quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Desbravadores 2

 

      O livro “Desbravadores do sertão: gringos e sertanejos – a inserção do Protestantismo no Nordeste do Brasil” cobre 80 anos em três Estados, retratando arrojo, desafio e inevitável desejo de imitar a história. Somos colocados dentro da narrativa, como em Atos, pelas "testemunhas oculares", pela vivacidade e realismo com que nos é apresentada. 

 

     Pastor Bernardino percorreu o cenário da ação, entrevistando descendentes desses heróis de fé, correspondendo-se com d. Brenda Forsyth, do outro lado do Atlântico, como num diálogo, do qual também participamos. Ampla bibliografia e notas são uma coletânea à parte, de rica informação, indicando os fatos históricos associados a essa epopeia sertaneja.

 

        Vamos conhecer Andrade, da geração de Kalley, na origem da igreja Pernambucana, os Kingston, no final do séc. XIX, os que vieram, no início do séc. XX, pela Help for Brasil, fundada por d. Sarah, e a turma posterior que a UESA enviou.

 

       Nomes como Briault, Haldane, Glass, Belah, Davidson enfrentaram risco de vida, com os parceiros sertanejos, como Antônio Neto, José Doroteia e Sifrônio, a quem falaram de Jesus, em pregação pioneira do evangelho. A saga dos Forsyth é contada por eles mesmos, com entrevistas, cartas e relatos.

 

        Vamos entrar na Igreja depredada em pleno culto, saber do patrício morto pelo golpe que mataria o gringo e do industrial alemão que prendeu os panfleteiros do evangelho. E andar num Ford 1930, no agreste nordestino, em estradas que só existiam no mapa, além de aprender como descansar no lombo das montarias, dentro de um alagado. 

 

         E o mais relevante, o evangelho no cara a cara, atrasando o almoço: o patrão inglês, absorto e esquecido, falava de Jesus a um grupo, na feira nordestina. A leitura de Desbravadores, certamente, terá um efeito colateral, sinceramente esperado, por relatar uma história viva, de um evangelho sempre atual e renovador.

 

        É certo que vai despertar novas vocações, porque o Senhor de todos esses caminhos e da obra a ser realizada carece de vocacionados, pedindo que participemos orando por obreiros, mas também indo, desprendidos, trilhando esses mesmos caminhos

O Apocalipse de cada um

       Na minha, com muito custo, humilde opinião, o texto bíblico se caracteriza por sua simplicidade. O que não quer dizer que seja um texto simplista.

       Não foi escrito para uma aproximação iniciática, na qual somente "gurus" previamente dotados, seriam capazes de transmitir seus "mistérios".

      Afinal, o livro mesmo, a Bíblia, define origem, autores e finalidade, bastando crer ou não em seu conteúdo: "homens falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo".

      Crer ou não é outro capítulo da história. Assim como, a partir do que vai escrito, formar teologia. Porque outro equívoco muito frequente é dizer que se pode lê-la desprovidos de suporte teológico. 

      Bobagem. Qualquer afirmação do livro será especificamente teológica. Incluída a que foi escrita aqui. Homens (e mulheres) escreverem, todos temos uma ideia do que seja. Agora, "movidos pelo Espírito Santo" é tanto uma afirmação teológica, quanto dizer "falaram da parte de Deus".

      Quando eu afirmo que o Apocalipse é de cada dia e de cada um é porque, se há alguma dificuldade para compreender, a culpa não é de João. Para seus primeiros destinatários, era muito claro de ser compreendido. 

    Porque João jamais escreveria algo supérfluo ou enigmático em plena era de perseguição, para um povo não facilmente alfabetizado e que necessitava de uma mensagem de ordem prática e direta.

     Foi fácil para eles discernir aquelas imagens e o suporte utilizado, que lhes era familiar, que foi a literatura apocalíptica. Empolgaram-se, certamente e, entre si, decifraram e viram descortinar-se, diante dos olhos, um desfile de imagens que lhes deixou animados e imediatamente esclarecidos.

      Complicar o Apocalipse, tentar alçar-se a uma posição dogmática unilateral ou perder-se em meio ao seu linguajar e arcabouço, como se diz, no vulgo, não é de Deus. De Deus será proveniente o bom senso, o afinco no preparo e a simplicidade em desvelar o livro.

       Por isso, é Apocalipse de cada um e para cada um. Como texto bíblico, precisa de contextualização, talvez mais cuidadosa do que outras partes do livro inteiro, por exemplo, comparado, dentro das mesmas Escrituras, aos outros textos apocalípticos que contribuem, em conjunto, para a sua compreensão.

      Mas nos é dado. E seus pontos principais devem ser postos como axioma para entender todo o restante. A revelação do Cordeiro de Deus glorificado, a urgência, por meio da igreja, da pregação do evangelho e a missão permanente dela de aviso ao mundo sobre a brevidade do tempo. 

      Lá mesmo está um texto que indica "o testemunho de Jesus é o espírito da profecia". E a missão da igreja é "ser testemunha de Jesus" e, para isso, "receber poder do Espírito Santo". Quem primeiro anunciou o evangelho e indicou que o tempo do fim estava às portas foi o próprio Jesus.

      Marcos, o primeiro  evangelista e que fez escola, assinala na profecia de Isaías sua base de argumentação. Ele marca a primeira vez em que o evangelho foi pregado, e foi Jesus quem o fez, dizendo: "O tempo está cumprido, o reino de Deus está próximo, arrependei-vos e crede no evangelho".

      A era do Apocalipse foi inaugurada por Jesus, advertindo o que, nas páginas do livro, a cada passo, está urgente como advertência. 1. O tempo cumprido; 2. A proximidade do reino de Deus; 3. A urgente necessidade de arrependimento e fé no evangelho.

      A livro é síntese da Bíblia inteira. Remete, a todo momento, às imagens e profecias do Antigo Testamento, que era a Bíblia de João, seu autor. Para compreender o livro, impossivel sem conhecer a profecia do AT e os "apocalipses" dentro delas, sejam imagens, clichês ou referenciais.

      Exemplos são a expressão "dia do Senhor", nos profetas menores, as duas oliveiras em Zacarias, equivalentes às duas testemunhas, em Ap 11, e a descrição da cidade e do santuário restaurados, a partir de Ez 44, associados à descrição da cidade que desce do céu, em Ap 21-22.

       Aparelhamento mal feito no trato com o texto, vaidade pessoal em se imaginar um "guru escatológico" ou mania por "mistérios" e decifração de "enigmas" é que podem forjar, literalmente, enganos ou síndromes de empecilhos em relação ao Apocalipse. 

     Fora isso, será a desfiguração de algo essencial no trato com o gênero literário dos livros bíblicos: sua simplicidade e dedicatória específica aos símplices de coração. 

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Desbravadores

     O livro Desbravadores do sertão: a saga de gringos e nordestinos na evangelização do interior do Nordeste do Brasil, encruzilhada de 4 estados, desperta em nós um sentimento de arrojo, urgência  para conhecer sua história, depois por imitar. 

    Como se fosse uma inveja santa. Porque desejamos que fosse conosco, pois ainda mais perto nos vemos, dentro mesmo de cada acontecimento, em função dos depoimentos, cuidadosamente coligidos, a partir das "testemunhas oculares". 

    Usamos propositalmente o termo de Lucas, visto que a narrativa nos desperta para uma história em tudo intensa e idêntica a de Atos dos Apóstolos, por sua vivacidade e pela parcela de realismo com que nos é apresentada. 

     Estamos sendo conduzidos à geração seguinte ao ministério de Kalley, aliás, somos apresentados a heróis de fé que conviveram com ele, na origem da igreja Pernambucana. E ainda a um grupo de missionários estrangeiros que aqui chegaram por influência de d. Sara Kalley e da agência missionária Help for Brasil, por ela mesma fundada, e sua continuadora UESA, que envia um grupo posterior.

     Vão se familiarizando com nomes como os Kingston, chegados ao Brasil ainda no final do séc XIX. E outros seus companheiros que darão sequência a essa história, enfrentando resistências que punham em risco suas próprias vidas.

      Fizeram o percurso inverso do colonialismo, porque sua vocação era autêntica e a parceria com os sertanejos, a quem vieram falar de Jesus, tornou-se pioneira na pregação do evangelho naquelas paragens. 

     Patrícios com os quais vamos com eles também nos identificando, nome a nome, enquanto conhecemos a saga dos Forsyth, e seus conterrâneos anglo-saxões, que enfrentaram perigos de morte, em nome do evangelho. 

      Vamos percorrer, por depoimentos deles mesmos, entrevistas pormenorizadas, cartas com eles posteriormente trocadas, relatos detalhados por esses homens e mulheres escritos, caminhos que nos fazem conhecer a Igreja que foi invadida e depredada, o patrício que se impôs entre o golpe fatal que o matou, mas era destinado ao gringo, o industrial alemão que mandou prender os panfleteiros do evangelho.

      Como percorrer, num carro modelo 1930 estradas inexistentes, em meio ao agreste nordestino. Como descansar, com o patrício nordestino e esposa, no lombo das montarias, mesmo dentro de um alagado. 

     E o mais relevante, como pregar o evangelho cara a cara. Como sair de casa para garantir o almoço, mas a secretária do lar sair hora depois, para encontrar o patrão inglês absorto, no meio de um círculo de gente, na feira, falando de Jesus.

       De que modo uma igreja, neste ano centenária, foi fundada, e como enviou missionários para recuperar pontos onde houvera perseguição implacável contra os crentes. Pastor Bernardino provém desse cenário. Percorreu, no sentido inverso, com guias desse mesmo sertão, os lugares onde toda essa notável história aconteceu.

      Pôde sentar na mesma pedra onde o desbravador descansava. Entrevistou descendentes desses heróis de fé. Correspondeu-se com d. Brenda Forsyth do outro lado do Atlântico. Sua narrativa é um diálogo com eles, nos colocando dentro desse mesmo diálogo, fazendo-nos trilhar os mesmos meandros e anelar imitar essa mesma história.

     O resultado é um relato pormenorizado de uma época que se inicia ainda na virada de século, percorre as décadas iniciais do século XX e nos contextualiza em relação ao momento atual de cada um dos pontos desse roteiro. 

       As notas são uma coletânea à parte de rica informação, indicando o modo como lideranças políticas da época, entre outros dados essenciais à contextualização da narrativa, entrecruzam-se com os fatos descritos.

     A leitura de Desbravadores, certamente, terá um efeito colateral, sinceramente esperado. Por relatar uma história viva, de um evangelho sempre atual e renovador, é certo que vai despertar novas vocações. Porque o Senhor de todos esses caminhos e da obra a ser realizada carece de vocacionados. 

     E pede que participemos orando pedindo obreiros. Mas também que vamos, trilhando esses mesmos caminhos.

sábado, 26 de setembro de 2020

O clã dos Loureiro - a verdadeira história

 Bem, falar sobre os Loureiro é muito gratificante. Cada membro da família, individualmente, assim como todo o conjunto da obra.


     Miriam, a matriarca (e põe matriarca nisso!) eu já conhecia antes dela ser Loureiro. Foi nossa professora, na classe de crianças, no porão da Congregacional de Cascadura. 

    Foi muito divertido. Aliás, Miriam é festeira. Deve ter herdado isso da original, irmã de Moisés que, bastou saírem fora do Mar Vermelho, caíram na maior festa, com dança e tudo. 

    As aulas dela eram com muito bom humor. A gente se divertia muito, achando-a fora do protocolo, do tradicional das outras, daí a nossa pândega carnavalesca divertidíssima em classe. 

     Mas com ela não tinha algazarra não. Botava moral mesmo. Era o lado nordestino da genética. Com ela não tinha esse negócio de filho de seu fulano não. Mexeu, o pau comeu. Pena que eu acho que foi um ano só. E até, se não me engano, saiu por causa dos preparativos do casamento. 

      E para casar também dizem por aí que a decisão foi dela. Os pais, numa de saber se devia ou não devia. Ela logo ajudou na decisão. Rola uma porção de versões, mas a história é esta:

      Loureiro vem de uma família de cavaleiros medievais europeus. Ele já chegou dizendo, ou vem ou racha. E imagina o tamanho da armadura, para a envergadura do cavaleiro! E Miriam? Claro que ela topou. 

    E avisou os pais. Seria uma liça nordestino-lusitana. A coisa saiu pelo lado diplomático e, desta forma, pelo signo da Santa Cruz, surge o novo clã dos Loureiro. 

     Pronto, fez-se a paz. E Miriam, a caçulinha abriu, na família, a temporada dos casamentos.

     Uma linda história de amor. Casal padrão, dele nasceu um casal de filhos. Magistral. A menina, com o temperamento ainda a se revelar, até pretendeu, um dia, por dizer, pôr as manguinhas de fora. Deixa de ser bobinha. 

    A matriarca pôs freio. A coisa era mais ou menos assim: batimentos com Mirinha, rebatimentos com o José, o cavaleiro de estirpe europeia. E haja coração. Houve. Estão chegando aos 50 anos de batidas, com esse mesmo coração, só por esse amor. 

     Imaginem a estrada percorrida. Não.  Não precisou raptar a dama e atravessar oceano, na rota inversa do descobrimento. Ficaram por aqui mesmo, espalhando bem querer, amizade, cuidado, atenção, carinho e amor, principalmente aos filhos, e a tanta gente à volta. 

     Eu sou testemunha e dou o testemunho. Meu filho nasceu em 21 de abril de 1994. Temia-se, não sei por quê, pela sobrevivência do menino. Mas a divina providência (seja louvado!) colocou o jovem casal a 5 min de carro ou 20 min de caminhada da Vila Valqueire, Poços de Caldas 200, o castelo da dinastia.

     O estágio do menino por lá nivelou, por cima, todas as calorias suficientes pelos próximos 25 anos. Agora, com 26, ameaçando casar, é que está sendo necessária uma reposição ocasional. 

     Tive o prazer de ser pastor da menina deles, por um tempo. Aliás, foi num dos retiros, no famoso Sítio Bom Pastor, na Estrada do Caçador, em Seropédica (veja que nome!) que as duas, ela e a prima, que a 1/4 de século e mais 2 anos é minha esposa, combinaram um trajeto mais longo, por uma tal cachoeira, e data dessa época a minha sedução.

     Eu, pastor das duas, nunquinha me passaria pela cabeça uma situação dessas. Pois é. Essa é a história. Mas o que prevalece, são as versões. Como aquela quando, um dia, em Cascadura, cheguei com uma eventual namorada, por assim dizer, a primeira. 

    Quem vinha pela passarela central do templo, ela e sua filha de 9 anos? Ela mesmo, Lourdes Benevides, a mana primogênita e conselheira vitalícia de todos os demais irmãos. Claro que eu, educada e, nessa altura, já coincidentemente, apresentei minha namorada.

      A sogra, quer dizer, a Conselheira disse muito prazer, para logo emendar a frase magistral que, sem me falhar a memória, tem 41 anos decorridos: "Prazer, mas não é você que vai casar com ele não, quem vai casar com ele, disse apontando, para baixo, é minha filha".

      Sorrisos amarelos. Cara emburrada da menina de 9 anos. E eu despistando a menina com um tapinha no ombro, liga não, Regina, brincadeirinha de sua mãe. E ela sorriu. Pois foi esse sorriso, 10 anos depois, o culpado de tudo. 

       Entrei para a família. E ainda tive o privilégio de casar Patrícia e Mário. Mais um filho na conta. Ele e o cunhado-irmão, Júnior Loureiro, não medem esforços nos cuidados com seus pais. Júnior é um presente de Deus.

      Destaca-se por sua diligência. Aquele tipo que adivinha a necessidade premente, atira-se a resolver e só descansa ao ter resolvido. Se para Deus o maior distintivo é a prestação se serviço, Júnior imita. Grande privilégio, tranquilidade e paz é tê-lo por perto.

     Loureiro, vocês são uma família linda, de todas as formas e por todos os lados. Nossa maior alegria é partilhar com vocês esses momentos. Eu, por exemplo, que acompanho a família Celestino, desde 1966, quando chegamos a Cascadura, reconheço toda a trajetória de bênçãos. 

      E bênção maior foi entrar na família. Fã de meu conselheiro na adolescência, o presbítero Jeconias, eu fui desde sempre. Fui acolhido, primeiro por Deus, como todos nós somos, e depois pela família que muito tem de especial, basta conferir por minha amada esposa Regina e os filhos que Deus nos deu.

      Linda história de amor! Parabéns ao Super-Herói transoceânico, Super-Loureiro, que não é Marvel, mas venceu todas as batalhas da vida.  A gente precisa do tipo de pessoa que você é, assim,  carne e osso, real e veridico, não imaginário. 

      Feliz meio século. Parabéns e grande abraço. Acreanos também vos saúdam. 

             

sábado, 19 de setembro de 2020

Naura - Depoimento - Parte 2

Nossa querida Naura, membro fundadora e organista da Congregacional de Cascadura por quase 40 anos seguidos. 

Aos 12 anos, fui para o Ginásio em outro colégio. Nova recomendação: ela tem um defeito, pode impressionar os colegas, em todo o caso, ela fica em experiência. Para surpresa minha e da diretora do Colégio, logo no primeiro dia de aula, uma das colegas pede para sentar-se ao meu lado, "posso, Naura?". "Claro que pode", respondi. Novos colegas, novos professores, todos amigos, sem nenhuma queixa deles. Embora com esses contratempos, consegui passar para o terceiro ano ginasial, sempre tirando 8, 9, 10. Era um orgulho, como dizia o Rev. Amâncio de Campos Cardoso, membro da Igreja Metodista de Cascadura: "escrever nesse caderninho de notas, só dá notas 8, 9, 10, não consigo dar um 0 zero". Passei o 1° e 2° ano ginasial com 10, distinção e louvor. Primeira aluna da classe, primeiro nome na lista dos que passaram. Fui levada nos braços do Diretor, do portão à sala de aula, onde a Diretora D. Maria José Cardoso me esperava de braços abertos. Essa mesmo que, ao princípio, dizia: "Ela tem um defeito, vai impressionar aos colegas". A quem devo essas vitórias todas. Em primeiro lugar, a esse Deus Maravilhoso. Este Deus que sempre esteve e está ao meu lado. Aos 13 anos, eu me abraço com minha avó e digo: "O que eu posso fazer para trabalhar na igreja? Eu quero trabalhar, fazer alguma coisa para Jesus". Ela responde: "Conversa com o Pastor e ele te diz". "Que surpresa agradável!", disse o Rev., de trabalhar para Jesus, como eu e a Igreja vamos impedir". Assim, fui levada à reunião de Presbíteros para algumas perguntas, das quais eu respondi satisfatoriamente. No dia 11 de setembro de 1932, para a minha maior alegria e de toda a Igreja, eu fiz a minha profissão de fé e batismo, dizendo que aceitava aquele mesmo Jesus que minha avó e minha mãe me ensinaram. Não me arrependo nunca de ter escolhido esse Meigo e Terno Jesus, que tem guiado os meus passos nessa dura jornada. No meio do ano do 3° ano ginasial eu desejei estudar música para tocar na Igreja. Mas como? Pagar o ginásio e piano não dava. Foi então que eu resolvi desistir do ginásio e passei a estudar piano. Com muitos contratempos, doença na família e outros motivos, consegui fazer 2 anos interrompidos. Em 9 de agosto de 1942, Piedade, por falta de organista, comecei a tocar. Permaneci nesta Igreja até 1952, saindo com um grupo de irmãos para fundarmos hoje a Igreja Evangélica Congregacional de Cascadura, onde permaneço, com a Graça de Deus. 

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

1982 - era misto o grupo

 1982

     Para quem tinha dúvidas atrozes quanto a ser pastor, o modo como me atirei e reagi aos desafios que se apertaram, mais tarde seria um dos fatores que confirmaram a vocação. 
    Era um grupo em tudo excelente. Até sou suspeito para falar, por pelo menos três razões: 1. óbvio, primeira igreja, primeiro amor; 2. conhecia a todos, pois vivia entre eles, então aprendi a amá-los; 3. pelas duas razões anteriores, sou muito próximo para avaliar de modo isento.
    Deixa para lá: eram maravilhosos e pronto. Mas era um grupo misto. Explico. Vivíamos, na denominação, particularmente no contexto das igrejas do que a gente chamava Junta Regional da 2a RA (Região Administrativa), vamos chamar assim, um surto neopentecostal.
     Portanto, tínhamos representantes, no grupo da Congregação, dos que eram chamados "crentes tradicionais" e "crentes renovados". E o perfil deste que vos fala era taxado de tradicional. Eu me dizia nem um, nem outro. Como dizia Paulo, sou o que sou (ou tentava ser). Mas valia, na época, a carapuça.
     Então, havia uma reunião na semana em casa de uma das irmãs que seria classificada como renovada. Que convidava pregadores desse perfil e dirigia um culto desse perfil. Nesse dia, eu tinha aula na faculdade. O dia que consegui ajustar o horário para sair cedo,  pegar o Fusca azul céu, RV 2644, saindo da UERJ, subir a Grajaú-Jacarepaguá e desaguar, pela Freguesia, no Largo da Taquara, para tomar o rumo do Guerenguê, esse recanto de Curicica, esse dia era outro. 
      Conversei com a irmã, aliás, toda a família, aliás, de novo, foi a primeira vez que um aconselhamento durou uma noite inteira, e se confirmou a promessa da troca de dia: ela colocaria o culto num outro dia da semana, no dia que eu folgava eu estaria com eles, no estudo bíblico, e poderia, até, vez ou outra, dependendo da disponibilidade de horário na UERJ, comparecer ao culto em sua casa.
     Ficou acertado. Haveria mudança. Havíamos combinado um mês para dar tempo de que todos se acostumassem com a troca. Eu até acho que seria uma quarta por sexta-feira. Primeiro veio a promessa que sim. Mas uma semana antes veio o aviso que não. 
     Comecei, então, tendo 2/3 do grupo comigo, 1/3 ficou no outro culto de mesmo horário. Os "tradicionais" comigo, na Rua Aralia, no Pque Curicica, os "renovados" em Cascadura, numa vila por ali, na Ernani Cardoso. 
     O problema é interpretar diferente o evangelho que é um só, de modo a levantar barreiras onde Jesus as desmoronou.
      

1982 - apenas o começo

 1982

   Tornou-se um ano decisivo por duas razões: definiu carreira e vocação. A princípio, eu não sabia. Mas as decisões se revelaram acertadas a posteriori, como se diz.
    Quem havia feito vestibulares unificados para engenharia, teria pontos de sobra para outro na área de letras. Não que esteja diminuindo o valor desta área que, afinal, foi a que, conscientemente, escolhi e com a qual contribuí para o sustento de minha família. 
    Ressalto a realidade. Por isso, sem mérito, faturei o 1o lugar em Português-Hebraico para iniciar, nesse ano, na UERJ. O amigo Paulo Leite continuaria a ser colega de turma. 
    No outro canto do ring, na igreja, o pastor Maurilo, que me batizou, pediu que eu ajudasse o grupo de 11 irmãos que haviam sido deslocados da igreja-mãe, congregacional de Cacasdura, para a Congregação de Parque Curicica, num loteamento na Estrada do Guerenguê, no bairro de mesmo nome.
    O que me fez optar pelo curso, na UERJ, foi o fato de, acabado o seminário, recém-formadíssimo, pedirem que eu e Paulo Leite déssemos aula de língua hebraica. Argumentei que um bacharel não poderia dar aulas a bacharéis.
    O contra-argumento era que d. Beth Bacon se aposentaria, escolhendo residir em Guarapari, onde a visitei em 2007 e de onde ela saiu para o céu, em 2019, e que éramos alunos de 8, 9 ou 10 na disciplina, sendo difícil encontrar, com facilidade, professor nessa área. 
    Na outra parte,  achei que o fato de conhecer os irmãos da Congregação e ter intimidade com todos facilitaria o trabalho naquele campo, faria o que já havia feito, uma pregação aqui, outra ali, escola dominical, estudo bíblico, um aconselhamento ou outro, entre os mesmos, porém pastorado, jamais. 
     Passaria incógnito, poderia ajudá-los enquanto e o quanto quisessem, e ficaria tudo por tudo. Mas não contava que queriam se emancipar para ser igreja e, portanto, convidaram-me para ser o pastor. Claro que eu iria despistar. E já comecei com aquela história "vou orar", "preciso conhecer a Congregação", essas coisas, ora, conhecer? O que havia lá que eu já não conhecesse de sobra? 
     Fui lá. Preguei. Perguntaram sobre a decisão. Marquei semana seguinte como prazo. Nem dei sinal. Foi quando, no primeiro dia da semana seguinte, mais exatamente num domingo à noite, sentado de frente para a assistência, porque o coro se posicionava atrás do pastor, vi entrarem pelo portão Gerson, o diácono, e Valdemir, um dos colunas numa Congregação onde todos eram colunas. 
     Esboçou-se a armadilha. Encurralei-me. A mim mesmo disse que seria paliativo, seria só encaminhar a emancipação, tchau e bênção. Seria um pastor com prazo de validade. Fiz de conta que não era comigo. Os dois se acercaram.
    Queriam saber de minha decisão. Ouviram um sim. Devem ter notado o meu constrangimento. Estava selado.

Naura - Depoimento - Parte 1

Grupo de crentes defronte da Congregação de Madureira, em 1952: Naura, à direita e de costas, conversa com seu irmão, talvez Viriato.

 26 de setembro de 1918, no Distrito Federal, à R. Dr. Silva Gomes 44, em Cascadura,  nasce uma menina à qual puseram-lhe o nome de Naura Ferreira Araujo da Silva, filha de Antonio Araujo da Silva Junior e Luísa Ferreira Araujo da Silva. Naura ao nascer veio com um pequeno defeito na vista direita. Aos três meses de nascida é levada pelo pai ao Dr. Moura Brasil médico oftalmologista muito afamado e este diz: "Não adianta operar, talvez ela não chegue aos 7 anos". Que decepção para o meu pai receber uma notícia desta. Mas acontece que Deus não vê as coisas como vê o homem. Havia algum plano de Deus para isto. Dois (2) anos depois nasce uma irmãzinha para companhia de Naura,  a Susana. Muito meiga,  nós nos dávamos muito bem, quem ler este relato já deve ter percebido que Naura sou eu, o pivô deste artigo. Eis a família de Naura: Vovó Luísa ou para maior explicação, minha tia-avóLuísa, solteira, irmã de meu avô, papai, mamãe, tio David, irmão de minha mãe, tia Sarah, irmã do meu avô, Simeão, Viriato e Susana, meus irmãos. Assim cresci com todo amor e carinho nesse lar cristão. Minha família, desde os meus bisavós, eram crentes. Pertenciam à Igreja Evangélica Brasileira, situada à R. Júlio do Carmo, ritual Presbiteriano. No primeiro mês de nascida, fui levada nos braços de minha mãe e pai à igreja para ser batizada, como era o costume da igreja. Aos (5) cinco anos perdi minha mãezinha, ficando eu e os demais irmãos aos cuidados da vovó que foi para mim e meus irmãos não avó, mas uma segunda mãe. Aos sete anos, data esta em que todas as crianças são matriculadas na Escola Pública, no entanto, fui barrada por causa do defeito. Dois anos depois, minha irmã Susana completa também sete anos e é levada à Escola para a matrícula. Vovó me leva novamente para ver se consegue matricular-me, mas... "...não posso matricular essa menina porque ela tem um defeito no rosto e vai impressionar as colegas". Acontece que Deus, mais uma vez se manifesta. Uma senhora muito católica, Filha de Maria, chamada Arcangela, abriu a boca em reclamações: "Minha Nossa Senhora, disse ela, como pode recusar uma criança para estudar, só porque tem um defeito no rosto? Eu vou levá-la para a minha classe, ela vai ser minha aluna especial". Ao chegar na sala de aula pela mão da professora D. Arcangela, essa apresentou-me aos colegas, dizendo: "Eu trouxe uma menina que vai ser colega de vocês. Espero que vocês se deem muito bem. Ela tem um defeito no rosto, mas é muito boazinha e quero muito respeito". Por isso, não me canso de dizer. Deus é bom demais. Nesse colégio, terminei o meu primário, deixando bons colegas e professores amigos. 

Recordações da irmã Naura

Naura, à esquerda, Odessa, no meio e
Arsylene, filha desta, defronte 
à Congregação de Madureira, 1952.

Minha vinda para o meu lar em Cascadura deu-se em 1979 no mês de Outubro. Eu morava em Nilópolis com a irmã Odessa de Carvalho Sezures. Pagava a metade do aluguel e metade da luz cada uma. Justamente por motivo de seu falecimento em março de 79 eu resolvi procurar o quarto para morar, pois eu não podia pagar o aluguel todo sozinha e também por ficar longe da Igreja. Eu falei com a Maria se podia ficar morando com ela. Ela falou com o João, e os dois concordaram com a condição de eu ajudar na despesa da luz. Esse pedaço onde eu moro, era um barraquinho de madeira, onde a igreja guardava algumas ferramentas. Maria falou com o presbítero Pedro Régis e o irmão Antonio Rocha, e estes levaram o assunto ao conhecimento do Pastor Maurilo, da minha dificuldade de vir sempre à Igreja. Então o caso foi levado à reunião de membros e aprovado por unanimidade fazer um quarto com cozinha e banheiro com o consentimento de Maria e João pegado à casa deles. Por isso estou morando aqui até que Deus determine outra coisa a meu respeito. Como foi combinado pago uma parte da luz. A minha vinda foi debaixo de muita oração, como testemunha está a tia Aurea Guerra Ferreira. Quando o quarto ficou pronto, a igreja ia fazer-me uma surpresa, esperando eu chegar no Domingo para entregar-me a chave, mas a tia Aurea foi quinta-feira almoçar comigo e me preveniu com medo que eu tivesse algum impacto, pois eu andava nervosa. Na verdade, foi bom ela avisar-me pois, na mesma hora, deixei o almoço na mesa e fui ajoelhar-me em prantos agradecendo a Deus por uma resposta tão rápida. Assim eu louvo a Deus com o Salmo 73:28. "Quanto à mim, bom é estar junto a Deus; no Senhor Deus ponho o meu refúgio, para proclamar todos os seus feitos". Para quem ler este caderno, saiba que realmente bom é estar junto a Deus, como o diz o Salmo acima citado. Ai de mim se não fosse a não desse Deus Maravilhoso a quem eu tenho procurado seguir.  Falhas, erros, desacertos, pecados todos nós temos, inclusive eu também, mas Deus me tem livrado de todos os males.
 
Rio 18 de janeiro de 1987
Naura Ferreira Araujo da Silva.  

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

1981 - dia D da Formatura

 1981

     Do culto, pelas fotos, lembro alguma coisa. Convidamos Jair Pintor, pastor paulista que pregou no dia. Seria, sem saber ainda, presidente da Junta Geral entre 1983 e 1985, tendo chamado o formando que vos fala para ser secretário executivo da denominação. 
     Em síntese, foi um homem à frente de seu tempo e, por isso mesmo, foi punido. Mas a história contará essa história. A Igreja Evangélica Flumienense, essa a mais antiga do Barsil, desde 1858, estava cheia, era na temporada das formaturas que, em função de abrigar o STCRJ, no seu prédio anexo, sempre patrocinava. 
    Igreja cheia, turma clássica, 1978-1981, que incluía Paulo Leite e Carlos Cunha, meus companheiros de nota alta no hebraico de d. Beth Bacon, este último homônimo do célebre Carlos Cunha dos anos 60, outro homem à frente de seu tempo, que também foi punido.
     As meninas, incluídas Márcia, Eponina, Edêmia, entre outras, a primeira dessas companheira na minha infância na congregacional em Nilópolis, ainda no início da década de 60. Casou com o colega de seminário, pastor presbiteriano,  Miguel. 
    Na foto, entrando com Dorcas, estampado o sorriso multi-feliz, pelo filho único, quarto parto, que teve com o pastor batista, que agora terminava o seminário com a promessa de ser pastor, mas ainda não sabia. Era toda alegria, para todos à volta e para todos os lados. 
     O terno era um que eu tinha, até apreciava muito, acho que de linho, cor creme, certamente escolha dela, muito provavelmente comprado especificamente para o dia. O terno não sabia também que, daí a uns 6,5 anos, o formando usaria só a calça para um dos mais marcantes encontros com a namorada e futura esposa, numa ida à Barra e retorno pelo Alto da Boa Vista, no RJ.
     Saudade de um dos ternos que me assentava muito bem. Acho que comprado na Casa Tavares, no Méier, bem ali, geograficamente do outro lado (da linha do trem), como se dizia. E me lembra outro que ganhei, agora talvez 1,5 ano depois, quando já estava na UERJ, e atendi o amigo de todas as horas, Paulo Leite, com ajuda financeira de economias que guardava não me lembro para quê. 
      Foram úteis para socorrê-lo, a preços módicos de retorno e, quando disse que desistisse de pagar o restante, resolveu me dar de presente um terno, também de linho, azul escuro claro, deu para entender?
    Algo de que a gente sente saudade com gosto são os ternos. Esses dois,  usei muito. Ternos afetos de misericórdia. Não resisti ao trocadilho.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

1981 - ano F, de Formatura

 1981

    Ano F, de Formatura. Estagiei na apelidada "Igreja da Praia", a Congregacional de Niterói, salvo engano a terceira mais antiga do Brasil, depois da Fluminense e da Pernambucana.
    Nosso professor de Teologia e Grego, Deneci Gonçalves da Rocha era o pastor. Recuperava-se de um acidente em que ele e o pastor Martineis, já aqui citado, deslocavam-se para aulas no Seminário em Pedra de Guaratiba.
    Iam no Maverick branco deste quando, na confluência da estrada da Pedra com um dos retões que vão dar em Sta Cruz, abalroaram um desses caminhões 1950, que mais parecem um blindado. Martineis, o motorista, rompeu os ligamentos dos joelhos e esmigalhou uma das faces no para-brisa: não existiam cintos de segurança naquela época, pelo menos por aqui. 
      Deneci, o carona, teve o fêmur imprensado entre soalho do carro e o assento, quase lesando a coluna, precisando de meses com limitações de movimento. E, para o outro, a recuperação custou uma cirurgia de refazimento da face, na qual o médico sugeriu que não houvesse anestesia, porque precisava ajeitar a mandíbula, o que seria melhor fazer se acordado e, quando solicitado, movimentá-la.
      Martineis teve afetado o movimento dos joelhos, mas fazia exercícios nos quais gemia, para, pelo menos, trazê-los à dobradura de 90°. Conseguiu. Foi  nessa época que estive lá por Niterói, de novo, mas desta vez com Deneci,  visitando-o de quando em vez, no ap pastoral, traquilizando-o quanto aos compromissos do estágio, um deles estudar o Apocalipse com os adolescentes da igreja, entre eles o seu casal de filhos. 
     Almocei algumas vezes na casa de d. Maria Augusta, no Fonseca, ex-membro da igreja e mãe de um amor de ocasião do Cid. Aliás, foi na casa dela que conheceu Dorcas, em 1949, na época apenas sua futuríssima.
     Na época havia a novela Casarão, da qual o apelido do prédio anexo à Igreja, que demorou século a ser terminado, abrigando um time da pesada, no único andar não fustigado pelas chuvas, os seminaristas Manoel Bernardino, Marcos Heck, Joás, Leônidas, visitante eventual, entre outros, que ocupavam aquelas dependências extremamente dependentes.
      E meu acesso era pela barca, às vezes pela ponte, outras no Fusca azul céu, o famoso desbravador RV-2644, com o qual colidi na primeira vez em que o dirigi, conduzindo Dorcas do Méier a Cascadura, bem defronte ao Posto de Saúde do Engo. de Dentro. 
      Deixei numa oficina indicada pelo Nelson Neri de Oliveira, pastor metodista amigo do Cid, para descobrir, ainda na época do estágio em Lgo do Barradas, que o motor havia sido trocado por um que deu pino, numa das caronas que dei aos irmãos num daqueles domingos. 
      Também foi nessa época que conheci um assembleiano típico, para quem fechei aquela porta imensa frontal da barca, mas ele me ignorou, talvez em função de minha aparência pouco recomendável para um seminarista, num domingo sustento, em plena barca Rio-Niterói, mangas dobradas, gravata nos bolsos e paletó à tiracolo.
     Na saída já no píer do Rio contornou-me para pedir desculpas, amado, meu Deus, um servo de Deus, que eu ignorei, acho que caiu a ficha de que o havia ajudado e ele não havia agradecido. Surgiu uma amizade que valeu uns dois almoços no Méier, mais alguns encontros nas barcas e a informação muito relevante de que Dorcas quer dizer "gazela". 
      Assim repetia lá no Méier, toda a vez que encontrava Dorcas. Achávamos muito divertido. Com  certeza, ele já está em casa.
      Quando visitá-lo, vou lembrar do nome.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

1980 - Parte dois - perdura o Seminário

 1980

   Argumentei com meus pais que, agora que havia passado 1979 com a engenharia na PUC trancada, este ano de 1980 seria o inverso: matrícula no Seminário trancada e "de vento em popa" (acetato do Vencedores por Cristo, na época) no curso universitário.
   Mas conhecemos com são os pais desse século e grau de espiritualidade. Contra-argumentaram que eu havia, e havia mesmo, dito que o seminário não atrapalhava a faculdade, esta no período manhã e tarde, aquele no período noturno.
    Portanto, seminário era ajustado no tempo que sobrava. E havia tempo de sobra para focar nas mirabolantes tarefas que nos preparavam para as surrealistas provas, nas quais eu via todos à minha volta mergulhados em sua solução, enquanto eu empacava na solução daquelas questões que iam até a letra /o/ nas opções, valendo décimos e centésimos de ponto, conduzindo-me a notas como 3,2 ou 2,98 e, na melhor das hipóteses, um 4,35.
     Acabei retornando à faculdade no início de 1980 somente para, antes que março terminasse, eu ter terminado com essa espécie de suplício, uma suposta veia de engenheiro. Nesse meio tempo eu havia tentando outro vestibular, para a universidade estadual UERJ, mas não cheguei perto dos pontos do anterior, que me jogou na PUC com quase 6.000 pontos, enquanto que, naquele ano, quem ingressou nesta faculdade estadual o conseguiu com cerca de 6.100 pontos. 
     Congelaria esse lado, digamos, acadêmico-profissional, pelo menos até 1982, quando ingressei na UERJ para cursar Português-Hebraico, para deter-me na batalha pessoal contra a ameaça, assim encarava eu, de confundirem minha presença no Seminário como vocação pastoral. Esse temor também fez parte daquela conversa com os pais, de inverter os trancamentos de matrícula, desta vez incluindo o seminário. 
     Desta vez foi o pai que usou de uma lógica cristalina, novamente julgando com minha própria linha de argumento. Mas você, disse ele, não escreveu lá, no formulário de matrícula, que estava cursando por interesse puramente teológico, quer dizer, acadêmico, e não vocacional? Sim, Cid, caro pai: exatamente isso. Então... Ganhou mais essa. 
     Que venha 1981, ano da formatura e do recrudescimento do medo, que o tratamento por "seminarista", mais ainda, formando quartanista provocava, antecipando a vocação pastoral.  

1980 - Parte 1 - novo oásis

 1980

     Referi-me a oásis. Mais do que um, é claro. Aliás, a igreja era um permanente. Literalmente nascido dentro de uma delas, congregacional de Nilópolis, até para trocar as fraldas, de pano, em 1957, ela não me tirava de dentro, mas deslocava-se, contava Dorcas, até o último banco, para o meio-aceio, dobradura em triângulos e prender com o broche, que é como chamam alfinete de fraldas aqui no Acre. 
     Em Cascadura, a partir dos 6 para 7 anos, subíamos pelo caminho colado à horta, atalho pela vila que dava com seus portões na Ernani Cardoso, até alcançar, no 212, na rua lateral da subida do Morro do Fubá, a João Romeiro, o antigo templo. Aquele mulherão bonito em seus 35 anos me conduzia pela mão dominicalmente à igreja. Se não a encontrassem lá, podia contar que era enfermidade. Nada afastava Dorcas da igreja.
     Oásis básico. Nunca tive a fase de repulsa dissimulada em relação à igreja. Sempre fui empolgado com tudo o que ela ofereceu. O outro oásis, já mencionei, era o grupo da ABU na PUC. Outro, ainda, as aulas no Seminário, primeiro no Betel e depois, definitivamente, na Alexandre Mackenzie, no Seminário Congregacional. 
    Abriu-se mais um, que foi o envolvimento com o Acampamento Ebenézer, em Pedra de Guaratiba, como equipante. Eu já havia participado de umas três temporadas, uma em torno dos 10 anos, outra em torno dos 14 e, acho, outra em torno dos 16. Agora, aos vinte e poucos anos, voltava como equipante.
    Era extraordinária a preparação com o pessoal da APEC, as missionárias Darlene e Goergia, os detalhados cuidados com o aconselhamento das crianças, as histórias muito bem trabalhadas, pela manhã, com os cânticos, e os cultos missionários à noite.
     Isabel Carvalho nos liderava a todos. Cheguei a ser enviado a Mairiporã, no Acampamento Boas Novas, da APEC - Aliança Pró-evangelização das Crianças, para fazer o antigo TEA - Treinamento Especializado em Acampamento. O objetivo era ser formado como um futuro chefe de equipe,  para dirigir acampamentos futuros. 
     Isso me rendeu um treinamento nessa função na temporada de 1980, que contou com a ajuda de líderes que conhecemos no Palavra da Vida em 1978, quando encenamos a não menos famosa peça Os Saltimbancos, o que me valeu o que antigamente se chamava "amor de acampamento", que é um com prazo de validade definido. 
      Aliás, foi a segunda namorada, visto que, pela primeira, passamos batidos aqui. Basta, por hora, dizer que esse primeiro arrastou-se por quase 2 anos, culpa minha e não dela, e que esse seguindo não chegou a 3 meses, culpa dela e não minha. Este ano também marcou a minha definitiva desistência do curso na PUC.
     Amainam-se, mas não se resolvem, os conflitos internos. Um novo oásis, que foi o estágio na Congregacional do Largo do Barradas, com o pastor Martineis Anjo Gonçalves, que era nosso professor de Metodologia. Período bom com aqueles irmãos, marcantes, como o dia em que o pastor, meio indisposto, pediu ao seminarista que pregasse e este, empolgado, passou dos 60 min. 
     Como da vez em que, no Natal desse ano, encenamos um tal teatro cuja ideia era representar um sapateiro em seu afã, escolhido este seminarista que vos fala como protagonista. Mas a peça que era apenas cenário e representação muda, virou uma galhofa, para que o espetáculo fosse salvo, e quem acabou protagonizando, para magnetizar o público, foi o Charles, não o "anjo 45" de Jorge Benjor, mas o primogênito dos filhos da nossa Profa de hebraico, Beth Bacon, um mestre da ironia puramente britânica.
      A família era toda membro da igreja. Chegamos a tomar um chá da tarde em casa deles, ali por São Gonçalo, numa das visitas da equipe do Seminário a uma das igrejas da região. Interessante o chá inglês em solo tupiniquim: 3/4 de chá preto, numa xícara, para 1/4 de leite. Sem a opção do café, claro, afinal era chá. Duro era pregar para o casal, ela professora de hebraico, ele, Henry Bacon, um dos heróis paraquedistas da Normandia, professor de grego. Haja nervos. 
     E assim termina 1980, assinalando o término do segundo namoro de minha existência, a saída definitiva da PUC e a manutenção do conflito entre continuar ou não no Seminário.

domingo, 13 de setembro de 2020

1979 - Pouco mais, pouco menos

 1979

     Decidi que trancaria a matrícula na faculdade nesse ano. Caminharia na direção de legitimar o que faltava para receber o cerificado de técnico em eletrotécnica, que era um estágio e seu relatório apresentado a Escola Técnica Federal.
      Ficap do Brasil, fios a cabos plásticos. Km 02 da Via Dutra, no bairro de Jd América, eu pegava duas conduções para chegar lá: o 179, Meier-Grotão, para saltar em Bonsucesso, atravessar o túnel "buraco do padre", por debaixo da linha férrea, e pegar o 198, Bonsucesso-Jd América. 
     Eram três fábricas dentro de uma só, como diziam na época. Porque havia três galpões enormes, um deles para processar os lingotes de cobre ou alumínio, até que se tornassem na expessura de vergalhões, para ser ainda mais afinados, ao ponto da bitola de fios de energia, num outro galpão, ou fios mais finos, que reunidos formariam um cabo de telefonia, de mais de 4 dedos de espessura, com os cabinhos dentro, finíssimos ao máximo, para ser usados na telefonia desse quarto final de século, mega-antiquada, em tamanho e sofisticação,  em relação às fibras óticas de hoje.
      O engenheiro que havia pedido o estagiário, que seria eu, queria implantar naquela empresa a Manutenção Preventiva, que consistia numa escalada prévia de máquinas a ser paradas, para uma inspeção geral em pontos críticos de seu circuito, que assim evitassem futuros defeitos. 
     Dizia que, assim, era mais lucrativo e inteligente prevenir, do que, num defeito eventual, aí sim a equipe da Manutenção Corretiva vir à máquina para somente então checar do que se tratava e providenciar o reparo. Vários fatores contribuiriam para atrasos, a não disponibilidade de peças de reposição, a imprevisibilidade do tipo de defeito, tudo isso junto justificaria essa turma preventiva, da qual eu fazia parte.
      E minha função era supervisionar o trabalho deles. Num tempo em que os quadros das máquinas ainda eram gigantes, com circuitos que apenas começavam a ter unidades eletrônicas, plantas em papel, enormes, do tamanho de lençóis de solteiro, que se desdobravam em quatro, oito e, quem sabe, dezesseis partes, eu tinha que inspecionar o trabalho desse pessoal, para relatar se, ao submeter a escala de máquinas eleitas para o tipo de manutenção, estavam seguindo a receita item a item. 
     Havia um Encarregado, um cara experiente nesse serviço, que acompanhava os eletrotécnicos, e eu junto, avaliando o serviço de todo mundo, como elo entre essa equipe e o engenheiro. Só delineava-se um pequeno problema: eu estava dois anos defasado dos técnicos que trabalhavam sob minha inspeção. Eu abandonara o mitiê no qual eles eram peritos, para decolar no rumo do estágio superior da engenharia elétrica.
     Evidentemente, o estágio deles era simples, comparativamente falando, em relação ao nível que eu almejava. Mas era a velha distinção entre teoria e prática que, aliás, ficou patente numa entrevista a que, nos idos de 1976, recém saído da Escola Técnica, fui submetido, pasmem todos, quando fui aprovado para, nada mais, nada menos ser técnico em Furnas, na Termoelétrica de Angra dos Reis.
     Lembro ao paciente leitor que se trata da Usina  Nuclear que, na época, necessitava de um grupo que seria formado por ela de técnicos especialistas em medição de radioatividade, fosse nas instalações, funcionários ou meio ambiente em redor. Foi um prova pouco divulgada, realizada num domingo ermo, com poucos alunos, fossem da Escola Técnica Federal, fossem da Visconde de Mauá, em Mal Hermes, ambas no RJ.
      Acho que em meio a uns vinte, 8 foram aprovados. Amanhecendo, levados por um ônibus da própria Furnas Centrais Elétricas, à Termoelétrica de Santa Cruz, lá no início da Rio-Santos, mais para Itaguaí do que Sta Cruz, onde ficamos o dia todo, claro, sendo observados, almoçamos, visitamos as instalações para somente ser entrevistados à noitinha.
      Creio que trabalhar em Furnas, a um só tempo, seria emancipação, cumprir a orientação do velho pai em ingressar no mercado de trabalho e, muito provavelmente, solver os conflitos dessa "inversão" de adolescência. Foi quando, na entrevista, ficaram patentes duas facetas numa só personalidade.
     A primeira, quando o engenheiro perguntou sobre minha visão de futuro, visto que não existia formação específica para a função na usina em Angra e ele explicou que, pelo currículo e experiência do curso técnico, eles é que, por um ano inteiro, formariam essa qualidade de técnicos dentro da própria empresa. 
      Eu disse que pretendia cursar engenharia elétrica. Ele então expôs a visão da empresa, que não investiria numa mão de obra por um ano, sob risco de, uma vez vendo-a formada, perdê-la, ainda que para a faculdade. E, ironicamente, perguntou em que faculdade eu estudaria, se ia trabalhar em Angra dos Reis, das 7 às 18h, a 150 km do Rio e a 350 de Sampa? 
      Eu dei a resposta de um neófito: sei lá,  só sei que quero "fazer" engenharia. E a segunda pergunta definia, numa ilustração, a diferença entre teoria e prática. Ele perguntou como eu poderia saber se uma bobina, numa máquina elétrica, estaria internamente rompida. Elementar, meu caro Watson. Mas ele que me respondeu. 
     Era o tipo de pergunta simples, definidora do grau de malícia ou experiência de um candidato qualquer a esse tipo de posto, do tipo que, responder certo não significava estar diante de um gênio, mas não saber possivelmente se estaria diante de um, como dizer, ser humano deveras (meio) alienado. Não soube dizer. Ele foi direto: desconecte os bornes, plug o multímetro: se der infinitos ohms, circuito aberto, se der 0 ohm, não há ruptura. 
     Assim foi minha ruptura com a possibilidade de uma carreira em Furnas. Infinitos ohms de distância.

sábado, 12 de setembro de 2020

1978 - ano 1 no Seminário

 1978

    Assim iniciei no Betel. Acho que fiquei lá por umas duas ou três semanas. Bateu uma bruta vontade de procurar o nosso seminário, quer dizer, o congregacional, no Edifício Kalley, anexo à Igreja Evangélica Fluminense. Doce lembrança de ensaiar "Maravilhosa Graça", lindo hino, com uma não menos maravilhosa anciã de que não lembro o nome.
    Ao meu pai eu disse o mesmo que ao pr Amaury. No seminário congregacional estaria mais próximo à liderança denominacional, porque quase havia total equivalência entre ela e o quadro de professores. 
     E no formulário de matrícula, no item que perguntava as razões de ingresso, deixei bem claro que o que me movia era o interesse puramente acadêmico, visto que era professor de EBD, líder de jovens, eventual pregador, até, porém pastor, jamais. 
     O ano seria de uma total dedicação, de um esforço monumental para superar as inéditas reprovações nas disciplinas zero, mesmo porque o curso era tempo integral,  manhã e tarde, à noite pegando o 176, E. de Ferro-Gávea, para me deslocar ao Centro, sempre descendo no Lgo da Carioca, para evitar o engarrafamento, aproveitando para dar uma passada no Bob's da Visconde de Inhaúma, comprar um cheese, degustar deliciosamente pela rua, até alcançar Mal. Floriano e dobrar na Alexandre Mackenzie.
      No 60, tomar um cafezinho do Presb. Samuel, visto que o cheese fora comido a seco. No recreio haveria mais um café, desta vez com as célebres rosquinhas. Ao final da aula, trem da Central, em companhia de Paulo Leite, chegar a casa e saborear, antes de tudo, a sobremesa de Dorcas, geralmente doce de banana ou uma invenção dela, o banacau, cocada de banana feita com Nescau, enquanto esperava a janta esquentar. 
     Essa era a ponta do iceberg. Dentro, o torvelinho, mais intenso, à medida em que verificava que 1978 seria, na PUC, idêntico a 1977.

1978 - Parte três

 1978

    Se eu disse ter sido uma luta em três dimensões, acadêmica, vocacional e moral, desejo dedicar-me mais à feição última aqui mencinada. Porque confrontou-me com o essencial à fé. 
    Ela vem em socorro de nossa salvação. E nesses meus conflitos dos 20 anos, devo dizer, iniciados aos 20, para que se delineasse a vocação, como Deus queria, fui confrontado comigo mesmo e posto diante da realidade e necessidade da fé. 
   Não digo que me tenha convertido, isso ocorreu bem cedo, mas como que uma perda da "inocência" (que nunca tive), o despir-se de uma ilusão, de uma certa acomodação e conformismo que, acho, eram despercebidos por mim, porém não menos danosos.
     O Cid Mauro "gente boa" cedeu lugar ao real pecador necessitado de arrependimento e conversão. Como se, potencialmente,  Deus me mostrasse o que eu seria, se não fosse a represa, até ali, de minha "espiritualidade" e do puritanismo de tradição, e o que me esperava, se insistisse em continuar em toda essa panaceia.
    O "ai de mim" de Isaías se esboçou para dentro e por dentro de minha realidade. Os sobe e desce pelos corredores e escadas dos prédios da PUC, entradas e saídas de aulas estéreis de tudo, a defasagem do medir-se a toda hora, meu único referencial eram as reuniões do grupo da ABU, onde eu me via extraindo para fora o conteúdo que, nos anos pregressos, e para dentro dessa fase eu havia armazenado dentro: leituras e leituras da Bíblia. 
      Muito eu repetia e ouvia para mim mesmo. Mas também falando para quem ali estivesse. Certa vez, a líder de uma das pastorais católicas foi assistir ao grupo, certamente para dar o tom do que achava mais pertinente de se ouvir ali. Ela defendeu que a visão humana de Jesus era o que mais importava. E justo no dia em que, no tal "estudo indutivo", lemos Mateus e a ideia dele de deixar Maria em secreto.
      Um dos presentes, então, perguntou como Jesus nascera, como o Verbo se encarnara, como Maria poderia ser virgem, se o bebê nasceu. Prontamente eu interferi e argumentei, ora, como nos disse a Irmã, quem é inteiramente humano, verbo encarnado, Deus que se fez homem, não poderá ter nascido de um modo fantásmico.
     Ela ponderou que, noutra oportunidade, poderíamos discutir com mais propriedade tema tão sensível. Doutra vez, entre nós havia um frequentador, cujo nome não recordo, que demonstrava excelente conhecimento bíblico. Mas não dizia sua origem. Apenas que havia passado algum tempo nas A. de Deus. Porém, seu cabedal não demonstrava afinidade com a doutrina pentecostal. Era um mistério. 
     Colei nele, era nesses dias que o líder do grupo reclamou, em off, que eu não insistisse tão veementemente nos textos morte/ressureição em Cristo, batismo e selo no Espírito, convicção irredutível de salvação. Mas minha insistência o fez convidar‐me, e aceitei, por dois dias participar da doutrinação da "igreja" de Sun Myung Moon, coincidentemente numa casa, no Méier, a 50 m da minha.
     Um conflito insolúvel por dentro, uma articulada recitação de textos bíblicos em arquivo para fora aliada a uma autodoutrinação para a justificativa de cursar o seminário, tudo se fundia numa forja só, esboço da crise existencial determinante de minha formação como pessoa. 
     Acho que minha adolescência começava aos 20, para terminar em torno dos 30, pouco mais, pouco menos.

1978 - Parte dois

 1978 

    Mas foram nos corredores da PUC, bem demarcados, eu imerso em meus escuros labirintos internos, que a decisão de ir para o seminário brotou. 
    Esse foi o lado do conflito inferior, na trincheira carne versus Espírito, onde os dois são opostos entre si, como dizem as Escrituras. 
    O lado racional, por assim dizer, delineou-se ainda lá pelos lados da Estância quando, porque pernoitávamos nas instalações do Instituto Bíblico Palavra da Vida  - IBPV, havia a consulta hipotética de cursar aquele seminário.
     Logo descartada por mim. Eu tinha um conflito, mais esse, em curso, na área acadêmica, assunto não resolvido, e achava que abandonar essa frente de luta era alienar-se. Não queria isso para mim.
     De volta ao Rio tive uma conversa com o pr Amaury Jardim, que me acompanhava desde os dias de minha infância, em Cascadura, amigo dos filhos dele, quando argumentei que, entre me isolar num seminário interno e cursar outro externo, optaria por este, para não me ausentar da luta nua e crua.
     No meu caso específico, era a melhor opção. E comecei no Betel, ali no Rocha, RJ, época em que esse mesmo pastor era Diretor Interno. Eu queria como que homenagear meu pai que, na década de 40, ainda no tempo do pr José de Miranda Pinto, fundador dessa casa, ali estudara.
     Nas perambulações pelos corredores da PUC e nos desvãos de meus calabouços íntimos uma luta acadêmica, vocacional e moral se travava. Esta última, porque Deus me mandava ficar nu, também retirando a máscara, não esta dos anos de pandemia, mas outra da hipocrisia, por si só mais carnavalesca.
     Outra espécie de linearidade caía por terra, a de que era um tremendo gente boa, filho de pastor, crente desde garotinho, pela mão de Dorcas, pelas EBFs e EBDs da vida. Foi nos corredores da PUC, ambiente propício ao torvelinho existencial daqueles anos, que me descobri pecador, na amplitude do que isso realmente significava.
    Um esboço de gente começava a se delinear.
     
   

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

1978 - Parte um

 1978

    Desde 1969, lá iam quase 10 anos, eu participava do Acampamento Ebenézer, em Pedra de Guaratiba, extensão de formação para os alunos do Seminário Teológico Congregacional do Rio de Janeiro, seção internato. 
   Portanto, estava formado na aura de influência dos seminaristas, equipantes do Acampamento, que era enfatizar, naquele contexto, sua história de vocação, abrindo nossa visão para o desafio missionário e mesmo vocacional para o ministério.
   Certa vez, num dos cultos, houve uma verdadeira festa de ágape, quando todos nós nos abraçamos, na velha capela da Pedra de Guaratiba, após o culto da noite, que antecedia o banquete.
   Como se diz, foi um chororô, todos se abraçavam, era época da direção do Acampamento pelo pr Amaury Jardim e sua esposa Rute, temporada de jovens, quer dizer, acho que eu tinha meus 15 ou 16 anos, o que vai dar em 72 ou 73. 
     Essas reuniões, as mensagens desses cultos missionários, os testemunhos desses seminaristas, muitos deles hoje pastores ou esposas de pastores, beirando seus 50 anos de ministério, tudo junto contribuía para a manutenção de um permanente apelo vocacional.
    E ainda em 1977 ocorreu um fato que me alavancaria para a equipe da Estância Palavra da Vida, em SP, que foi a amizade com a hoje apóstola Silvia Thompson. A família dela ia à minha igreja, em Cascadura, pois sua mãe era líder na COUAF, a confederação de senhoras congregacionais.
     Essa propaganda do Palavra da Vida incluía indicação para compor a equipe do Acampamento deles ou da Estância. Eu avaliei que meu perfil se encaixaria mais com o da equipe da Estância. Enviei formulário e dados e fui selecionado. 
    O plano era passar o Natal com eles lá, para um treinamento inicial. Primeira vez na vida, fiz barba em barbeiro, véspera da viagem. Cheguei no ap do Méier cheio de manchas vermelhas. Dorcas matou a charada: não era urucubaca de barbeiro: era um tipo de alergia de corpo inteiro.
     Não viajei no tempo aprazado. Procurei me enturmar depois. Chegava-se a Atibaia, onde pernoitei na casa de irmãos, para dia seguinte ir para a Estância Palavra da Vida. Pois foi lá, noutro culto desses de emoções a mil, choro e ágape de montão, que me desloquei do grupo, deixando-o ainda dentro do auditório, no chororô, saindo por uma porta lateral, e me lembro ter feito uma oração. 
     Num alpendre externo, era à noite, olhei o descampado lá embaixo e também mirei o céu lá em cima. Nela pedia a Deus que, caso houvesse de verdade uma vocação específica para mim, que nunca fosse algo por mim mesmo criado, forçado, fantasioso, mas que fosse autêntico. Essas orações a gente faz, mas depois até esquece. Mas o efeito delas fica. 
     O ano de 1978 me jogou, então, dentro do seminário.

1977 - Esse ano

 1977

   O avesso do avesso. Esse ano marcou uma virada numa vida digamos, até ali linear. Em termos acadêmicos, para utilizar o termo,  cursei Jardim de Infância, em Nilópolis, 1963, primário, um começo numa escola da Av. Mirandela, lá também, e de 1964 a 1966, na Escola Paraná, em Cascadura.
    Atropelado, em 1967, na esquina próxima a ela, ainda terminei a 5a série, para ingressar, já morando no Méier, na 6a série, em 1968, e no antigo ginasial, 1969-1972, numa escola primária geminada com o Ginásio Bento Ribeiro - UI, Unidade Integrada.
    Por ter um amigo, colega de turma, Rogério, cujo pai, médico, conhecia o dono do Curso Martins, no Méier, começamos o preparatório para a Escola Técnica. Fizemos a prova no Maracanã, em fins de 1972, Português, Matemática, Química e Desenho, os famosos cadernos vermelho, amarelo, verde e azul, nessa ordem, minhas opções foram eletrônica, eletrotécnica e mecânica. Classificado nesta última, reclassifiquei-me para eletrotécnica, para início no 2o semestre de 1973.
     Enquanto isso, cursei inglês, no antigo Curso Oxford, na Dias da Cruz, onde até hoje a galeria de lojas conserva esse nome, mas sem o curso, entre 1973-1975. Cheguei à escola técnica sem muita convicção do que seria um preparo profissional, do que seria "mercado de trabalho" como, mais tarde, meu pai mencionaria. 
     Um certo professor nosso, rigorosíssimo, diria meu pai, se vivo, arrochava a gente dizendo que não queria aluno cursando eletrotécnica para depois fazer letras numa faculdade qualquer. A profecia era para mim.
     Já disse como cheguei à PUC. Fracasso duas vezes seguidas na reprovação em Matemática 0 e Física 0, em 1977 e 1978, aquela luta íntima contra o complexo de Jeca-tatu e mais a descoberta que o verniz de evangelho precisava da marca do sangue definiram o contorno desse capítulo de minha existência.
      Esboçava-se o ano de 1978.

1977 - Terceiro peso

 1977

    O terceiro peso foi o torvelinho íntimo que carreei, dentro desse quadro meditabundo com que eu me desenhava, para o "lado espiritual", outra modalidade terminológica bem típica do contexto evangélico de época a que eu pertencia. 
    Se a validade de minha opção havia sido sublinhada pelo meu pai com um discurso nessa linha, não seria tão surrealista assim eu começar a desenhar uma resposta nessa mesma linha de pensamento. 
    Os corredores, prédios, auditórios, salas, escadas, bosques, labirintos da vila dos diretórios, enfim, todos os meandros da PUC têm meus conflitos de época gravados no silêncio de suas torres. 1977 foi o ano dessa forma, dessa galvanização existencial.
     Um oásis para diálogo, onde eu falava e ouvia, fora o único amigo que, nessa época, suburbano do Cachambi, bairro vizinho ao Méier,  compartilhou comigo um pouco ou bastante desse mesmo dilema, o grupo da ABU foi meu oásis nesse deserto íntimo. 
   Sei que seu nome tinha Antonio, assim como Carlos. Não me lembro a ordem. Alberto completava o grupo de nós três, este último era um escrachado, em todo o bom sentido, um aventureiro que interrompeu um desses anos na PUC para atravessar, de carro, da América do Sul à do Norte, o que efetivamente realizou.
     Paulo Kurka, desse me lembro bem, era o dirigente do grupo, tentando praticar aquele método indutivo que eles adotam como estratégia, mas eu sempre atrapalhava, querendo ir direto ao ponto, despejando de memória, no ambiente da conversa, todos os textos que falam de morte/ressureição, confissão de fé e batismo em Cristo que a Bíblia tem. 
     Esse exercício e mais as peregrinações pelos corredores, escadas, para não dar, dentro dos elevadores, com os meus des-iguais, e outras perambulações, o modo como eu trabalhava as Escruritas, versus o modo como o Espírito trabalhava em mim, esse todo conflito interno, junto com as reprovações em Matemática 0 e Física 0, algo inédito até ali em minha vida acadêmica,  tudo foi o caldo primordial do início de transição para a minha vida adulta. 
      Porque ainda vai demorar a debut dessa adolescência ao avesso do avesso.

1977 - Segundo peso

 1977

    O segundo peso era que o nível social da clientela da faculdade era acima da minha condição social. Isso seria nada, caso eu não absorvesse ou, a todo o momento, não topasse com essa distinção.
    Quando nos mudamos para o Méier,  em 1967, exatos 10 anos antes, um colega de trabalho de Cid, meu pai, ibgeano, como diziam, advertiu-o, "Cid, tua mulher não vai ter condições de acompanhar o luxo do Méier não". Porque era um subúrbio metido a besta. 
    Brasil tem dessas coisas, construídas ao longo de sua história, até hoje, colonial. Sub urbis da Central do Brasil,  espaço das personagens de Lima Barreto, quando ou se alcançassem o Méier, seria pensando na Tijuca, para depois galgar a zona sul e, se não morresse por lá, no patamar mais elevado, aproveitar estar de frente para o mar e alcançar Miami. 
     Na PUC, em 1977, eu me vi, desde as roupas, calçados, jeito é gestos, via-me refletido em tudo à minha volta sendo de uma classe subalterna,  inferior, ou seja, como dizia outro pré-modernista, desta vez, Monteiro Lobato, incorporei o meu complexo de Jeca-tatu.
     O ritual do almoço era típica indicação desse obstáculo. Trazia uma marmita, punha-a a esquentar num espaço próprio existente na bancada de metal, onde havia água fervente, retirava-a quando estivesse pronta e, do bandejão,  utilizava apenas talheres, prato e copos.
     Eu achava  que todos os olhos estavam voltados para mim. Visto que o gesto indicava economia, sim, mas da taxa do bandejão, que já era mínima. Eu me sentia mínimo abaixo do mínimo. Ora, eu é que deveria ser outro e "não estar nem aí", jeito de falar também daquele tempo, para a coisa. Mas, mais um complexo se incorporava.
     E tudo passou a ser um mundo fora que contradizia meu mundo dentro. As pessoas em si, que eram quem elas eram, mas tudo nelas, inocente ou até mesmo indiferente nelas, projetava-me para outra realidade interna, de posição fetal, mas num ambiente hostil.
    Tudo. Numa aula de inglês, sim, porque havia indicação para escolha de matérias culturais, complementando a grade curricular, pedi Inglês 1. Certa vez vês, a professora quase cumpriu uma gafe, quando tentava ensinar o que seriam shabby clothes, aflita,  rodeou a sala com um olhar, procurando exemplo, foi quando deu comigo, olhou as calças,  arregalou olhos,  emendou outro recurso para se fazer entender,  mas não precisava: todos haviam entendido, mas fingiam que não me viam.
     Eu me via. O que estou fazendo aqui neste mundo? Não é meu. Certa vez, o professor de Matemática 0, especialista em teoria matemática, demonstração de teoremas, cuja principal função já explicamos, drenar as energias do bagaço de cana que os alunos representavam para o sistema, diria na época alguém do diretório acadêmico, indicou uma casa de estudos por ali, numa das transversais da Jardim Botânico.
     Eu fui. Porque ainda acreditava em não sei o quê. Entrei. Perambulei pela casa em todos os cômodos dela. Havia viventes, certamente, eu os notei. Grupos animados conversavam. Havia revistas. Livros. Abajures. Meia luz, plena luz, ambientes. Almofadas. Mesas e rodas de conversa. Cadeiras e sofás. Tudo fervilhava e com ninguém e com nada eu me identificava, talvez ainda  mais notado, eu mesmo com os meus olhos,  com meu jeito shabby clothing. Circulei duas ou três vezes, até peguei numa das revistas, devo ter até sentado, mas não me enturmei, nada falei, nada falaram, devo ter sido notado e ou ignorado. 
     Definitivamente não era o meu mundo. 

1977 - Primeiro peso

 1977

     Ano em que fiz 20 anos. Com 19, já estava na PUC/RJ, na Gávea, para cursar engenharia elétrica. Era a ilusão alimentada na transição do curso de eletrotécnic, entre 1974 e 1976, feito na Escola Técnica Federal, no Maracanã.
    A fornada de alunos daquele ano, egressa do vestibular unificado da Cesgranrio, era um estorvo para a faculdade. Por isso, matricularam todos em Física 0 e Matemática 0, de modo a que fossem massacrados pelo modelo puramente teórico dessas disciplinas, para filtrar os sobreviventes. 
     A partir do ano seguinte, a universidade teria o seu vestibular isolado, o que lhe permitiria elitizar a clientela. E tudo isso ocorria num período de agitação política, governo Geisel, em que o diretório da PUC promovia reuniões nos pilotis, alusão ao prédio Cardeal Leme. Por isso,  pouco efeito teve uma advertência, por um grupo de veteranos,  que aquela iniciativa de "zerar" essa fornada de alunos do curso de engenharia era indevida.
    A chegada à PUC teve aquele deslumbramento e fantasia própria da época de calouro. Eles não faziam trote, mas convocavam para uma semana de calouros, com shows e outras participações muito amenas.
    A universidade fica em meio a um bosque, encrostado à beira de uma montanha ali, do velho Leblon-Gávea, onde os dois bairros se confundem. Uma de suas partes é chamada exatamente bosque,  cortado por um riacho, infelizmente poluído, mas um conjunto de árvores, cantinhos aprazíveis e assentos que entretem nos períodos de folga ou intervalos entre aulas. 
      Minha entrada na faculdade teve uma leve relutância, porque eu havia optado, no vestibular, engenharia fosse no Fundão, UFRJ, na UERJ ou na UFF, em Niterói. PUC foi quarta opção, particular, como ainda diz Martinho da Vila, o que seria demais para o funcionário público do IBGE, meu pai, e a professora primária minha mãe. 
     Portanto, informei-os de que a melhor opção era esquecer, tentar no ano seguinte, que tudo se encaixaria. Na verdade o conselho do "velho", como se referia aos pais na época, era aproveitar o curso de eletrotécnica feito numa instituição de alta monta,  que era a ETFCSF da época, para ingressar no mercado de trabalho. 
      Boa ideia do velho. Mas a preparação para o vestibular, que incluía sessões de estudos com amigas da igreja, Nadya Nascimento e Isis Jardim, empurrou-nos para o vestibular e consequente ingresso na faculdade. Por isso, na hora de eu sair fora, por causa do preço exorbitante que minha família pagaria, o velho espiritualizou a coisa e recomendou enfrentar.
     "Meu filho, você estudou e orou, esse resultado não é por acaso,  Dsus tem nos sustentado e vai continuar sustentando", etc, nessa argumentação. Topei. A coisa era bruta, comparativatemente falando, como se Dorcas, minha mãe,  ganhasse 1.000 ao mês e pagasse 950. Porque ficou combinado que o salário dela cobriria o carnê e meu pai a supriria com uma mesada.  Este o primeiro peso.