quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Necrópole

   

        Uma brisa suavisava um brilho opaco do sol, nu'a manhã não tão quente de primavera, sobre a extensão dos jazigos, naquela quadra, dispostos simetricamente, como enormes tijolos maciços emergindo do chão, desenhando alamedas precisamente delineadas, a grande maioria deles com lápides de mármore negro bem polidas caracterizando, naquele ponto da enorme necrópole, uma fase bem definida no tempo de ocupação, exatamente pela exata semelhança deles todos entre si.

      O menino costumava vir sempre ali. Aliás, nem tanto menino, pois tinha lá seus 14 anos, corpo e compleição de 16, maturidade ainda mais à frente. Casa regida por mulheres, morava com avó, mãe e irmã maior, talvez fosse mesmo a mente precoce herdada do pai, que o fazia assim ter projetado para além de si o físico, o metafísico e o psicológico. Raul. O nome do pai. Aliás, não por coincidência, ali estava sepultado o primeiro Raul. 

       Nem tanto por isso, porque não estava próximo ao túmulo do pai. Era noutra parte, porque ali onde estava era o lugar no qual, de quando em vez, vinham os dois para as conversas, muitas outras do que somente as fúnebres, embora a visita, a pretexto, era didática, dizia o pai, para preparar o filho para aquela realidade, dizia ele. Nem tanto, porque seriam desnecessárias tantas e tão frequentes vindas, pois mais do que preparado o menino já se sentia. 

      E um dia havia argumentado exatamente assim com o pai, quando percebeu que a fluência dele nas conversas, a intimidade com as diferentes quadras, alamedas e jazigos, a visita às outras alas daquele campo santo, com as menções, por exemplo, ao mausoléu dos Alencastro, ali, dos Schneider, aquele mais antigo, dos Gouveia de Sá, esse mesmo aí, defronte de você, tudo arquivo seletivo de nenhuma visita anterior com ele, certamente de outras jornadas anteriores, com mais certeza ainda várias e muitas outras visitas anteriores. 

     O vô te trazia aqui? Não! Repondia o pai enfática e frisadamente. Não, absolutamente. Seu avô tinha um medo inconfessável da morte, sentia-se arredio a cemitérios, poucas vezes o vi em sepultamentos, fossem de parentes ou amigos íntimos. Não faltou ao de sua avó, com certeza, porque nesse eu vim com papai, e no dele mesmo, evidentemente. Fora isso, pouquíssimas vezes. 

      Então de onde vem esse seu apego por visitas a cemitérios? Perguntava ao pai ainda muito cedo na idade, porém já veterano nas visitas. O pai olhou para ele com olhos arregalados, como a surpreender-se com a lógica da indagação, para logo, refeito, responder não sei, nunca soube.

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