quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Necrópole - III

      Fascinara Laura. Mulher, de si, perspicaz, que poderia ter sido ou nascido desligada, como sua mãe, que era pessoa boníssima, mas desprovida de malícia, urgia ser como Jesus diz no Evangelho, "prudente como serpente, símplice como pomba", mas Meridiana era só símplice. Laura não.  Aprendera toda a sua sagacidade com o pai, filha única que fora. 


     Divertiam-se os dois, ela e o pai, Virgílio, com a distração inata da mãe. Mas, vigiada pelos dois, nunca se comprometeu por causa de sua inocência. Também, a época ajudava. Os contraventores do tempo eram românticos, muito diferente da malícia atual, pernóstica e cruel. Por causa dessa herança do pai, arguta, meticulosa e observadora, que Laura, uma única vez tendo posto os olhos em Raul, viu nele sua alma gêmea, por favor, aqui, mais uma vez, advertido ser força de expressão, nada místico. 

      Estavam no pré-vestibular, coisa daquele tempo. Laura já havia observado Rual, fala macia e silenciosa, como se fosse, em meio ao grupo barulhento de amigos, um ente à parte. Não entendia, ao mesmo tempo que passou a entender como que podia todo aquele refinamento de porte no meio de toda aquela algazarra e puerilidade.

     Mas de longe apreciava o modo como Raul geria tuďo a sua volta. O modo como interferia. Como ele ria. O sorriso dele era desenhado, calculado, como que se cada traço do produto final, do esgarçar final, completo, cada traço fosse estudado, meticulosamente, por um desenhista, um artista, alguém de fora, isso, o sorriso dele era como que um desenho de artista naquele rosto. E que rosto!

    Foi raciocinando assim que, pela primeira vez, ele cravou nela o olhar. Mostrou-se assustado. Ela embranqueceu e suou frio. Ele então, modulando para um meio sorriso, lábios entreabertos, deslocou-se do grupo e caminhou na direção dela. Olhos dele cravados no olhar dela que, ainda que tomada pelos humores de todas as emoções, por causa do flagrante de ter sido enquadrada por ele com olhar fixo nele, manteve seus olhos cravados no dele, como estratégia, desafio e defesa.

     Com licença, disse ele. Deslocara-se do espaço externo da sala, para entrar pela fileira de cadeiras, dessas de um só encosto para o braço, de antigamente, nos cursinhos pré-vestibulares. Pois não, fique à vontade. Sentou -se. Como é seu nome? Laura e o seu. Raul, muito prazer, disse estendendo a mão. Máscula, como o rosto, e enorme, não que fosse tão alto, quase que alguém poderia até considerá-la maior do que ele: não era. Ele era uns 2 cm mais alto.

      Ela olhou a mão antes de a tocar no aperto. Herdei do meu avô, disse ele, bem, assim dizia minha mãe. Eu não conheci meu avô. Ela assustou-se, como que se lhe adivinhasse o pensamento, observador, ela já sabia que ele era, não deixou de se arrepiar, muito de leve, porque junto com a observação do tamanho da mão, ela havia se imaginado totalmente tocada, tactilmente, por ela.

       Pensou que pensamento ele não poderia ler. Manteve o mesmo olhar. Você é observador. Nem tanto, custei a notar você, ele disse. Tocou um sinal. Movimentaram-se para entrar. Tem alguém aqui? Sempre tem, ela disse.  Sim, era muita gente, para pouco espaço. Sexta. Único dia de aula de Química. Ele reparou que não havia material especificamente naquela carteira ou, à volta, que caracterizasse ocupação. 

     Posso ficar aqui? Ela olhou sem alterar seu rosto. E o seu material? Acompanho com o teu. Olhou de novo, mantendo a mesma expressão neutra. E Laura copiava e anotava. Ele, sinceramente concentrado, acompanhava as explicações, qualquer hesitação de Laura ele interferia, explicando, olhavam-se de vez em quando, e assim foi. Não pararam mais de sentar-se juntos, já sorriam um para o outro, foram se tornando íntimos, andava mais com ela do que com o grupo, até o dia do primeiro beijo. 

      Ele demorou ali mesmo, dentro da sala, sentados juntos, com o dedo nas anotações dela, olhos na explicação do professor, aqui, ele disse, isso aqui que ele tá falando, ela olhou para a lousa, ainda de giz, naqueles idos, olhou para ele, olhou, nas anotações, para onde ele apontava, olharam-se de novo, desta vez, ela como que num sobressalto, prevendo, nessa demora de se encarar, ele ainda com o dedo nas anotações dela, indicando o lugar da dúvida, avançou de modo suave, alcançou os lábios dela, beijaram-se, ali mesmo, dentro da sala do cursinho, bem umidamente, fechando os olhos, nem muito e nem pouco tempo, mas o suficiente para perder a explicação do professor.  

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