quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Necrópole - II

       Naquela manhã sentado na tumba costumeira, embaixo da árvore que a abrigava, contemplava toda a extensão, até onde os olhos alcançavam. 

      Como se fossem domínios íntimos, reconhecia os estratos de ocupação de todo aquele espaço. Conhecido dos funcionários, sabia de todas as quadras, desde o sítio ocupado por restos de covas de escravos, pretexto de um cemitério ali, passando pela aristocracia do século seguinte, cantores famosos e artistas que se seguiram, até os menos interessantes por serem mais recentes e, por isso mesmo, desprovidos da criatividade, simbologia e arte dos anos idos.

     A parte preferida por ele era essa dos jazigos simétricos. A árvore era uma amendoeira imensa, pela expessura do tronco e altura da copa, quase centenária. Não sabia se vinha ali para se sentir próximo do pai, se bem que as memórias que nutria ali nem sempre se referiam a ele, com quem fora muito colado. Despertava até certo ciúme da irmã, crivo da mãe e observação atenta da avó.

     Mas sem dúvida sua presença ali tinha relação com o costume herdado. Era como que seu domínio. Tudo ali era conhecido por ele. Vielas, caminhos, pássaros, os micos eventuais nas árvores, os cahorros vadios, aos quais alimentava e batizava com nomes, a atividade e turno dos funcionários, incidência maior e menor dos féretros, bem como o seu nível social, religião, estilo típico e expressividade dos lamentos, enfim, conhecia tudo dessa cidade.

      Não procurava esse expediente. Mas sua ida eventual, sem que para isso houvesse previsibilidade, o fazia esbarrar, vez por outra, com toda a rotina. Observava de longe. Nessas horas era como se, no íntimo, viesse a imagem do pai. Era uma espécie de diálogo com ele, entenda bem, nada de místico aqui, que não que somente descobria um ponto de identificação ou, mais uma vez, vislumbrava os mistérios que envolviam sua memória do velho, numa maneira de se encontarem novamente. 

       Que não morrera velho. Casado aos 28, com sua mãe, dois anos depois nascera Rauana, mania de tentar assemelhar o nome da menina com o nome dele, quatro anos depois nascera ele, tinha 15, o pai morrera quando ele tinha 12, então, pela matemática antiga, como o pai dizia que o avô dizia, morrera aos 47 anos. Infarto fulminante. 

     A história que Meridiana, mãe da mãe, que morava com eles, contava era que ele tinha, na família dele, antecedentes com esse mesmo problema, diz que por parte de mãe, contava a avó materna a respeito das coronárias da avó paterna. Mas, ora bolas, costume frequente da avó mencionar, divertidamenete imitado por Rauana e Raul, "ora bolas", ele não se cuidava, ele nem ligava, não dava atenção ao que os próprios pais deles diziam, comentava, enfaticamente, a avó. 

     Tá bem, mamãe, tá bem. Já sabemos disso.  Ela não gosta que eu lembre isso, comentava, a respeito da filha. E acabava ali a conversa, apenas com mais um "pois é" da avó, que dizia arregalando olhos para um dos lados, homilética. Era uma família na qual todos reconheciam a economia da fala. Aliás, costume implantado pelo Raul.

    
       

      

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