mais o gozo das férias no Rio, capital (epa, a outra também é capital), somem-se aí mais uns 2.000 km rodando, aproximados 10.000 km: completamos esse trajeto, eu e família, 15 vezes.

       Com os carros, ora, vou saltear, começando pelas certezas: com o Gol 1000 95, três vezes, certamente, em 95, 96 e 97. Com o Parati Prata Track Field 1.6, com ar, em 2004 e 2005. Quebrei a cabeça do fêmur em novembro de 2008, portanto em janeiro de 2009, fomos por avião. De 1998 a 2003, seis vezes com a Parati verde musgo, que seja, adquirida por consórcio ainda em 1997. A Toyota Fielder, que completa aniversário de 10 anos em novembro de 2016 próximo, foi em 2007, 2010, 2011 e 2012.

      Esses dias são, ao mesmo tempo, iguais e diferentes. Iguais, porque a novidade da primeira vez, arrefece na segunda e terceira idas, mas diferentes, porque na rotina de cobrir sempre a mesma distância, cenas e fatos novos ocorrem. As estâncias de pousada, é claro, repetem-se e se confirmam, como se verá, porém com uma e outra variação quando ocorriam intempéries e/ou imprevistos.

       Como da primeiríssima vez, puríssima loucura, coisa que jamais faria com a cabeça que tenho hoje, Regina carregava Isaac de 8 meses no banco traseiro do Gol 1000 quadrado, ano 1995, KQA 7532, placa de numeração de Niterói, RJ, e eu pilotava com assessoria dela, alçada de visão lá do banco de trás.

        Primeiro fato novo foi escapar pelo rajar do vento um papelão improvisado como morcego, apelido daquela vidraça que, nesses modelos, eram um triângulo retângulo envidraçado que ocupava bem ali, o acabamento entre o trilho de deslizamento do vidro da porta, ainda manivelado, lembrem, e a extremidade angular da própria porta.

       Tinha sido quebrado numa tentativa de furto lá no bairro Tancredo Neves, bem defronte da porta da casa do Nelson Rosa, colada ao templo congregacional pioneiro nesse bairro. Fomos salvos por Prince, Laike e Pop, as três que, lideradas por Laike a mais brava, mesmo por detrás do portão, assustaram os meliantes: quebraram o vidro, a espia, mas não levaram o moderníssimo toca-fitas cassete e rádio AM/FM. Graças a Deus (e às três guardiãs). A partir dessa noite, passamos a estacionar alhures, na rua ao lado, num quintalzinho improvisado como garagem.

      Fomos a Porto Velho, torcendo para que não chovesse, com vistas a parar na autorizada da WV de lá, bem ali, pouco à frente do trevo que faz entrada para a cidade e apontava, na época, hipotética direção e distância para Manaus, porque estrada não havia. Paramos. Uma fábula, como dizia meu pai, o preço da peça de vidro e a mão de obra para pôr.

      Perguntei por uma outra fórmula. Dissemos que faltavam, ainda, 3500 km. Acho que a visão do casal com filho de menos de 1 ano ao colo sensibilizou o funcionário. A solução que deu foi recorrer ao depósito de carros atrás que tinha carro de mesma marca danificado por outras razões, com peça idêntica inteirinha.
   
        Lembro que, além de colocá-la e não cobrar nem peça e nem mão de obra, apenas deixou com minha consciência dar um qualquer. Como ela ardeu, a consciência, insisti em perguntar se estava bom o preço que, calculado, não mal passava a quarta parte da despesa, literalmente, original. Deu tudo certo, iniciou-se a viagem.

        Lembro do pernoite em Ji-Paraná. Sempre sensibilizávamos quem visse Isaac ao colo, muito bonito e sadio, desculpem a modéstia. A moça do hotel, creio ter sido a dona mesmo, nos colocou num quarto enorme que, salvo engano meu tinha era mesmo cama de casal e outra de solteiro. Cobertos, então, mais de 1000 km, já que até Cacoal são novecentos e tantos e Ji fica, ainda, além de Pimenta Bueno.

    Juntamos, eu e Regina, cama de solteiro e casal: dormi naquela e Regina nesta, com o menino, que acordou mergulhado entre as duas na manhã seguinte.  Conversas e detalhes da Epopeia familiar que empreendíamos, com a dona, à mesa do café da manhã ou ao fecharmos a diária, não lembro, seguimos viagem visando, no planejamento da esposa navegadora, mapa Quatro Rodas 95 em punho, as quebradas de Rondonópolis, uns 1300 km adiante. Para uma estreia, foi notável e arriscadíssimo, mas ainda não sabíamos.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Mal traçadas linhas 23

 
     A paz e o nada

     Paz não é placidez. A Bíblia diz que a paz de Cristo excede todo o entendimento. Uma assertiva que, por si, indica que paz é coisa que não se define e nem se entende.

     Para começo de conversa, não vai ser ausência de situação de guerra, ausência de conflitos, internos ou externos, na pessoa, ausência de dificuldades, provações, privações, tragédias.

      Como diz Tiago, o cara de maior senso prático do Novo Testamento, várias provações e privações devem ser motivo de toda a alegria, destaque aqui para os indefinidos "várias" e "toda". Uma provação só, não é nada. E a alegria quando elas vêm todas juntas, é toda, completa.

       Paz é o nada. É inércia emocional total, estabilidade e equilíbrio dos nervos em toda e qualquer situação. Deus está presente. Elias, em seu medo, depressão e fuga, estilo Jonas, subiu um monte e escondeu-se numa caverna.

      Nada mais platônico e freudiano. Psicanaliticamente falando, Deus proporcionou a terapia que, na verdade, pareceu mesmo resultado do acaso. Sucederam-se fenômenos da natureza, coincidentemente assustadores: tremores, borrasca e tufão.

       Elias, acostumado a entender Deus como sempre associado a essas brutalidades, não esperava que quando houvesse nada, quando fosse o comum, uma brisa de fim de tarde, que Deus lhe despertasse o entendimento. Reage, Elias, homem igual a nós, conclui Tiago.

       E mandou-o sair da caverna. Retorna à rotina e fique em paz. Indica Eliseu, sua área de ação, como profeta em teu lugar, intrometa-se na sucessão de rei em Israel, assim como na política externa da vizinha Síria. Muito provavelmente a ordem do Altíssimo dizia respeito a assuntos de domínio prático do ministério de Elias.

       Tudo na mesma? Paz. Nada de novo? Paz. Tumulto emocional, financeiro, político e seja lá qual ou como for? Paz, que excede todo o entendiemnto. Que não é inércia no sentido de não agir, mas agir com propósito e sabedoria, diligência ativa inteligente e serena.

        Lucidez, termo básico quando se trata de paz. Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou, não vo-la dou como o mundo a dá. No mesmo contexto, Jesus também disse: No mundo tereis aflições; tende bom ânimo: eu venci o mundo.

       Em tudo sejam conhecidas, diante de Deus, as vossas petições. E a paz de Cristo, que excede todo entendimento, guardará o vosso coração e a vossa mente em Cristo Jesus. Paz tem a ver com tudo isso.

      (1) formular o que aflige; (2) prostrar-se diante de Deus; (3) obter esclarecimento, luz sobre as trevas mentais; (4) fazer descansar o coração. Por fim, gozar da paz que excede todo o entendimento.

       Não tente entender.
     

Artigos soltos 2

 
      Pequeninos e pequeninas missionárias

         Você sabia que mesmo sendo criança pode herdar tesouros de seus pais e avós? Não estou falando de ouro e prata, mas de tesouros de sabedoria da Bíblia, a Palavra de Deus: "Guardo no coração a tua palavra, para não pecar contra ti", Sl 119:11.

        Samuel foi um menino que recebeu de seus pais, Ana e Elcana, esses tesouros. Está escrito em 1 Sm 3:19 que nenhuma de suas palavras caiu por terra porque, à medida que ele crescia e amadurecia, guardava consigo essa herança.

       Isso porque, antes do menino nascer, sua mãe já o esperava com oração, 1 Sm 1:11. É natural o desejo de qualquer mulher querer filhos. Mas Ana, além de esperar com oração, já decidia consagrá-lo ao Senhor.

        E para isso, é necessário desde muito cedo os pais, principalmente com seu exemplo, ensinarem e prepararem seu filho ou filha nos caminhos do Senhor. Ana e Elcana eram exemplo na sua dedicação à casa do Senhor, 1 Sm 1:3-4, assim como formavam um lar equilibrado e centrado na Palavra de Deus.

         Os pais de Samuel não apresentavam ao Senhor uma devoção formal, em casa e no Templo, por costume ou obrigação, mas natural e espontânea. Uma criança que cresce num contexto familiar dessa marca, certamente vê e experimenta, pelo exemplo vivo dos pais, testemunho de valor marcante.
             
          Tesouros de espiritualidade não ficam guardados e escondidos, mas são reais e verdadeiros aqueles transmitidos. Se vivemos num lar que valoriza a Bíblia e a igreja como lugar de aprendizado e culto, centrados na Palavra de Deus, como faziam Ana e Elcana, certamente tesouros de sabedoria são cultivados e transmitidos.

       Conheço uma menina de 5 anos, filha e neta de pastor, que aprendeu a orar em casa, com sua avó. Chegando à igreja, Julia orou pela saúde de outra avó dizendo, no momento dos pedidos: "Quero que ore pela perna na vovó Dorcas, que está inchada".

        Num outro dia, em sua casa, repentinamente, perguntou à mãe: "Como é que Jesus vem morar no nosso coração?". A mãe ensinou que, se a menina queria Jesus, deveria pedir. Daí a instantes, o ânimo e o humor mudaram, porque anunciou que havia feito a oração, e saiu pela casa rindo e chorando de alegria pela certeza de ter Jesus.

        Como Ana e Elcana que, certamente, ensinaram Samuel em casa, a menina também foi ensinada a orar no contexto do lar. Como Samuel depois, ainda menino, foi usado por Deus para exortar Eli no Templo, 1 Sm 3:17-18, a menina, na igreja, pôs em prática o que aprendeu em casa.

         Culto, adoração e louvor começam em casa e devem ter como padrão a instrução que vem por meio da Bíblia. Ana e Elcana se tornam exemplos atuais de família que colocava sua centralidade na devoção inteligente ao Senhor. E num tempo em que a palavra do Senhor era rara, 1 Sm 3:1.

          Desde casa, no contexto da família, a Bíblia precisa ter recuperado o seu lugar de destaque. Vivemos novamente um tempo em que a Palavra do Senhor é rara, por causa da qualidade do que é dito, tomando a Bíblia como pretexto.
     
        Um menino, como Samuel, ou uma menina, como Julia, podem receber tesouros que se tornam marca permanente de espiritualidade, fazendo crescer em maturidade, aos pés do Senhor, com ganho para toda a vida. O bom escriba sabe o que retirar do seu tesouro, Mt 13:52.

           Não basta, não é automático o que Salomão diz, "ensina a criança no caminho que deve seguir", se não há exemplo coerente e suporte dado pelos pais. Quando Jesus diz "não impeçam as crianças de vir a mim", infelizmente vemos, às vezes com muita frequência, a começar da má instrução no lar, os próprios pais sendo impedimento aos filhos.

     Não são somente as vovós que acham tesouros. Crianças bem instruídas na Palavra do Senhor também transmitem as lições que aprenderam. E podem ser veículo de testemunho e salvação por onde andarem, como foi com Samuel por todo o Israel, 1 Sm 3:20-21.

      Cultivem no seu lar tesouros de devoção ao Senhor, tendo a Bíblia como campo permanente de busca. Não abandonem a igreja, lugar de instrução, aprendizado e culto inteligente ao Senhor, estabelecido por Sua Palavra.

 

     

domingo, 1 de maio de 2016

Artigos soltos

     
        Tesouros dos pais para os filhos.

        Crianças herdam tesouros. Exemplo foi Samuel, que aprendeu com Ana, sua mãe, o legado que usou por toda a sua vida. Está escrito que nenhuma de suas palavras caiu por terra, 1 Sm 3:19: à medida que amadurecia, com ele seguia essa herança.

       Como foi possivel na vida desse menino? Certamente foi determinante o modo como foi acolhido por seus pais. A carência de sua mãe, que tanto quis ter filhos, levou-a a pedir ao Senhor essa dádiva maior.
Mas não bastou somente pedir algo tão natural ao perfil comum de mulher, 1 Sm 1:8.

         Ana, porém, cultivava espiritualidade incomum, e dedicou ao Senhor o filho que ainda nem havia nascido, 1 Sm 1:11. Mas ainda não bastava, porque para o filho se tornar participante dessa herança espiritual, é necessario exemplo e autêntica postura dos pais em sua educação.

       Isso ocorria na vida daquele casal, 1 Sm 1:3, que não apresentava devoção apenas formal ao Senhor, porém natural e espontânea. Uma criança que cresce num contexto familiar dessa marca, certamente vê e experimenta testemunho de valor marcante.

       Tesouros de espiritualidade não ficam guardados e escondidos, mas são reais e verdadeiros aqueles transmitidos. Se colocarmos a igreja como lugar para onde as famílias acorrem, o fator determinante deve ser a busca pela Palavra do Senhor e a instrução que torna alguém sadio e amadurecido na fé.

       Culto, adoração e louvor devem ter como padrão a instrução que vem por meio da Bíblia. Ana e Elcana se tornam exemplos atuais de família que colocava sua centralidade na devoção inteligente ao Senhor. E num tempo em que a palavra do Senhor era rara, 1 Sm 3:1.

          Desde casa, no contexto da família, a Bíblia precisa ter recuperado o seu lugar de destaque. Vivemos novamente um tempo em que a Palavra do Senhor é rara, por causa da qualidade do que é dito, tomando a Bíblia como pretexto.
     
        Somente um lar que tem gosto pelo alimento sólido da Palavra de Deus, pode cobrar que ela seja bem ministrada na igreja. Somente os pais que, por seu exemplo, educam seus filhos desde sua casa, poderão conduzi-los com proveito à casa do Senhor.

       Foi assim na herança que Ana e Elcana legaram a Samuel. O menino encontrou o Templo em crise. Logo de início, o próprio Deus o usou para dar um recado negativo ao próprio sacerdote Eli, 1 Sm 3:17-18. Aquele menino, o rapaz e o ancião Samuel carregou consigo, ao longo de toda a vida, a herança recebida em casa e aperfeiçoada na igreja.

      Não basta, não é automático o que Salomão diz, "ensina a criança no caminho que deve srguir", se não há exemplo coerente e suporte dado pelos pais. Quando Jesus diz "não impeçam as crianças de vir a mim", infelizmente vemos, a começar da má instrução no lar, os próprios pais sendo impedimento aos filhos.

        Qual a família que queremos? Qual a igreja que desejamos? Como foi Samuel em casa, foi no Templo e fora de casa e do Templo, 1 Sm 3:20-21. A família que queremos e a igreja que desejamos deve ser regulada na medida de nosso apego ao estudo, compreensão e prática do manual de espiritualidade que é a Bíblia.

   
     

     

Mal traçadas linhas 22


       Homem de Deus

       Se há ênfase na Bíblia, para além da comunhão de Deus com o homem, será uma teologia do encontro. Se o Livro não tem nenhuma pista de como isso é possível, para nada mais serve, senão periferia.

     Pode ser lida como mapa de acesso ao encontro com Deus. Seus personagens privam desse privilegio, estabelecendo o plano e modo como isso ocorre. Começando por Abel que, certamente pelo lado de sua mãe, Eva, é apontado como padrão, ainda que precocemente assassinado.

      Ora, todo assassinato é precoce. Prova, já comentado aqui, de que a Bíblia é sui generis, porque já começa indicando a natureza da fé do Deus que a propõe como instrumento: (1) fé não é seguro contra assassinatos; (2) homem de Deus não tem pré-seguro de vida.

      Aliás, a designação homem de Deus deve ser aplicada a todos os homens/mulheres com quem Deus encontra. Termo genérico, se for usado como designativo, como geralmente se faz, atiça vaidade de quem usa como indicativo e a quem for atribuído.

       Deus, na Bíblia, apresenta-se como quem anseia o encontro. Síntese da Sua personalidade, acabou por se tornar homem. Não haveria outro jeito para o encontro: somente a encarnação do Verbo, Deus feito homem em Jesus, tornou possível e autêntico o encontro.

       O Livro pode ser lido como indicador de como se dá o encontro ao longo do tempo, na história individual de cada homem/mulher que desfilam em suas páginas, peculiar na vida de cada um. Reservada a cada personalidade contornos próprios, Deus modelando-se às necessidades e limitações de um a um.

       Comentamos Abel, que aprendeu e imitou a mãe em sua espiritualidade. Eva chamava a si a responsabilidade pela queda e o marido explorava isso, eximindo-se da sua culpa e sobrecarregando a companheira. Data daí o vício do homem culpar a mulher por suas, dele próprias frustrações. Mulher de Deus, exemplo de oração, teologia do encontro.

       Noé, profeta, achou a graça de Deus, definida como tudo que o Altíssimo deseja compartilhar, que traz como dádiva e presente ao homem, na total disposição para o encontro: toda a graça derramada individualmente sobre cada um/uma e não repartida nanometricamente por todos em conjunto.

      Abraão, para encerrar por aqui, a cada lugar um altar do encontro. Carregava consigo, dentro, o altar. Ele entendeu a ideia de Deus. Foi chamado amigo de Deus, outro designativo de Deus para todo homem/mulher do encontro, de cada e para cada encontro.

      Cada homem visava no encontro satisfazer sua curiosidade de Deus, despertada neles pelo Próprio. Moisés queria ver a glória de Deus, sem saber que se refletira em sua própria face, outro designativo divino: glória dEle refletida na face de cada um/uma.

      Ezequiel teve uma visão interplanetária, ficção científica, mosaico futurista, em contrapartida à falência total do reino, do templo e da posse da terra, em meio a uma troca do terreno pelo que se anunciava eterno e definitivo, escatológico, apocalíptico.

      Para cada homem/mulher uma parcela de revelação, um descortinar, um flash, e revelação total em Jesus, Homem de Deus, Filho do homem. Em Jesus, todos e todas se fazem, no encontro, homens/mulheres de Deus.