Há muitas tradições de família, uma delas tio Onésimo deixou, de escrever textos. Dele não herdei humor nem rima, mas, pelo menos, mania.
Impossível, mesmo injusto seria não retratar num desses textos a nobreza do Barão e sua Baronesa. Dele, o garbo. Dela, esse sutil olhar de suave lucidez.
"Tia" Nice. Eram Leila, a Russa, mais branca de todas, Labrego, esse escriba, Cabrita, tia Gi, a corrigir, se não me falseia a memória, a Madrasta, com muita injustiça, o apelido de "tia" Nice.
Se eu a chamasse Nice, vinha a envergadura do olhar e a autoridade da pergunta: "O quê?". Eu ria por dentro, escondido, arregalava olhos por fora, consertando baixinho, balbuciando apenas: "Tia Nice".
Neto homem mais velho, testemunha ocular de toda essa pândega, como dizia o eterno (e sempre sorridente) primo Moisés, eu era, com muita gozação, o sobrinho "criado segundo os livros", como espalhava Cid aos quatro ventos o requinte de seus métodos.
Sempre esbarrei na autoridade da "tia" Nice. Levado, diriam as tias, danado, dizem os acreanos, até dela ensaiava abuso, como no dia em que, sorrateiro, descobri seus pés, ali, no quarto do meio da casa da vó. Ali dormia Nice, senão sozinha, com companhia, evidentemente, subordinada a seu gênio.
Tisque, se foi esse o som do muxoxo que ela emitiu, mostrando o rosto de toda a sua imposição, por detrás do lençol com que se cobria. Bastou. Essa mesma autoridade e olhar que, se não me engano, fosse na praça de Nilópolis ou na ponte da estação lançou sobre Dante.
Aliás, sempre o chamei "Dante", referindo-me ao Barão, mas "Tia Nice", à Baronesa. Toda a vida foi assim. Mas voltando ao olhar, Dante, como se dizia, caiu na asneira de posar sua mão, claro que inocentemente, no ombro de Eunice.
Lançou-lhe olhar, percorrendo da ponta dos dedos dele no lugar indevido, ao fuzilamento com os olhos nos olhos dele. Dante fez sua primeira leitura. Olhar imperial. Toda a sua vida seria de fazer essa mesma leitura, entendeu, Dora?
A mofa dos amigos foi avassaladora. Ele podia ficar sem essa. Mas planejou vingança."Vou me casar com ela". Cumpriu. Até poderia ficar sem essa, mas jamais sem "tia" Nice. Vingou-se. Doce vingança. Talvez seja essa uma das leituras do olhar da Baronesa.
Será que, disfarçadamente, no olhar acima, tenha visto, de soslaio, o garbo do Barão, e pensado rápido, mas seguindo nessa concentração, confabulou consigo: nada adianta essa sua pose. Somos namorados. Acompanhei um pouco dessa trajetória.
Não sei quem inventou a moda, não importa, mas pior Dorcas que me vestiu com gravatinha borboleta, camisa de requinte, paletó e, ora vejam, bermuda para o dia desse casamento. E ainda acho que tiraram foto...
Vó Belém e vô Alberico, sargento, combinando com o temperamento da nora. Daí donde vem toda a tradição do Barão. Raízes. Porque a nobreza deles é aquela absoluta. Também forjada por tradição. Mas recamada sem pedigree, como seria se houvesse raízes de nobreza meramente humana. Desnecessário.
Dante ainda recebeu outro tempero. Calibrado ainda antes de casar, por Eunice, apegada, por fé genuína, a sua igreja. Sim, porque a Baronesa, como comenta Paulo Apóstolo, sempre trouxe consigo essa fé sem fingimento que, como no caso de Timóteo, vinha desde a (bis)avó.
Uma fé Rufina. Certa vez, no namoro, Dante caiu na besteira de reclamar desse apego à igreja. Fosse por esse ou por outro motivo, talvez até pelo cheiro do cigarro, desfizeram o namoro. Fase em que ele caiu doente.
Não acompanhei só o casamento. Nessa fase, não o visitei no hospital: a idade não permitia. A memória só me lembra uma conversa distraída com um funcionário, enquanto Dorcas subia para vê-lo. Estava no "corredor da morte".
Nem o enfermeiro acreditava nele quando prometia que iria sair dessa. Precisava casar com Eunice, ora. Se foi nessa, pouco antes, pouco depois, a conversão do bisavô, Dora, não se apresse: ainda vão te falar da natureza dessa fé.
Eunice, como se diz aqui, botou no doze. Saiu crente daquele hospital. Crentes são a vida toda. Recamada nobreza. Foi assim que meus tios bisavós marcaram minha vida.
Filho único e solitário, acompanhei todos os ciclos e peregrinações por todas as casas onde residiram. Caxumba, papeira, como dizem aqui, peguei do Lincoln, em Belford Roxo.
Dante nos levou ao mirante de lá, de onde se avistava até o Pão de Açúcar. Será que vão confirmar essa memória? A papeira me custou uma segunda temporada no Ebenézer, para onde eu iria dia seguinte do retorno ao Méier.
Provavelmente janeiro de 1968, se essa data combinar com B.Roxo, "Broxo", como dizíamos estar escrito nos ônibus. Acordei, quarto de hora a quarto de hora, naquela noite, engolindo Pastilhas Valda, em oração, para que a agonia na garganta não fosse a caxumba.
Pois ela inchou até o peito. Por vingança eu não queria repouso. Dante advertiu que, caso eu não "sossegasse o facho", Isaac e Ana Luísa jamais nasceriam, porque a papeira desceria.
O moleque danado perguntou: "Ora, Dante, como assim, os filhos não vêm delas?". Ele arregalou olhos e saiu rápido, como é seu feitio: "Essa conversa pergunta pra teu pai...".
Olhar irônico de Eunice. Será que, por detrás dessa armadura que fingiu vestir por toda a vida, havia suave lucidez? Certamente. Sempre soube onde queria chegar. Dante sempre reclamou sem razão. Doce vingança.
Semente também vinga. E nobreza também tem dois sentidos. Um deles, relativo e limitado pelo pedigree. O outro, recamado pela história que se constrói. Agora, Dora, eu entendo o seu sorriso, quando ri para os dois lados das histórias de seus bisavós.