quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

A última noite - Parte 1

 
   
    Meu pai bem contava sobre essa noite tenebrosa no hospital São Francisco de Assis. Ele próprio confessava que tinha medo de morrer. Mas naquela noite, não foi a vez de meu pai.

    Que até me confessou que, uma vez tendo, e pela primeira vez, assistido de tão perto a morte de alguém, perdeu de vez o medo por ela. Ou, pelo menos, foi efusivo que trabalhasse, daí para a frente, mais efetivamente contra. 

     E venceu. Mas o companheiro de enfermaria perdeu. Saiu da vida. Mas meu pai contou que o fez de maneira inusitada. Xingou o tempo todo e xingava a todos, desde a própria vida ao ambiente onde estava, com todos dentro, quem do leito se avizinhasse, fosse quem fosse, do plantonista ao funcionário da faxina, passando por enfermeiros e capelães.

     Sem contar a blasfêmia. Palavrões, principalmente, chulos e chucros, maldições, imprecações, enfim, maldisse a própria morte que, enfim, o arrebatou. Muito menos do que está aqui meu pai, fonte de tradição oral, me repassou. O ambiente e o mais, até aqui, foi enunciação. Pura e simples. 

   Mas o que segue é ainda mais inusitado. Principalmente para o nosso protagonista. O anônimo companheiro de Cid, meu pai, na época já viúvo e solitário. Uma vez morto, achou-se numa antesala, mais propriamente um cubículo, para o qual não tinha tempo para expressar sua opinião, pois se detinha na estranheza consigo mesmo. 

     Era inesperado, assim avaliava, primeiro a cor. Desde suas sandálias, passando pela veste talar alva, estava todo de branco. No início, pensou no ridículo, visto que não usava, no plano humano, essa cor como preferência. Aliás, divertia-se, com deboche quando via, principalmente, sambistas de branco, desde o chapéu até os sapatos. Implicância pura.

    Aliás, lembrou disso e não deixou de pensar, pura vingança. Surpreendia-se ao saber que a memória estava mais ativa do que nunca, enquanto intuía onde estava. Pelo exíguo da metragem quadrada da saleta, supôs mesmo ser a antesala. 

     Deu-se conta. Foi quando sentiu outra presença com ele. Muito rápido pensou, mas como entrou, muito rapidamente se perguntou, procurando uma porta, para imediatamente atinar com dois fatos: no lugar onde estava, entrar num cubículo sem porta não era incomum, ainda mais para a pessoa, com "P", pensava. 

      Estranhou que se sentisse assim, tão à vontade, ainda mais que, como num lapso, lembrava quem era e, mais ainda, como deixara a vida. Ficava perplexo consigo mesmo porém, mesmo assim, sentia-se à vontade. 

     Foi quando ouviu o Ancião que, ao mesmo tempo estava e não parecia estar ali. Fique à vontade, ouviu-o dizer. Ia responder, mas preferiu continuar calado. Foi quando ouviu de novo: é bom reativar a memória. Se há um lugar onde reativar a memória é muito requisitado, esse lugar é aqui. 

      Agora achou que deveria falar. Ficar mudo ali, além da conta, ainda que fosse diante dEle, não tinha sentido. E não se iria longe nessa mudez. Era uma presença que induzia a que se falasse. Eu me senti esquisito.

    Isso é natural aqui. Plenamente esperado. A conversa iniciou com fluência, como sempre ocorria, sempre esperado, e num lugar onde tempo e quantidade de gente, bate-papo sem hora para acabar não fazia a mínima diferença: fazia sempre a máxima diferença.

     Me sinto estranho, desde a roupa... Figurino típico daqui, debochou o Ancião... Sim, quase sorriu o anônimo da enfermaria que morreu xingando, literalmente, Deus e o mundo.

     Não esperava estar aqui. Realmente, não é todo mundo que passa por aqui. Há quem não vem. Isso era compreensível, ele refletiu, mas veio à sua mente será que todo mundo passa por essa antesala?

    Não. Explodiu a resposta em sua mente. A conversa era muito interessante. Ao mesmo tempo se sentia a presença e não se sentia, via-se uma imagem, e não se via, ouvia-se um timbre de voz e não se ouvia. Agora, após esse raciocínio, ele teve a nítida impressão de ver rir o Ancião. 

     Sem que se contivesse, quer dizer, então, que se ri no céu? Assustou-se muito com sua pergunta. Espantou-se de a ter feito. Soava como se fosse atrevimento ter dito desse jeito e naquele tom.

    O que mais se faz aqui, foi a resposta. Rir. Conteve-se, para não se ver, de novo, passando recibo de seus espantos, mas o que mais o sacudiu por dentro foi ter chamado de "céu" o lugar e o Ancião nada ter dito a respeito. Ora, então estava na antesala do céu. 

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