quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

A última noite - Parte 2

 

    Silêncio. Nada disse. Nada replicou o Ancião. Mas agora, o que o impressionava era o olhar. Ora, caramba, agora era o olhar. Estava e não estava, ali, com uma veste semelhante à dele, com alva cabeleira, olhava de soslaio, porque encarar nos olhos nunca ousaria. 

     Estava e não estava presente, lia e não lia seus pensamentos, ouvia e não ouvia sua voz mas, muito mais do que se angustiar com isso, sentia uma imensa paz, sentia uma presença, mas sua tendência era assustar-se com isso, porque qual a razão de ser dessa conversa, principalmente se, quem era que estava ali ele imaginava que fosse?

     Afligiu-se. Foi quando ouviu. Não precisava. Surtou-se. Fez cara de espanto mas, ao mesmo tempo que sabia, precisamente, sobre o que o Ancião de dias (e põe dias nisso) perguntava, porque essa conversa trazia tudo à memória, estremeceu porque a memória dele ia direto ao ponto, por isso, de novo, ouviu o comentário e reavivou as lembranças.

     Para que morrer xingando todo mundo? Esse era o ponto. A vida dele passava como um filme em retrospectiva. Daí, dessa pergunta para trás, aquela conversa ali, naquela antesala, com o Ancião, tudo começava a fazer sentido.

     Agora viu os olhos dEle plantados nos seus. E de novo, como repetição, não precisava. Essa frase, nessa altura do bate-papo, percorreu toda a sua vida, dali para trás. E ele sabia que o que lhe vinha à mente, era com isso que o Ancião conversava.

     É, eu era assim mesmo, estúpido. Ele ia dizer "mas o Senhor sabe", resolveu não dizer, mas pensou, estão estava dito, então logo disse audível, para ver se valia o dito pelo não dito, estúpido mesmo, temperamental, de explodir, falar à toa, até ofender, admito. Então se lembrou dos olhares da esposa.

     Olharam-se nesse ponto. Ele deu o frequente olhar da esposa para Ele como argumento de sua defesa. Mas ela lhe olhava reprovando você, Ele disse. Pois é, o homem retrucou. Aquela ali era uma santa, disse, caindo no lugar comum. Para te aguentar, disse Ele reticente.

     Sim, antes que o homem continuasse a pensar, inquirindo, nesta antesala fazemos uma revisão, antes de qualquer outra decisão. Ele então pensou na possibilidade de, digamos, um retorno. Não, respondeu o Ancião, sem retornos. A vida é uma só. Já viveste a tua. Foi taxativo. 

     O homem já, de antemão, percebia por que, desde que se vira ali, no cubículo branco e ele também todo branco, começara a ver a si mesmo por outra ótica, ou melhor, para dizer de outro modo, pela ótica que se acostumara a se ver, durante toda a sua vida, mas que sempre rechaçara, também durante toda a vida, vinha de novo à mente o olhar (reprovador) da esposa.

      Ao mesmo tempo que via, no olhar do Ancião e num jesto com as mãos um modo de dizer "É isso", como que assinando embaixo desse raciocínio, os olhos do homem se arregalaram, agora como que olhando para através da suposta porta de acesso que saía da sala, sim, porque aquela por onde entrara estava às suas costas, e isso o incomodava, mirou de novo o rosto do Ancião.

    E ficou esperando a resposta, porque já sabia que Ele sabia. É óbvio que sim. Esta resposta foi confirmando que sim, a esposa estava para além da porta de saída da antesala. Para a outra resposta, concernente ao pensamento que ele esboçou, que era, consigo mesmo, saber se ia revê-la, viu no olho do Ancião um indicador de não resposta. 

     Imediatamente mudou de assunto (ou de pensamento). Vocês mudam fácil de pensamento, Ele disse, o que não deixa de ser, também, uma espécie de fuga. Inútil tentativa, anuiu. Todo pensamento, uma vez pensado, volta. Baseado neles, no encadeamento deles, há muita ação indevida. E essa tentativa fútil do ser humano de pensar em esquecer, fazer de conta que nunca existiram e achar que nunca mais vai estar frente a frente com eles. Ou consigo mesmo. Que é a mesma coisa.

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