sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Milagres

 

30 anos separam essas fotos

   Naquele dia, estava no centro do Rio, às voltas com a burrada de uma gerente de conta bancária, que havia efetuado uma mixórdia com a conta da igreja.

  Nada contra gerentes. É humano errar. Mas não está proibido relatar uma sucessão de erros e exatamente na tarde de 20 de abril de 1994. Regina reportou que sairia do Pentágono, onde lecionava, para o Sírio Libanês.

  Uma estirada do Campinho à Tijuca, sei lá, que pode ser Maracanã, mas são cerca de 35 km, by bus, onde ela chegou por volta de quase 16h30min, com a atendente avisando que São Paulo, de onde viria a autorização do Plano de Saúde, cessava às 17h.

  Prenunciava-se o milagre. Oligrodamnia, teste essa pronúncia, é "volume de líquido amniótico abaixo do esperado para a idade gestacional". Eu, que vinha acompanhando a gestante havia quase 9 meses, já aguardava essa confirmação.

   Ou seja, lá por dentro estava tudo secando, antes da hora. Deu 17h, 17h15, 17h30, 17h45, essa eternidade, com a atendente avisando que, de São Paulo, poderia esperar nada, não atendiam o telefone (sim, celular não haviam inventado), no Golden Cross, desde as 17h.

  "Mas eu vou continuar tentando",  a moça consolava a mãe estreante. E eu me irritava com a gerente. Para localizar a documentação da igreja, veio dizer que não a localizaram. Eu disse mas como uma conta ativa, em uso, não tem documentação em arquivo.

   Que, naquela altura, nem seria digital. Engatinhavam aqueles dinossauros de época, lembrem, os computadores PC 386, 486 e seus descendentes. Mas não eram os culpados. 

     Então, eu disse, minha cara, minha esposa está para ganhar nenê, a minha Presidente do Patrimônio da igreja, Lúcia, ora, vocês não conhecem o tamanho dessa mulher, vai soltar os cheques e, caso voltem, processo vocês.

   Eu fui, sem saber dos lances cruciais no Sírio e Libanês, buscar Regina. A essa altura, o técnico da cardiotocografia fetal anteparto, está bom para você esse termo, havia dito, pelo menos umas três vezes, que já ia embora. Mas aparecia alguém atabalhoado para fazer esse mesmo exame.

   Era o milagre em curso. Quando o técnico disse que, finalmente, iria embora, como vinha prometendo, São Paulo atendeu. Se não atendia desde as 17h, atendeu às 17h45min, feito o exame, a quase mãe exortada a notificar o médico e sair dali, direto para o parto.

  Encontramo-nos na casa da sogra. Armamos as trouxas. Rumamos para a São José, no Humaitá, beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, onde nasceu o pai de Asafe. Era por volta de 0h45mim de 21 de abril. Parto ao qual o avô assistiu.

   Vivam as mães! Heroicas. Louvado seja Deus, único em milagres. Bem-vindos, bebês, sobre quem reside a força do Senhor. O mundo tem os seus profetas, desde Noé. Ouçam-nos, portanto.

Onde se fez o exame da avó

   
                              Onde nasceu o pai Isaac   
                       
                           Onde nasceu o neto Asafe

domingo, 22 de setembro de 2024

Uma carta à minha nora

¹² "Ensina-nos a contar os nossos dias, para que alcancemos coração sábio." Sl 90.

  Há várias maneiras de se contar os dias. Assim como várias razões por que contar. A mais tradicional, refere-se aos aniversários. Ano a ano.

  No caso, refiro-se ao prazo de 7 dias. 8, se assim se quiser. 1 semana atrás. No domingo passado. Estávamos todos aferrados a uma grande expectativa.

  Mas ninguém, minha nora, vivenciou-a com a intensidade com que você a experimentou. Uma vida gestada dentro de você. Acalentada, amada e cuidada com tanta expressão.

  Há um sentir que será só seu. Ninguém mais pode avaliar como, a não ser as mães, como a sua, aliás, muito mais ela, assim como a outra avó, que já vivenciaram parecido.

  Mesmo assim sua experiência é única. E agora Asafe está acolhido no teu regaço. Um milagre. Por si, qualquer geração, toda gestação é milagre. Mas este é o seu, tão de perto, também o nosso milagre.

   Ele vai conhecer essa história. O pai, tão perto, todo o tempo, vai atestar, como testemunha. Minha nora, como você nos surpreendeu.

  Eu até acho que teus pais tinham uma pista, um indicativo de tua coragem e determinação. De tua fé, essa herança bendita que, nessa hora, supre mais do que tudo.

  Mesmo assim o exercício dela, a hora, o momento, todo esse desepenho, do qual teu pai teve impacto e guarda na memória o som peculiar, ainda em casa, mas na reta final ficou o traço e memória de vocês dois, papai e mamãe do menino.

  A gente trocava assunto ali na recepção do Sta Juliana. Cada um sabia da sua própria ansiedade. Mas sem detalhes de cada minuto. Sem estar tão perto e próximo.

  Você se superou, minha nora. Eu digo aos outros, permita-me usar o termo, minha nora é uma leoa. Pelo pouco que ainda sei, mas pelo que está marcado em cada um de nós, louvamos a Deus.

   Pelo que você vivenciou, pela presença tão próxima de teu esposo, pela função de cada profissional de saúde, como ele já agradeceu, pelas marcas em tua mãe e teu pai, dessa decisiva passagem.

   Pelas impressões em mim, minha filha e minha esposa. Pela providência de Deus, mais perto do que todos nós, pelo que Ele sussurrou ao seu ouvido, fosse nos nove meses de espera, fosse nos momentos de uma semana atrás, aleluia, seja Deus louvado.

   Chora, Asafe, reclama à vontade. É consolo ouvir. Graças a Deus pelo estresse dessa primeira semana. Vamos, garoto, você já começou a nos ensinar, intensamente, primeiro a essa dupla dinâmica, de seu papai e mamãe.

   E depois a toda a família, a todos que se alegram por tua chegada. Olhar para o mundo nos assusta. Olhar para você, alerta-nos para o agir de Deus e para o poder que há no nascer de mais um bebê.

   A força do Senhor provém da boca dos que mamam. Porque reside na providência de Deus o conforto e o consolo para esse mundo tão sofrido e rebelde. Foi essa a expectativa de Lameque, ao nascer Noé. Esta é a nossa expectativa, ao nascer Asafe.

²⁹ "Este nos consolará dos nossos trabalhos e das fadigas de nossas mãos, nesta terra". Gn 5.

sábado, 21 de setembro de 2024

Asafe, para nosso consolo

    Alarmou. Ligaram para nós. Para tudo. Estamos indo para lá. Eu e Regina nos entreolhamos. Avisamos à tia: para tudo. Avisamos no Quinari que a gente ia ficar no plantão. Era domingo. E que domingo! Asafe iria nascer nesse domingo.

  Só para ter uma ideia, eram 6h38min da manhã quando eu avisei lá na chácara que as contrações estavam aumentando. Mas eles são assim. "As contrações aumentando. Menino preguiçoso", eu falei.

  E somente 19h09min o camaradinha, literalmente, deu as caras. Falar é fácil. Mas, nessas mais de 12h, vejam bem, altos e baixos, ansiedade pura, fomos todos os avôs e as avós para o Sta Juliana. E tome espera.

   A manhã toda em casa, foi de expectativa. Cerca de 11h veio o alarme que, agora sim, estavam a caminho do hospital. Foi onde todos os avôs e todas as avós se encontraram. Ah, sim: e a tia, autora da selfie.

  E foi a tarde inteira de espera. E ainda assim, quando disseram que iniciara o tal trabalho, esse mesmo, de parto, nunca que avisavam que encerrara. Depois, com os detalhes enumerados pelo pai, quase três horas seguidas acompanhando, entendemos que houve o milagre.

  Era domingo. Ainda levei a tia a casa. A pregadora da noite, Cravina, passou por lá para levá-la à igreja. A Ceia, na 2ª igreja, desmarquei, avisando que o menino estava às portas. O outro avô foi pregar, era dia e não havia substituto. Anunciou do púlpito, no comecinho do culto, que era avô.

   Para sempre gravado na memória, pai e mãe, relato aos avôs e avós, qualquer dia o menino vai saber do milagre. Por hora, louvem o Senhor.



Fábrica de Chapéus Mangueira

 
Dr. Sérgio, com a esposa, 
å direita da foto.


segunda-feira, 16 de setembro de 2024

As Vogais Hebraicas

As vogais hebraicas são representadas por sinais que não fazem parte do alfabeto. Na verdade, originalmente as vogais não são escritas no hebraico (elas são pronunciadas, mas não escritas). 

Porém em algum momento foi criada uma solução para  esta barreira, que poderia ter colocado em risco a preservação da língua hebraica e do texto bíblico original. Neste artigo você vai entender como funcionam os sinais das vogais em hebraico, quais são e como surgiram.

Como é ler um texto sem vogais

No artigo anterior nós falamos sobre o alfabeto hebraico. Nós vimos que as letras hebraicas foram criadas para representar sons, mas apenas as consoantes (exceto uma vogal ou outra em alguns casos).

Fazendo uma analogia com o português, vimos um exemplo com os versículos de Gênesis 1:1 e 2. Caso em português nós escrevêssemos sem vogais, como no hebraico, ficaria mais ou menos assim:

“N PRNCPO CRO DUS OS CS E A TRRA. A TRRA PRM ESTV SM FRMA E VZIA. HVI TRVS SBR A FC D ABSM E O SPRT D DUS PIRV SBR A FC DS AGAS”.

Ficaria um pouco difícil para ler, principalmente para alguém que não soubesse falar português. É o que acontece no hebraico. As palavras são escritas sem vogais, e só quem sabe falar a língua com fluência é que consegue ler corretamente.

Para quem está começando a aprender a ler o hebraico ficaria muito difícil – na verdade impossível, pronunciar corretamente as palavras.

Acontece que chegou uma época em que o hebraico já não era uma língua falada por ninguém. Os judeus viviam em diversos países ao redor do mundo, e quase ninguém mais falava o idioma fluentemente.

O hebraico se tornou uma língua “litúrgica”, só era usado nas orações, cânticos e leituras na sinagoga. Já estava ficando difícil para a maioria das pessoas conseguir ler a Torá em hebraico, porque ninguém sabia pronunciar direito, somente as pessoas mais eruditas.

Os Massoretas

Finalmente um grupo de escribas, chamados de massoretas, que conheciam muito bem a língua hebraica e o texto bíblico, tomaram uma providência para preservar a pronúncia do hebraico e o correto entendimento das escrituras bíblicas. Isto ocorreu mais ou menos a partir do século VI.

Eles resolveram criar sinais para representar as vogais hebraicas. Eles não criaram novas letras, para não alterar a escrita original das palavras, apenas acrescentaram estes sinais, que eram pontos e traços ao redor das palavras. Estes sinais são chamados de “Nekudot” (pontos), ou sinais massoréticos.

Para cada vogal foi criado um sinal, e em cada letra foi colocado um deles. Assim ficou preservada a pronúncia dos textos sagrados em hebraico, e consequentemente do idioma, e as pessoas que não sabiam falar fluentemente passaram a conseguir a ler os textos com facilidade.

Imagine agora aquele nosso texto em português usado como analogia, com vogais acrescentadas. Poderia ficar assim:

“No PRiNCiPiO CRiOu DeUS OS CeuS E A TeRRA. A TeRRA PoReM ESTaVa SeM FoRMA E VaZIA. HaVIa TReVaS SoBRe A FaCe Do ABiSMo E O eSPiRiTo De DeUS PaIRaVa SoBRe A FaCe DaS AGuAS”.

Agora fica fácil de ler. Qualquer pessoa que não fala português poderia aprender a ler um texto como este. Todas as vogais estão escritas – de uma maneira diferente, mas estão.

Enfim a escrita das vogais hebraicas – os “Nekudot”

Os sinais das vogais hebraicas criados pelos massoretas ficaram assim:

Observe que cada vogal tem duas formas diferentes de representar: Uma é chamada de vogal longa, e a outra vogal breve.

Foram criadas regras gramaticais bem rigorosas para fazer esta notação. Mas em termos práticos, hoje em dia não existe nenhuma diferença na pronúncia entre estas vogais breves e longas.

Os dois A’s têm a mesma pronúncia, os dois E’s têm a mesma pronúncia, os dois I’s têm a mesma pronúncia, os dois O’s têm a mesma pronúncia e os dois U’s têm a mesma pronúncia.

Em outras palavras, para aprender a ler, você não precisa se preocupar com vogais longas e breves, apenas aprender os dois símbolos diferentes que podem ser usados para cada vogal.

Estes sinais têm nomes, mas absolutamente também não é necessário saber estes nomes para você aprender a ler em hebraico. 

Apenas como curiosidade, ou caso você queira saber, estes são os nomes dos Nekudot – os sinais das vogais hebraicas:

                                                                                         

Temos ainda mais um sinal, que é chamado de “Shvá”, que são dois pontos, um embaixo do outro, embaixo da letra. Este sinal representa que a consoante não possui nenhuma vogal, ou às vezes, dependendo da situação, pode ter som de E também.

Três dos sinais das vogais também podem aparecer com um acréscimo dos dois pontos do lado (o “shvá”), formando o que é chamado de “semivogal” – o que, novamente, não interfere em nada na pronúncia – é apenas um detalhe gramatical.


Resumindo, temos mais uma forma de representar o A, o E e o O, mas também não são pronunciados diferente.

 

Como funcionam os sinais das vogais hebraicas

Os sinais são colocados embaixo das letras. Basta juntar o som da letra (que é uma consoante) com o som da vogal e formar as sílabas.

Por exemplo, a letra “Nun”, que tem som de N,


adicionada a vogal A, que é um traço embaixo da letra, fica assim:

 

Esta sílaba nós pronunciamos NA.

Se colocarmos a vogal E, que são dois pontos embaixo da letra, fica assim:

Esta sílaba pronunciamos NE.

E assim por diante… podemos colocar qualquer vogal para cada letra.

Duas letras do alfabeto podem fazer papel de vogal: A letra Vav ו, e a letra Yod י.

O vav com o ponto em cima tem som de O, e o vav com o ponto embaixo tem som de U. E a letra Yod tem som de I.

 

Estes sinais se mantiveram até hoje, e é a maneira que permite a qualquer pessoa aprender a ler em hebraico. 

Porém, estes sinais são utilizados apenas em Bíblias, e livros litúrgicos judaicos.

Acontece que o hebraico foi restaurado como língua viva pelos judeus, e hoje em dia é a língua oficial de Israel. Como as pessoas usam o idioma, e o conhecem de forma fluente, as vogais já não são necessárias.

Por isto, no hebraico moderno, não se escrevem os sinais das vogais. A língua é escrita da forma tradicional, apenas as consoantes. 

Apenas em livros didáticos e livros para crianças são colocadas as vogais, servindo para ajudar quem está sendo alfabetizado, além dos livros religiosos e Bíblias, que são usados também por pessoas que não falam o hebraico fluentemente.

Nos rolos da Toráְ, que são pergaminhos ainda tradicionalmente manuscritos e usados nas sinagogas, as vogais também não aparecem. O texto aparece da forma tradicional.

 

Porém nas Bíblia hebraicas impressas,  as vogais estarão sempre lá para ajudar.

Se você quer aprender a ler em hebraico, você pode começar agora mesmo assistindo à primeira aula da série de 11 aulas que eu preparei, onde eu ensino passo-a-passo, de maneira bastante prática e simples, a ler cada sílaba.

Fonte:

https://jonathan-frate.com/2018/09/13/as-vogais-hebraicas/


segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Língua grega


A língua grega faz parte das línguas indo-europeias. O grego pertence a um ramo próprio das línguas indo-europeias e vem diretamente da língua protoindo-europeia. O grego moderno falado hoje passou por vários estágios de desenvolvimento. O protogrego, que é derivado diretamente da língua protoindo-europeia, originou o grego micênico. Este foi escrito numa escrita cuneiforme, chamada linear B. Por volta do ano de 800 a.c. foi substituído pela língua grega clássica. Aqui os gregos adotaram o alfabeto fenício e o mudaram com a introdução das vogais. Até o desenvolvimento do grego moderno ainda houve duas etapas: a helenística e depois a era do grego bizantino.

A pronúncia clássica e a moderna do grego diferem-se uma da outra. As graves alterações fonéticas que surgiram ao longos dos três milênios na língua não são visíveis na ortografia. Isso significa que as palavras gregas antigas e modernas são escritas muitas vezes idênticas ou muito semelhantes, mas a sua pronúncia é completamente diferente.

A escrita

A língua grega mudou a sua pronúncia várias vezes ao longo dos últimos milênios. Graças aos esforços para a preservação da língua grega, a escrita grega não mudou quase nada. O alfabeto grego é uma continuação do desenvolvimento do alfabeto fenício. O alfabeto grego usado hoje é composto por 24 letras.

LetraNome (grego clássico)Nome (grego moderno)Transcrição (grego clássico)Transcrição (grego moderno)
A, αAlpha (ἄλφα)álfa (άλφα)aa, αι=e
B, βBeta (βῆτα)víta (βήτα)bv
Γ, γGamma (γάμμα)gáma (γάμμα)gg, γγ=ng, γκ=ng, γχ=nch, γξ=nx
Δ, δDelta (δέλτα)délta (δέλτα)dd
Ε, εEpsilon (ἔψιλον)épsilon (έψιλον)ee, corta-se antes de ι
Ζ, ζZeta (ζῆτα)zíta (ζήτα)zz
Η, ηEta (ἦτα)íta (ήτα)ēi
Θ, θTheta (θῆτα)thíta (θήτα)thth
Ι, ιIota (ἰῶτα)ióta (ιώτα)ii
Κ, κKappa (κάππα)kápa (κάππα)kk
Λ, λLambda (λάμβδα)lámda (λάμδα)ll
Μ, μMy (μῦ)mi (μι)mm
Ν, νNy (νῦ)ni (νι)nn
Ξ, ξXi (ξῖ)xi (ξι)xx
Ο, οOmikron (ὄμικρον)ómikron (όμικρον)oo, corta-se antes de ι
Π, πPi (πῖ)pi (πι)pp, μπ=mb
Ρ, ρRho (ῥῶ)ro (ρω)r(h)r
Σ, σ ou ς (no final da palavra)Sigma (σίγμα)sígma (σίγμα)ss
Τ, τTau (ταῦ)taf (ταυ)tt, ντ=nd
Υ, υYpsilon (ὔψιλον)ýpsilon (ύψιλον)yy, depois de vogais v ou f
Φ, φPhi (φῖ)fi (φι)phf
Χ, χChi (χῖ)chi (χι)chch
Ψ, ψPsi (ψῖ)psi (ψι)psps
Ω, ωOmega (ὠμέγα)oméga (ωμέγα)ōo

Até recentemente foram utilizados os acentos e símbolos para o som fricativo glotal átono no grego. Estes foram introduzidos no período helenístico da língua grega escrita. Em 1982, por um decreto do então presidente grego, este som foi abolido e os acentos foram substituídos por um único caractere que indica a sílaba tônica. Em textos gregos antigos os símbolos são naturalmente usados até hoje.

https://www.aprender-grego.com/idioma-grego.html

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Estudos sobre Karl Barth e teologia pública - Studies on Karl Barth and public theology - Final

 

Cidadania no céu e na terra a partir de Alexander Massmann

A coleção teologia pública (Öffentliche Theologie) da editora alemã Evangelische Verlagsanstalt de Leipzig, editada pelos destacados teólogos Heinrich Bedford-Strohm: e Wolfgang Huber conta com um número que relaciona Karl Barth, cidadania e ética: a obra de Alexander Massmann, intitulada Bürgerrecht im Himmel und auf Erden: Karl Barths Ethik (Cidadania no céu e na terra: a ética de Karl Barth, neste texto utiliza-se como referência a versão inglesa). A tese é de que a ética barthiana resulta na compreensão da responsabilidade pública da igreja levando a uma percepção politicamente ativa de justiça (MASSMANN, 2015, p. xlii).

Nessa direção, Massmann compreende que a ética barthiana, trata das formas práticas em que o evangelho é afirmado de forma concreta, tal relação busca um “[...] labor ético que permite uma transformação que seja crítica, criativa e construtiva” (MASSMANN, 2015, p. xli). Ademais, “[...] como a relevância do evangelho não pode ser separada de formas externas de vida, a igreja encara o desafio de como formas particulares de correspondência prática ao evangelho podem ser advogadas diante de um público mais amplo”. Contudo, essa relevância não deve ser confundida com qualquer forma de monopolização do espaço público, nem mesmo moral ou espiritual. De modo radical, a atuação pública da igreja cristã tem a ver com a graça. “A principal razão para o novo ethos cristão, contudo, pode ser descrita como gratidão” (MASSMANN, 2015, p. xlii). 

Além destes aspectos, a abordagem de Massmann reforça a compreensão de que a teologia barthiana parte de uma perspectiva trinitária dentro da qual a cristologia desempenha um papel decisivo, sendo que a ética cristã estaria voltada à conformação a Cristo e sua cruz. Nessa direção, diante do que chama de “discipulado cruciforme” (“cruciform discipleship”), e da noção de que é na humilhação que o filho de Deus é ainda mais exaltado (MASSMANN, 2015, p. xlviii), se percebem dois movimentos que, de certa forma, sumarizam o método teológico barthiano, a saber, analogia fidei e dialética. A primeira estabelece sua base na precedência da fé e do evangelho; a segunda é demonstrada na tensão paradoxal entre humilhação e exaltação. Ambas chaves, contudo, retornam ao mesmo ponto de partida, a saber, a compreensão da revelação por meio do que se reconhece como Palavra de Deus, em sua base escriturística e, mais profundamente, em Jesus Cristo. Também a ética tem a ver com este Cristo crucificado, na medida em que a teologia da cruz instrui a prática do sacrifício e do arrependimento (MASSMANN, 2015, p. 4). Elementos que, na vida pública, tem a ver com a constante reflexão do humano sobre sua condição sob o pecado, bem como com sua atuação em favor de outrem.

Massmann desenvolve um caminho em que afirma repetidas vezes a precedência do evangelho, elemento que conclui de sua análise de Evangelho e Lei e que utiliza como chave hermenêutica em sua leitura da KD. De forma sintética, portanto, compreende que a ação moral “empresta uma moldura prática à forma como cristãos/ãs articulam seu engajamento com o evangelho. De fato, isto é o que constitui a obrigação moral” (MASSMANN, 2015, p. 439). Tal compreensão da ética, indica Massmann, poderia receber a crítica de ser excessivamente eclesial e com pouca compatibilidade pública diante de um contexto pluralista. Contudo, sua ênfase na justiça social, na responsabilidade pública da igreja, e na tradução empírica do evangelho permitem a construção de pontes com o debate público (MASSMANN, 2015, p. 446). Dessa forma, não apenas o evangelho aponta para a ética, mas também as próprias questões vividas no espaço público podem ser consideradas parábolas do Reino, na medida em que apontam para a misericórdia de Deus em Jesus Cristo (MASSMANN, 2015, p. 447).

Assim, a criação (KD III) enquanto base externa da aliança (KD II) torna-se espaço das possibilidades contingentes que operam para o melhoramento da vida de forma criativa por meio de ações responsáveis (MASSMANN, 2015, p. 459). Com efeito, a ética barthiana encontra uma base marcadamente eclesiológica, isto é, falar de teologia pública a partir de Barth, em última análise, é falar sobre a igreja no espaço público, fato corroborado por suas célebres obras O cristão na sociedade e Comunidade cristã e comunidade civil.

Massmann destaca a constante atenção dedicada por Barth à relação responsável que a igreja deve ter com o Estado civil e com a justiça social. “O aspecto da justiça social recebe clara expressão na KD II/1”. Atenção especial deve ser dedicada aos social e economicamente pobres, as viúvas e aos órfãos. Isto é, Barth recorre à tradição bíblica que pode ser encontrada em textos legais, narrativos, cúlticos e proféticos. Além de estar em consonância com a preocupação de Jesus com aqueles e aquelas que vivem à margem da sociedade. O mesmo acento na justiça social é também encontrado nas primeiras comunidades cristãs. “Tal dimensão econômica e social da ação cristã reflete a prioridade do evangelho em relação à lei, na medida em que a ação social corresponde à libertação por Deus [...]” (MASSMANN, 2015, p. 468-469). De tal forma, pensa-se a igreja enquanto comprometida com o estabelecimento de uma democracia constitucional, fomentando justiça social e atuando na sociedade civil (MASSMANN, 2015, p. 471). Também o papel da economia para a paz e justiça social são pensadas por Barth, em especial a partir de suas elaborações sobre reconciliação e ética, sendo que a questão econômica pode ser ambígua, cabe também aí a luta pela clarificação dos efeitos políticos das escolhas econômicas (MASSMANN, 2015, p. 472-474).

A precedência do evangelho indica também que toda a ação realizada provém de uma outra ação já feita, isto é, para o/a cristão/ã a obra de Deus em Jesus Cristo já está realizada, diante do que resta aguardar seu Senhor. Contudo, esta espera deve ser ativa. “A realização de Deus em Cristo providencia orientação e motivação para uma ação sóbria” (MASSMANN, 2015, p. 474).

O viés pneumatológico barthiano tem a ver também com esta disposição do/a cristão/ã e de sua comunidade de atuarem concretamente na vida pública. “Como o Espírito é o Espírito de Cristo, cristãos/ãs justificados/as não são deixados com apenas um ideal vago de amor, mas estarão ao lado daqueles que sistematicamente são excluídos da sociedade”. Em virtude disso, “cristãos/ãs participarão das dimensões estruturais da justiça legal e social”. A justificação operada por Cristo na ressurreição, neste contexto, “constitui uma parte da responsabilidade cristã por condições justas na sociedade, o que Barth compreende tanto em termos de justiça social quanto de uma democracia constitucional” (MASSMANN, 2015, p. 479). 

A obra do Espírito, portanto, envolve a igreja como um todo em relação com a sociedade, no que pode ser compreendido como salvação em sua dimensão social. Aspecto especialmente desenvolvido em O Espírito Santo e a edificação da comunidade cristã (The Holy Spirit and the Upbuilding of the Christian Community KD IV/2 §67). Além disso, o Espírito Santo aponta para uma ação ampla de Deus no mundo sempre convidando e empoderando a humanidade (MASSMANN, 2015, p. 479-480).

Em resumo, a proposta de Massmann, a saber, de uma cidadania no céu e na terra, conjuga a relação entre evangelho e ética. Isto é, compreende que existem profundas implicações éticas na teologia barthiana. Contudo, sua ética nunca está desligada do evangelho e, portanto, da ação de Jesus Cristo. Em virtude disso, pensa que a igreja deve atuar no espaço público movida por algumas convicções básicas de sua tradição teológica, em especial: o ministério de Jesus que acontece em relação com marginalizados/as e excluídos/as de seu contexto; e a atuação do Espírito Santo que atualiza as relações entre evangelho e ética empoderando cristãos/ãs a agirem na sociedade. Com efeito, Massmann pensa uma íntima relação entre cristologia, pneumatologia e eclesiologia em que cristãos e cristãs são chamados a encarnarem a realidade em que vivem de forma transformadora. Esta dimensão profética da tradição cristã, rememorada por Massmann na opção pela ação junto ao pobre, a viúva, o órfão, aos marginalizados/as e excluídos/as econômica e socialmente, é aspecto constituinte de uma fala teológica que, presente no meio acadêmico, não seja apenas tradução de conceitos teológicos, mas também apelo crítico em relação às estruturas de poder instituídas no espaço público. O bem comum, em especial o bem daqueles e daquelas que mais sofrem constitui-se aspecto decisivo na construção de uma teologia pública coerente com a tradição bíblica e com a ética barthiana.

Considerações finais 

Os estudos sobre Karl Barth e teologia pública rareiam, possuem esparsa divisão temporal e não compartilham de uma mesma conceituação de teologia pública. Contudo, há continuidades na forma com que tratam de Barth. É ponto pacífico que se parta da atuação pública do teólogo de Basileia, ao que se destaca sua reação ao nazismo e seu envolvimento com a Bekennende Kirche (Igreja Confessante). Rasmusson, de forma hábil, soma a esta biografia pública de Barth sua reação ao liberalismo teológico que esteve relacionado com o apoio à política de guerra alemã já no contexto da Primeira Grande Guerra, bem como a decepção de Barth com professores que haviam sido importantes em sua formação e com quem mantinha uma relação de amizade e às vezes até familiar, como no caso de Martin Rade.

É em virtude deste contexto que Rasmusson destaca na teologia barthiana, seu forte cristocentrismo e precedência da fé. Aspectos retomados por Thiemann como elementos importantes para a teologia contemporânea, uma vez que determinariam onde estaria o critério decisório na relação entre fé cristã e racionalidade moderna. Também Massmann lê o complexo barthiano a partir da precedência do evangelho. O acento na centralidade de Jesus Cristo para o fazer teológico está presente de igual modo em Weaver que, ao pensar o contexto de pluralismos, entende que a teologia cristã poderia usufruir desta fundamentação barthiana para o diálogo inter-religioso. 

Assim como Rasmusson, Laubscher parte da noção barthiana de leitura da realidade como ela é em Jesus Cristo. Assim, por ser a base da existência é que tudo o que existe tem a ver com Cristo. Com isso, para Laubscher, a vida pública é aspecto inerente ao pensamento teológico. Na esteira de Laubscher, Senokoane e Kritzinger refletem sobre a realidade sul-africana, propondo uma releitura de Barth como um clássico, mais especificamente as Tambacher Rede, e destacam as noções de Cristo em nós e de comunidade cristã aberta a todas as pessoas.

Além dos aspectos barthianos, cabe também apontar para a pluralidade de compreensão dos autores sobre teologia pública. Laubscher e os autores Senokoane e Kritzinger pensam o público como o contexto sul-africano, tratando da relação entre teologia e sociedade/política. Thiemann pensa o público como a relação entre teologia e cultura. Weaver, por sua vez, tematiza a questão do pluralismo cultural e do diálogo inter-religioso como assuntos de teologia pública. Rasmusson, investiga a teologia de guerra alemã, principalmente representada pelos Deutsche Christen, como uma teologia pública – diante dessas formas de elaboração teológica cabe indicar uma perspectiva de contínua criticidade e auto-criticidade da teologia (cf. ZEFERINO, 2020). A elaboração de Massmann, por sua vez, aloca a teologia barthiana na relação com a cidadania por meio da recuperação de sua ética enquanto engajada com as questões do espaço público por estar embasada no evangelho.

A diversidade do que se compreende por teologia pública nesses trabalhos corrobora a percepção de uma polissemia terminológica, mesmo assim, ao se considerar as relações entre teologia e espaço público e a necessidade de tradução da tradição cristã para dentro dos debates da sociedade, nota-se na teologia barthiana, como perspectiva confessional que vivida em sua profundidade se doa ao pensamento público sobre o humano, a possibilidade de construção de uma teologia pública. Uma antropologia barthiana como aquela ensejada pela ideia de um Cristo em nós resulta numa encarnação na realidade humana de tal modo que o próximo não seja invisibilizado. Além disso, a tarefa contínua de crítica e auto-crítica teológica aliada a um senso histórico de luta contra as injustiças também são elementos presentes na teologia de Karl Barth que podem ajudar a pensar a condição humana nas bases de uma teologia pública.

[1] O texto aqui apresentado é uma versão revisada de material oriundo de nosso tese doutoral intitulada Karl Barth e teologia pública: contribuições ao discurso teológico público na relação entre clássicos teológicos e res publica no horizonte da teologia da cidadania (ZEFERINO, 2018).

Referências

BARTH, K. Dádiva e Louvor: ensaios teológicos de Karl Barth. ALTMANN, W. (Org.). São Leopoldo: Sinodal/EST, 2006.

BARTH, K. Introdução à Teologia Evangélica. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2007.

GEFFRÉ, C. Como fazer teologia hoje: hermenêutica teológica. São Paulo: Paulinas, 1989.

LAUBSCHER, M. On reading Karl Barth in South Africa today: Karl Barth as public theologian? HTS Teologiese Studies/Theological Studies, v. 63, n. 4, p. 1549-1564, 2007.

MASSMANN, A. Bürgerrecht im Himmel und auf Erden: Karl Barths Ethik. Leipzig: Evangelische Verlaganstalt, 2011.

MASSMANN, A. Citizenship in Heaven and on Earth: Karl Barth’s Ethics. Minneapolis: Fortress Press, 2015.

RASMUSSON, A. Church and Nation-State: Karl Barth and German public theology in the Early 20th Century. Die Nederduitse Gereformeerde Teologiese Tydskrif/The Dutch Reformed Theological Journal, v. 46, n. 3-4, p. 511-524, sept. and dec., 2005.

SENOKOANE, B.; KRITZINGER, J. Tambach remixed: “Christians in South African society”. HTS Teologiese Studies/Theological Studies. v. 63, n. 4, p. 1691-1716, 2007.

THIEMANN, R. Constructing a Public Theology: The Church in a Pluralistic Culture. Louisville: Westminster/John Knox Press, 1991.

TRACY, D. A imaginação analógica: a teologia cristã e a cultura do pluralismo. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2006.

WEAVER, A. Parables of the Kingdom and Religious Plurality: with Barth and Yoder toward a Nonresistant Public Theology. The Mennonite Quarterly Review. v. 72, p. 412-440, July, 1998.

ZEFERINO, J. Cidadania e teologia pública: estado da discussão e enfoque na criticidade. in SINNER, R.; ULRICH, C.; FORSTER, D. (Orgs.). Teologia pública no Brasil e na África do Sul: um diálogo teológico-político. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2020, p. 65-85.

ZEFERINO, J. Deus para além da religião: um ensaio teológico a partir de Karl Barth. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST, São Leopoldo, v. 3, p. 187-193, 2016.

ZEFERINO, J. Karl Barth e teologia pública: contribuições ao discurso teológico público na relação entre clássicos teológicos e res publica no horizonte da teologia da cidadania. Tese (Doutorado em Teologia). Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Curitiba, 2018.

https://revistas.pucsp.br/index.php/culturateo/article/view/51826/41035

Estudos sobre Karl Barth e teologia pública - Studies on Karl Barth and public theology - 2

 

Pluralismo e diálogo inter-religioso como temas de teologia pública com base em Weaver 

Allain Weaver, teólogo menonita, concentra-se na relação entre cristãos/ãs e não cristãos/ãs em um contexto de pluralismos. O autor se propõe a tratar a ideia de parábolas do reino, presente na KD IV,3.1, em relação com o diálogo inter-religioso, uma vez que se mostra cético à uma teologia pluralista em princípio e pretende verificar em Barth a possibilidade de se desenvolver uma teologia que esteja apta a receber impulsos não cristãos, mesmo sendo exclusivista. Novamente destaca-se o pano de fundo cristocêntrico de Barth. 

A este respeito, desenvolve Weaver – “Enquanto o reino de Deus é Jesus Cristo, as palavras humanas podem, pela graça de Deus, revelar o reino. ‘A una verdadeira Palavra de Deus torna estas outras palavras verdadeiras’, explica Barth”. Contudo, estas palavras são sempre provisórias (WEAVER, 1998, p. 425). A ideia de parábolas do reino presentes na esfera secular, assegura, para Barth, que não se coloquem limites à livre graça de Deus (WEAVER, 1998, p. 426). A verdade presente nessas parábolas, por sua vez, é julgada pelo fato de apontarem ou não para Jesus Cristo (WEAVER, 1998, p. 430). Além disso, também são pensadas à luz de confissões e dogmas da igreja. “[...] nesta esfera alguma novidade é possível. Parábolas seculares podem alargar e preencher dogmas existentes na igreja e podem até mesmo provocar uma revisão dogmática” (WEAVER, 1998, p. 431-432). Além disso, o fato de provocarem bons frutos ou não também é critério para a assimilação ou não destas parábolas. Ademais, “para que sejam parábolas do reino, elas devem ser ambos, conforto e correção para a igreja”. Desta forma, “a igreja, em outras palavras, será simultaneamente desafiada pelas parábolas seculares a arrepender-se de pecados passados e a viver de acordo com seu chamado e será confirmada nele, i.e., em sua submissão a seu Senhor, Jesus Cristo” (WEAVER, 1998, p. 432). Estas palavras, em Barth, porém, servem em momentos específicos, particulares, não se transformando em normas gerais para a igreja (WEAVER, 1998, p. 433).

Diante deste quadro, Weaver argumenta que “[...] uma teologia barthiana das religiões insistiria na humildade dos cristãos engajados em conversas com não cristãos, além de uma disposição a empregarem rigorosa autocrítica à luz da Palavra de Deus” (WEAVER, 1998, p. 434). Além disso, se poderia reconhecer que palavras e ações de não cristãos podem ser compreendidas como aspectos da Palavra de Deus. “Que o próprio Barth não tem feito esta aplicação não deveria impedir que teólogos o façam hoje” (WEAVER, 1998, p. 435).

Quanto ao diálogo entre as religiões em vistas de uma atuação pública na sociedade, Weaver prevê um caminho mais plausível, a saber, que as diferentes religiões busquem em suas tradições impulsos para esta atuação ética (WEAVER, 1998, p. 438). Para ele, a teologia pública advinda de sua análise de Barth, cotejando também aspectos da teologia de Yoder, seria “uma que testemunhasse ao mundo por meio de sua existência corporativa enquanto simultaneamente recebesse palavras críticas do mundo e (às vezes), nesta base, modificasse a forma de testemunho” (WEAVER, 1998, p. 439). Para Weaver, “uma abertura às parábolas seculares requer da igreja a renúncia de orgulho e autossuficiência; em resumo, ela requer não-resistência” (WEAVER, 1998, p. 439-440).

Weaver, ao receber as elaborações barthianas no contexto do diálogo inter-religioso se mostra bastante cético às tentativas de se encontrar um centro comum entre as religiões que não as diferencie em seus específicos, uma vez que parte da ideia barthiana da afirmação de Jesus Cristo como aquela grande diferença que identifica a fé cristã. Sua argumentação, contudo, leva a um centro comum cristão. Com efeito, o viés cristocêntrico barthiano não parece o mais adequado para o diálogo entre as religiões, uma vez que, como o próprio Weaver relembra, trata da abolição da ideia de religião por ser tentativa humana de chegar a Deus, pois em Barth, o movimento primeiro é sempre de lá pra cá. O viés da impossibilidade de se esgotar o mistério daquilo que historicamente foi chamado de Deus parece mais apropriado ao contexto do diálogo entre as religiões, aspecto que também está presente em Barth (ZEFERINO, 2016, p. 187-193). Lê-se Barth com e contra ele mesmo, uma vez que seu cristocentrismo, apesar de bem sustentado e inclusive necessário em virtude de seu contexto histórico, sufoca sua teologia a ponto de não permitir espaço para que circule o ar movimentado que ele mesmo argumenta ser a força que move o pensamento teológico (BARTH, 2007, p. 37-38). Não seria o Cristo dogmatista (cf. GEFFRÉ, 1989) um empecilho prático ao seguimento mistagógico do Jesus narrado pelos evangelhos? Apesar de preocupar-se com o rechaço do triunfalismo cristão, Weaver parece, desde Barth, pautar-se em um triunfalismo epistemológico ao invés de soteriológico.

Uma relação entre o pensamento barthiano e o contexto sul-africano: a contribuição de Laubscher

A abordagem de Martin Laubscher, desde o contexto sul-africano, investiga as possibilidades de leitura de Barth com base na realidade pós-apartheid. Sua análise se ocupa com o recorte temporal de 1945 a 1956 do corpus barthiano. Além disso, o autor sul-africano também destaca a vida pública de Barth com seu envolvimento político, seja no contexto da Segunda Grande Guerra, seja nos debates acerca da tensão entre Leste e Oeste (LAUBSCHER, 2007, p. 1555), como pontos de referência para pensar Barth como um teólogo público.

Na relação entre o que chama de âmbitos espiritual e secular, Laubscher compreende que não há uma separação radical entre eles, pelo contrário, Barth os veria sob o senhorio de Jesus Cristo, sendo que o primeiro deveria atuar para dentro do segundo. Com isso, o marcado cristocentrismo barthiano é tomado por Laubscher como base para a relação da igreja com o mundo público. Laubscher percebe que, em Barth, “[...] há uma íntima e próxima ligação entre o público e a teologia. De fato, partindo da definida intenção pública que sua teologia possui, qualquer opção forçada entre ambos seria falsa” (LAUBSCHER, 2007, p. 1556). Entretanto, justamente em virtude de seu ponto de partida cristocêntrico, pontua Laubscher, em Barth é importante que se distinga que a precedência está na centralidade de Cristo (LAUBSCHER, 2007, p. 1557). Assim, Laubscher compreende que o pensamento de Barth é teologia pública, mas sendo tanto teologia como pública em virtude da centralidade de Jesus Cristo. O autor segue a argumentação da seguinte maneira:

Desde seu ponto de partida teológico – como a realidade é em Cristo – ele não pode outra coisa senão estar interessado na vida pública. Mais, a intenção da moldura teológica de Barth não é de uma teologia “para” a vida pública, mas, antes, trata-se de pensamento que “é” teologia pública. Barth não quer reduzir ou manipular a teologia “para” interesse público, mas vê a teologia como sendo inerentemente pública. Portanto, ele também claramente argumenta [...] pela necessidade de que cristãos deveriam participar da vida pública de forma inconsciente e anônima [...]. A partir do momento que alguém não é anônimo e inconsciente na vida pública, este alguém vê que o interesse e a participação públicas se tornam um fim em si mesmos e que o teólogo torna-se mais direcionado pelas questões públicas do que pela teologia na e em direção a vida pública. Em suma, para Barth a marca teológica é primordial e definitiva, apenas depois, a marca pública (LAUBSCHER, 2007, p. 1558).

Com efeito, Laubscher identifica o pano de fundo cristocêntrico em Barth. Isto é corroborado por vários outros autores e é uma das marcas mais definitivas e reconhecidas no pensamento barthiano. Verificá-la como base para uma teologia pública em Barth, contudo, é aspecto bem detectado pelo teólogo sul-africano. Não poderia ser de outra maneira, o complexo barthiano é cristocêntrico, evangélico e eclesial. Sua teologia pública não poderia ser diferente. Parte de Deus para só depois enxergar o mundo. O que pode se questionar é justamente a plausibilidade e adequabilidade deste ponto de partida diante dos distintos públicos da teologia (cf. TRACY, 2006).

Barth como um clássico em Senokoane e Kritzinger

Senokoane e Kritzinger, desde o contexto sul-africano, pensam as palestras de Barth em Tambach, publicadas em 1919, que em português são encontradas sob o título O cristão na sociedade (BARTH, 2006, p. 19-46). Pela fluidez do texto, e por compreenderem que o estilo dialético utilizado por Barth neste texto é similar àquele utilizado pelo teólogo suíço ao refletir sobre Mozart, os autores a comparam com um movimento musical. O texto de Barth, para eles, reflete uma forma de teologia que pensa a vida pública (SENOKOANE & KRITZINGER, 2007, p. 1691-1693).

Cabe frisar que os autores se ocupam da leitura de Barth entendendo-o como um clássico, resultado de evento sediado na África do Sul intitulado Reading Karl Barth in South Africa Today, como parte integrante de um projeto maior, a saber, Reading the classics (SENOKOANE & KRITZINGER, 2007, p. 1693-1694). O folheto de divulgação deste evento, citam os autores, afirma: “As ideias de certos teólogos permanecem relevantes e desafiadoras, décadas e às vezes até séculos após suas mortes. Tais teólogos gradualmente se tornam conhecidos como ‘clássicos’ que são relidos e recontextualizados diante de situações sempre novas” (Reading the classics apud SENOKOANE & KRITZINGER, 2007, p. 1694).

Os autores se propõem a fazer um remix, isto sendo entendido como a atualização de uma expressão artística, simultaneamente resguardando a integridade da obra anterior, como contextualizando-a a novos espaços. Assim, eles buscam “remixar a palestra de Barth em Tambach para a África do Sul atual de boa-fé, enquanto sério exercício de recontextualização, explorando sua utilidade enquanto uma teologia pública contemporânea” (SENOKOANE & KRITZINGER, 2007, p. 1694).

Os teólogos sul-africanos compreendem teologia pública em sentido amplo, isto é, enquanto intento interdisciplinar que pensa os aspectos públicos na direção do bem comum (SENOKOANE & KRITZINGER, 2007, p. 1695). É neste sentido que eles leem Barth e o relacionam com o contexto sul-africano em quatro pontos:

1. A partir da noção barthiana de Cristo em nós, que para eles tem a ver com um Deus que se faz presente na história, compreendem que há esperança também para o contexto sul-africano, e esta esperança está baseada na própria pessoa de Jesus Cristo. Assim, cristãos são chamados a participar do movimento de Deus na sociedade (SENOKOANE & KRITZINGER, 2007, p. 1697-1698).

2. A noção de Cristo em nós baseia a visão de uma comunidade cristã aberta à todas as pessoas. Atestam, assim, “a necessidade de se desenvolver uma nova cultura congregacional, na qual a igreja se torna a igreja que vive enquanto a comunidade do abrangente reino de Deus”. Ademais, “uma teologia pública, portanto, não começa por comunicados de imprensa ou pela crítica às autoridades por suas falhas, mas pelas congregações locais que experienciam a real presença do ‘Cristo em nós’ se tornando ‘edifícios abertos por todos os lados’” (SENOKOANE & KRITZINGER, 2007, p. 1699).

3. O terceiro ponto tem a ver com a compreensão/entendimento que os cristãos e a teologia devem ter do contexto no qual estão inseridos. “Barth enfatiza que ‘os cristãos na sociedade’ precisam entender a sociedade a seu redor” (SENOKOANE & KRITZINGER, 2007, p. 1700). Esta forma de compreensão contextual, para eles, não se trata de “um conhecimento abstrato, mas uma inclusão engajada e comprometida de pessoas e situações”, além de “[...] fomentar ações para transformação desta realidade no vindouro reino de Deus de paz e justiça” (SENOKOANE & KRITZINGER, 2007, p. 1705).

4. Senokoane e Kritzinger também enfocam a noção de perdão que, para Barth, estaria carregada de uma força de transformação para a sociedade (SENOKOANE & KRITZINGER, 2007, p. 1707).

                Os autores se dedicam a ver como que uma teologia pública de base barthiana pode lidar com temas candentes da sociedade como a questão da pobreza. Este desenvolvimento teológico, mesmo não tendo sido tratado por Barth em Tambach, merece atenção e carece de interdisciplinaridade em virtude da complexidade da questão. Mas compreender o contexto não é o suficiente, cabe “[...] fazer parte do Não de Deus ao mal, sofrimento e opressão na sociedade”. Isto é, trata-se de pensar uma teologia que promova um engajamento concreto na vida pública no horizonte da transformação desta realidade (SENOKOANE & KRITZINGER, 2007, p. 1712).

Também Senokoane e Kritzinger destacam a centralidade cristológica na obra barthiana, desta vez por meio da noção de Cristo em nós. Contudo, o viés ético de sua abordagem visibiliza uma cristologia mais dinâmica. Além disso, a proposta de se ler Barth como um clássico, ensejada pelos teólogos sul-africanos, mostra como que as teologias que se entendem como públicas hoje, podem haurir de desenvolvimentos teológicos de outros contextos, seja por pontos de contato entre distintas situações, seja pela perenidade de determinadas alegações.

https://revistas.pucsp.br/index.php/culturateo/article/view/51826/41035