Irritadíssima estava. Apressada, naquela manhã, tanto quanto nas outras, porque era hiperativa, cortara, pela direita, o carro de um desavisado.
Grosso. Grosso, aumentou o tom, você é um Grosso. Estúpido. Meu Deus! Ai, meu pé. E olhou de novo para o rapaz. Não enxerga, comprou essa carta?
O rapaz era calmo. Vamos resolver, vamos resolver. Na calma, tudo se resolve. Calma! Calma! Já ela, gritava. Porque não é o senhor. Eu vou retirar sua Biz. Já chamei o SAMU... Quem mandou, pra que SAMU?
O seu tornozelo está luxado. Vamos liberar o trânsito aqui e aguardar o socorro. Posso ajudá-la? Tira a mão! Tira a mão! Ele ia dizer então vire-se. Mas disse só com o rosto, fazendo uma cara de desagrado. Ela notou.
Levantou-se num pé só. Ele foi ajustar o carro à frente. Ela quase cai. Amparada por um popular. Rosto de dor. Ele empurrou a porta do carro. Veio ver. O cara que a amparava olhou para ele, como que reprovando, que fosse ajustar o carro, largando a moça ao solo.
Ele justificou-se, ela não quis minha ajuda. Ela fez cara de contrariedade de novo. O rapaz a amparou, para sentar-se ao meio fio. Ela tonteou. Mais do que depressa, ele correu, sentou antes, amparou-a ao colo.
E ficou assim, esperando a ambulância. Chegaram. Os socorristas foram reanimá-la. Ela assustou-se, viu o rosto do homem. Calma, disse a socorrista. Ela fez feição de incômodo. O outro já dizia houve fratura.
Ela olhou os rostos, encontrou o do homem, fez cara raivosa de novo. Ia dizer alguma coisa, mas os atendentes já a recolhiam para pôr na maca. Fique tranquila. Cuido de sua moto. Foi o que ouviu por último, ainda meio atordoada.
[...]
No hospital ele encontrou as duas. O mau humor dela foi patente. Meu Deus do céu. Eu mereço. A amiga ouviu, então olhou na direção de quem vinha, era ele. Gostou do serviço?
Que isso, Nita? Que isso o quê? O responsável por isso é ele. O homem estatelou e, a princípio, ficou calado e sério. Foi sua forma de demonstrar o desagrado.
Para logo emendar. Sua Biz está na oficina de um amigo meu. Você tem previsão de alta? Ele apronta em três dias. Por causa do movimento. É a melhor da cidade.
A amiga olhou para ela e voltou o olhar ao outro. Acho que esperava uma manifestação da outra. Não houve. Então, melhoras, ele disse. A amiga sussurrou agradece. Agradecer o quê? Ter estragado meu dia? Meu dia não, minha semana.
O homem, que já fazia menção de sair, voltou, para dizer: Mocinha, você não sabe de nada. Ia ser uma colisão frontal. A caminhonete, que vinha de frente, gesticulou, didaticamente, com a mão, desviou sei lá do quê, na nossa direção. Eu tive de sair do curso dela.
E cegueta que é, não me viu, esbravejava. Você não tinha nada que ultrapassar pela direita e sabe disso, espertinha. Ele ia continuar. Mas o espertinha depois do mocinha a irritou muito.
Pois é, "espertinho", falou, com afetação, você é um grosso na direção. Comprou a carta, só pode ser. Ou vive no mundo da lua. Do que a caminhonete desviou? Ora eu sei lá, aí quem se encrespou foi ele.
Menina, o lado direito fica livre para esse tipo de manobra de emergência, entendeu? Não era para estar ocupado por você com sua motinha. Isso ele falou com tom elevado.
Vocês tem mania... Vocês tem mania, ela repetiu com deboche. Estou perdendo o meu tempo. Vou deixar no posto de enfermagem o número de meu amigo. A culpa da colisão foi sua, mas os prejuízos, na sua moto e no meu carro, aliás, acima dos seus, já estão assumidos por mim. Eu só passei aqui para ver como você estava e para dizer isso. Passar muito bem. E adeus.
Virou-se e saiu. E o acréscimo, desnecessário, desse "muito", que ele pronunciou, fez com uma modulação que expressava toda a sua irritação. Puxa, Nita, a amiga comentou. Puxa, o quê? Puxa, o quê? É um grosso.
Educadíssimo. Veio saber como você estava e ainda dizer que assumiu... Não deixou a amiga terminar. Consciência pesada. Sentimento de culpa. Olha, Nita, eu acho que ninguém quer colisão, como ele falou. Nem você e nem ele.
Mas ele assumiu porque sabe que o erro foi dele. Não me viu. Por isso, imprensou na calçada. Ele não tinha jeito, Nita. Não viu ele dizer? Que não tinha, que não tinha. Depois que fez a besteira, vem se justificar.
Bem. Não vou discutir com você. Vou pro trabalho. Algum recado para a chefe? Não. Agradece a ela a atenção. Aqui não sei quanto tempo vai demorar. Eles dizem que pode até ter cirurgia. Pra encanar direito esse osso aí, terminou, apontando a extremidade do pé direito.
Está bem então. Tá. Desculpe qualquer coisa. Estou irritada com tudo isso. Está mesmo. Estou te desconhecendo. Vê se depois liga para o rapaz e se desculpa. Ah, sim, eu, euzinha vou me desculpar. Ele que tinha...
A colega interrompeu: Vocezinha nem deu tempo para ele falar nada. Foi grossa o tempo todo. Um rapaz simpático como aquele. Você só deu bordoada. Ah, estou revoltada. Não era para ele fazer essa besteira.
Eu acho, querida, que você está é mesmo chateada sabe com o quê? Com o teu erro de cálculo. Como assim, a outra interveio? Você não quer admitir que foi um erro de cálculo seu. Que a sua manobra, queridinha, que a sua iniciativa, você, toda despachada, não deu certo. Quer dizer, não era para ele guinar desse jeito, mas ele guinou. Foi a emergência que ele falou.
Ah, vá. Beijo, amiga. Você quer que eu pergunte alguma coisa ao médico? Hum, nem vai estar aí. Falaram que vão radiografar. Para depois dizer se vão fazer cirurgia. Ah, só pega o telefone do dito cujo, falou por último com modulação.
A amiga sinalizou, ah, ainda bem. Se desculpa com o rapaz. Vou pegar. Passou no posto, pegou o número, retornou ao quarto, repassou à amiga. Estressadinha. Nem me fala em diminutivos. Ele me irritou! Riram a duas. Trata ele direitinho. Aaaannnnhhh. Fez uma careta. A amiga deu adeuzinho e sorriu.
[...]
Ligou. Ademar, boa tarde. Nome horrível, de velho, ela pensou. Boa tarde. Aqui é Nita, quer dizer Anita, a garota que você atropelou. Silêncio do outro lado. Ela também hesitou. Esperava reação. Não veio. É que eu queria te agradecer. Ah, sim. Certo. Não tem de quê. Silêncio. Por favor, seu Ademar, eu também queria lhe pedir desculpas por minha reação. Mas o Sr vai compreender minha situação. Estressei legal. Perdi uma semana de trabalho. Eu ganho por entrega feita. O Sr...
Ela ia continuar, dizendo que ele estava com o carrinho dele, numa boa, arranhadinho, mas trabalhando normal. Enquanto que ela, ali, de molho. Mas só pensou. Não falou. Lembrou da amiga. Sim? Ah? A senhoria estava falando. Eu? Sim. Ah, sim, é... me desculpando.
Senhorita Anita, a Sra tem razão em estar chateada, isso é evidente. Eu também estive e estou. Mas eu acho que devemos superar. Já discutimos o suficiente. E a senhorita pode continuar a contar comigo em todo o tipo de ajuda. Já tenho feito, e vou continuar fazendo.
Ela ia dizendo, de novo, que era problema dele terem se chocado um com o outro daquela maneira. Lembrou-se de novo da amiga. Muito grata. Nem sei como lhe agradecer. Silêncio. Bem, senhorita. Por favor, interrompeu ela: vamos parar com esse lance de senhorita? Certo. E você para com o lance de senhor. Está combinado.
Despediram-se. Ufa! Ela falou. Mas, mais tarde, quando contou para a amiga, ela comentou que bom que estavam se entendendo. Trocaram informações sobre o trabalho de uma, os resultados do exame da outra. Não seria necessária a cirurgia. Apenas mudariam o tipo de imobilização.
Fizeram assim. Ela penou de dor. Chorou. E por acaso, a amiga havia cruzado com o homem na rua. Cidade pequena. Trocaram ideias. Sua amiga é geniosa. Ela riu. Anuiu, mas replicou que tinha bom coração. Magnânima.
E notificou que a amiga não precisaria de cirurgia. Que talvez saísse ainda hoje do hospital. E se ele não poderia levá-la a casa. Deu o endereço. Explicou onde ficava. Ele sabia mais ou menos. Ficou combinado.
Pelas 14h ele chegou à enfermaria onde Anita não o esperava. Ué! Ela exclamou. Ah, não: não acredito que aquela cretina fez isso comigo. O homem apenas deu de ombros com uma careta no rosto.
Ela me paga. Mas não vou mesmo incomodar o se... você. Não faz sentido. Calado estava, calado ficou. Posso ajudar? Ela fez cara de dor. Justificou. Põe pra baixo, ele dói. Está inflamado.
Ele se aproximou para ver. Ela, pela primeira vez, viu-o assim perto. E leu, na expressão da face, descontentamento dele por toda essa situação dela. Então, ela como que se assustou. Talvez com ela mesma, que não havia notado toda a complacência dele.
Posso amparar você? Então se olharam, cara na cara, pela primeira vez. E demoravam mais do que o habitual, nessas horas. Ela então falou, olho no olho, está doendo muito. Ele ajudou, ela recostou na cama, ele, com todo o cuidado, repôs o tornozelo fraturado de volta.
Vou falar com o médico. Acho que não vai encontrar, ela disse. Saiu. Demorou. Retornou com um enfermeiro. Fez perguntas sobre dores. Disse que elas cessariam com os remédios. Mas o homem argumentou que, com esse grau de dor, não havia nem como transportar.
O enfermeiro então saiu. Ele perguntou pelas dores. Estou te incomodando e te ocupando. Aquela lesada da Tina me paga. Não tinha de mandar você vir aqui. Ela que está te explorando. O se... você tem responsabilidade.
D. Anita, no momento, minha prioridade é você. Ela fixou os olhos nele, como que para entender direito o sentido dessa afirmativa, mantiveram-se olhar fixo os dois, para ela logo emendar muito grata.
Para logo entrar o enfermeiro, caso o médico passe agora, pela noite, ele avalia, caso não, você pernoita e amanhã ele vê. O homem havia se voltado para ouvir, agradeceu, ela junto, o enfermeiro voltou da porta.
Ele estendeu a mão, oferecendo-a a ela, que correspondeu, estendendo a sua, ele a tomou, apertou com suas duas mãos e, antes de devolver, levou aos lábios e deu um beijo, nem rápido e nem demorado, suficientemente significativo.
Suavemente lhe devolveu a mão. Amanhã venho te buscar. Ela demorou olhando. Para logo dizer: eu espero. Riram um para o outro. Era a primeira vez que sorriam um para o outro.