domingo, 20 de dezembro de 2020

Jornada Teológico-Natalina

     Vou comemorar 40 anos de bacharelado em teologia no ano que entra. Pelo porte do seminário onde estudei, aliado às tradições eclesiástica e familiar em que fui formado, posso afirmar que dois vieses se configuraram.


      Aquele que provinha dessas três tradições mais conservadoras, que incluíam seminário, igreja e família, e a que tinha seu curso desconhecido por mim, até o inicio da minha jornada, em 1978, mas de marcante e determinante história acadêmica, desde a virada do século XIX para o XX.

       Mais ou menos, vamos classificar como segue, a diferença entre comprar livros na antiga Livraria Evangélica, da UESA, ali próximo ao Campo de Santana, ou nas Edições Paulinas, ali próxima à 7 de setembro, esquina com Rio Branco. 

     Ou ainda definido de outra forma, a configuração da diferença, como a própria tradição conservadora define, entre a alta crítica e a baixa crítica. Esta apenas define, entre as famílias de manuscritos originais da Bíblia, a melhor leitura derivada do cotejamento dessas fontes escritas. 

      E a outra, derivada de questões acadêmicas mais exigentes, como a classificação dos variados gêneros literários das Escrituras, o ambiente em que foram escritos, seus autores, as variadas críticas essenciais à definição da formação dos textos, como a histórica, a crítica da redação, a crítica da tradição, a crítica das fontes, a crítica das formas etc.

      O que se aprendia, como herança da escola teológica de nossos pais, legada pelos líderes estrangeiros, ligados à história dos seminários evangélicos que cada antiga denominação avaliava como essencial implantar estava, uma vez levada em conta essa tradição acadêmica, principalmente na história do texto bíblico, repleta de nomes alemães, escandalosamente desatualizado.

     Portanto, afirmações que ouvíamos nos cultos domésticos, nas escolas dominicais e nos seminários tradicionais, por exemplo, dizendo que Moisés era o autor do Pentateuco, caso fossem mantidas ou continuassem a ser sustentadas, o grupo que nela de aferrasse seria considerado alienado, quem sabe, coisa pior como, por exemplo, fundamentalista, termo este hoje satanizado (que me desculpe o Inimigo, pela ofensa) em qualquer contexto.

       Embora seja simplório hoje admitir que, na travessia dos 40 anos pelo deserto, Moisés achava tempo para, na sua tenda, uma mistura de recanto particular de hospedagem, tabernáculo e tenda dos litígios, com aquela fila de gente que Jetro destacou, ele ainda encontrasse tempo para alinhavar seu pentagrama, se é que houve uma peregrinação de 40 anos pelo deserto, esse processo, essa migração entre autoria/não-autoria de Moisés é apenas a ponta do iceberg.

      Por detrás dessa questão inicial está toda a postura de uma geração em relação ao lugar das Escrituras e, consequentemente, um modelo de Deus. Porque, do modo como o protestantismo vincula Palavra de Deus ao que está escrito na Bíblia, caso se inicie, como ocorre nesse processo acima indicado, já por todo o século XX, um modo diferente de se encarar as Escrituras, muda-se a personalidade de Deus, muda-se Seu modo de falar e se lançam à teologia novos fundamentos. 

      Não mais dizer ou, mais adiante, ridicularizar que, por exemplo, como aprendíamos nessa biblioteca da virada do séc XIX ao XX, até o pós-guerra, nos livros traduzidos do inglês pelos missionários pais dos seminários, que a inspiração das Escrituras era verbal-plenária, negar isso, por mais que seja ridículo hoje admitir, não se faz impunemente.

      Antigamente, para situar na cronologia do contexto acima indicado, Deus tinha uma fonte única e segura, endereço certo e palavra clara, célebre conquista da Reforma, uma de suas 5 colunas, 5 solas, sola escriptura. O que, aliás, para católicos, nossos vizinhos aí do lado, diante de quem construíamos os edifícios da formação teológica, da tímida produção de textos acadêmicos e até nossa própria atividade missionária e evangelística, esses vizinhos nunca se ligaram nessa história de sola escriptura.

       A Bíblia para eles tem uma solidez diferente da que tinha (o uso deste verbo aqui, no pretérito imperfeito, e põe imperfeito nisso) para nós. Dizer isso aqui é fundamental para este texto: "tinha" significa "não tem mais", pode ter teoricamente, mas a prática desagregou-se, tornou-se indigente e despersonalizada. Porque se mexeram na concepção da Bíblia como documento-fonte, e isso foi ocorrendo à revelia da formação teológica, da escola dominical, do púlpito, da práxis "evangelizadora" e missionária dos protestantes, perdeu-se uma identidade. 

      Ok. É pueril dizer que Moisés escreveu o Pentateuco. Mas não é só isso que foi dito. Porque quando se nega que Moisés, ao menos, foi uma personalidade histórica, toda a sua conversa com o Altíssimo vira uma peça literária não literal. Ora, negando-se a existência histórica dele, não se faz impunemente, porque entra no caldo toda a história dos patriarcas, ou seja, a relativização se torna geral para trás e para adiante. 

   Porque estamos falando de um método. Welhausen (1844-1918), para falar de um nome, aliás, um tanto desatualizado mas é o pai da teoria documental de formação do Pentateuco. Fez escola. Ou outro, Alfons Weiser, este a respeito da desmistificação sobre a ideia de que os milagres no Novo Testamento são literais. Em seu opúsculo, O que é milagre na Bíblia, que adquiri ali na lojinha da Edições Paulinas, no centro do Rio, no meu tempo de bacharelado num seminário conservador, o único "milagre" que esse autor não desmistifica nos evangelhos é o da ressureição de Jesus. Diga amém, irmão.  Glória a Deus!
    
      Portanto, o método percorre toda a Bíblia, At e Nt. É o método TNT para as Escrituras que, com a alienação e despreparo de nossas escolas teológicas, aliás, esvaziadas, com o púlpito medíocre, com as escolas dominicais fechadas, com a crise na família (esta, desde já nos tempos do Woodstock e do Vietnam), não mais existe uma fonte segura de referência para a voz incontestável de Deus. Puxou-se, há muito tempo, na surdina, o tapete dos protestantes. Vamos voltar no tempo, quem sabe, para a era do menino Samuel, quando a palavra de Deus era rara, caminhado para dentro, no Túnel do Tempo, do período dos juízes, quando cada um fazia o que achava mais certo. 

       Mas cuidado! Campo minado! Pode ser que nossos heróis dos tempos de nossa saudosa escola dominical absolutamente tenham existência histórica garantida. Talvez nunca tendo dito o que se afirmava que eles disseram. Faça com cuidado sua viagem no tempo. Diga aleluia comigo, irmão. Deus mudou de endereço. Talvez seja um monje, a surgir com nova personalidade. Afinal, metamorfoseia-se de acordo com a escola bíblico-exegética da hora. Vamos ao surfe. Identifiquemos nossa aposta no páreo da hora. Afinal, o texto bíblico foi formado a partir de escolas do texto fragmentado, sucessivas edições e revisões. É necessária toda uma iniciação para compreender esses meandros em meio aos quais existe a possibilidade de se encontrar a fala de um Deus. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário