Karl Barth havia desencadeado uma tremenda revolução com seu comentário aos Romanos, e nos anos que se seguiram, a revolução se ampliou consideravelmente, se avolumando sob a égide de um novo movimento teológico denominado “neo-ortodoxia”. Emil Brunner talvez tenha sido um dos nomes mais conhecidos dessa nova escola, depois, é claro, de Barth.
Brunner foi um teólogo suíço residente nos Estados Unidos que também teve participação importante no desenvolvimento da teologia neo-ortodoxa. Nascido em 1889, estudou em Zurich, Berlim e também no Union Theological Seminary, em Nova Iorque. Tornou-se professor de teologia em Zurich em 1924, e em 1953 deixou a Suíça para tornar-se professor na Universidade Cristã do Japão.
Desde os primeiros anos do comentário aos Romanos, a neo-ortodoxia – às vezes chamada de barthianismo – cruzou muitas fronteiras, tendo exercido influência no oriente. No Japão, por exemplo, apesar da influencia de Brunner, foi Barth quem foi apelidado de “o papa teológico”. Enquanto nos Estados Unidos ele era recebido como um dos mais importantes teólogos, no Japão ele era conhecido como o único teólogo. Essa influência de Barth no Japão, deve-se principalmente aos escritos de Tokutaro Takahura, por volta de 1925. Na verdade, o mundo inteiro sentiu o abalo da teologia barthiana, tanto que ao final da década de cinqüenta, as três principais correntes teológicas já eram mencionadas como sendo a conservadora ou ortodoxa, liberal e neo-ortodoxa.
Temos que reconhecer que existe muita rivalidade no movimento. A ferrenha diferença de opiniões entre Barth e Brunner quanto à realidade do nascimento virginal e da revelação geral, as criticas de Barth à Bultmann e as críticas que Bultmann devolveu à Barth, a discordância de Pannenberg acerca do conceito barthiano de história, são indicativos de que as vozes dentro do movimento neo-ortodoxo nem sempre foram unânimes. Emil Brunner aceita a revelação geral, e a mesma é negada por Barth. Barth aceita o nascimento virginal, conceito que é negado por Brunner. Ele foi duramente criticado por Barth por afirmar que a imagem de Deus se encontra ainda no homem pecador e que Deus se revela na natureza, mas se defendeu argumentando que se o homem pecador não é mais a imagem de Deus e se não há nenhuma revelação de Deus na natureza, então o homem não pode ser responsabilizado pelo pecado que comete.
A teologia de Brunner, assim como a de Barth, é extremamente subjetiva. Buscando inspiração nos escritos dos filósofos Martin Bubber e Soren Kierkgaard, ele define o cristianismo e a teologia em termos mais relacionais que racionais. Ele argumenta que Deus não pode ser tratado como um objeto de estudo, ou um “isso”, mas devemos nos relacionar com ele apenas como um “Tu”. Essa insistência em que Deus é sempre sujeito e nunca objeto será um tema bastante recorrente na teologia contemporânea.
Em um capítulo anterior, indicamos alguns dos pressupostos, bem como a metodologia da estrutura teológica neo-ortodoxa. Agora, cabe a nós destacarmos os temas comuns. O esboço que demonstraremos a seguir está baseado principalmente na obra Dogmática da Igreja, de Barth.
4.1- O tema mais debatido pela neo-ortodoxia é o conceito de revelação.
A revelação, segundo Barth, é uma perpendicular que vem de cima, e que por isso não pode se comparar com as melhores intuições humanas. A revelação é um evento no qual Deus toma a iniciativa. Também é dito que a revelação não pode comparar-se com a Bíblia, pois é superior a ela. A Bíblia e suas afirmações são testemunhas, são sinais indicadores da revelação, mas não é a revelação em si. A Escritura não é a Palavra de Deus, e nem as afirmações da Escritura são revelação. Segundo Barth, comparar a Bíblia com a Palavra de Deus é objetivar e materializar a revelação.
Nesse mesmo terreno, Brunner definiu a revelação como sendo uma ocasião de diálogo em que Deus se encontra com o homem. Não se pode dizer que a revelação tenha acontecido, à não ser que ambos os participantes do encontro – a saber, Deus e o homem – se encontrem.
4.2- O coração da revelação da Palavra de Deus, segundo a perspectiva neo-ortodoxa, é Jesus Cristo.
De fato, Barth insiste tanto nessa idéia que chega ao ponto de negar a existência de qualquer outra revelação, à parte de Cristo. Para ele, a história da revelação e a história da salvação vêm a ser a mesma coisa. No Cristo de Barth, Deus revelou que não queria deixar o homem existir em pecado. Por isso, Barth insiste em que nunca deveríamos mencionar o pecado, a não ser que agreguemos imediatamente que o pecado foi derrotado, esquecido e vencido por Jesus. A reconciliação entre Deus e o homem se efetua por meio de Cristo. Jesus Cristo é o próprio Deus, isto é, é Deus que se humilha a si mesmo. Em sua liberdade, Deus cruza o abismo aberto e mostra que ele é verdadeiramente Senhor.
Na encarnação, Deus se humilha a si mesmo. Barth não quer admitir a humilhação do homem Jesus. Segundo ele, dizer que a humilhação se refere ao homem é uma mera tautologia. Que sentido haveria em falar de um homem humilhado? A humilhação é algo natural no homem. Porém, dizer que Deus se humilhou a si mesmo, segundo Barth, é entender o verdadeiro significado de Jesus Cristo como Deus. Ele é o Deus que se humilha, que se revela, e é também a própria essência da revelação.
4.3- Barth afirma que Cristo, embora haja se humilhado como Deus, foi exaltado como homem.
Ele se nega a admitir a idéia tradicional dos dois estados de Cristo, humilhação e exaltação, referindo-se à totalidade do Deus-homem em ordem cronológica. Para Barth, Deus se humilhou a si mesmo e o homem (a humanidade de Jesus) foi exaltada. Dizer que o estado de exaltação se refere a Deus também é mera tautologia. Que sentido haveria em falar em um Deus exaltado? A exaltação é algo natural em Deus. Segundo Barth, “em Cristo, a humanidade é humanidade exaltada, assim como a divindade é divindade humilhada. E a humanidade é exaltada com a humilhação da Divindade”.
4.4- A doutrina de Barth traz implícito o universalismo.
Outro problema bastante polêmico dentro da neo-ortodoxia é a ambigüidade de seus proponentes no que concerne à possibilidade de salvação universal. Barth desde o início repudiou o conceito supralapsariano – que é a dupla predestinação – afirmando que a eleição não diz respeito a pessoas, e sim à Cristo. Ele afirma que a tarefa da igreja é proclamar que os homens já foram eleitos em Cristo, e que portanto, devem viver como escolhidos. Para Barth, a eleição não é um estado que adquirimos em Cristo, e sim uma vida de ação e serviço a Deus.
Esse conceito barthiano implica em universalismo? Barth não afirmou, mas também jamais negou essa hipótese. Em uma de suas últimas conferências sobre a humanidade de Deus, ele disse que “não temos o direito teológico de estabelecer quaisquer limites à misericórdia de Deus que se manifesta em Jesus Cristo”.
4.5- Objeções à neo-ortodoxia.
Como se pode observar, muitos pressupostos da neo-ortodoxia são resultantes da influência do liberalismo, o que torna algumas de suas propostas inaceitáveis para os teólogos ortodoxos. Há ainda muita polêmica dentro da neo-ortodoxia, não sendo difícil levantar objeções a essa corrente teológica. O que apresentamos a seguir são algumas objeções mais freqüentes que são levantadas contra a neo-ortodoxia.
Primeiramente, a neo-ortodoxia coloca a experiência subjetiva acima da revelação objetiva. Para a neo-ortodoxia, a revelação não é simplesmente uma declaração de Deus ao homem, e sim um encontro divino-humano, uma confrontação e um diálogo existencial. De acordo com essa premissa, a Bíblia não pode ser a Palavra de Deus. Ela se transforma em Palavra de Deus à medida que Deus fala conosco por meio dela. Reconhece-se nessa premissa a dívida que a neo-ortodoxia tem com a escola de filosofia existencialista.
A neo-ortodoxia conserva a linguagem teológica ortodoxa, porém a reinterpreta, e muitas vezes o resultado desta reinterpretação é tão nocivo quanto veneno no leite. As doutrinas do pecado original, da queda de Adão, da redenção, da ressurreição e da segunda vinda de Cristo são chamadas de mitos por Brunner e de saga por Barth. A interpretação que a neo-ortodoxia dá a essas passagens é acima de tudo existencial, quase nunca literal, sob alegação de que essas doutrinas não descrevem eventos na história, e sim condições históricas sob as quais todos os homens vivem. Gênesis 3, por exemplo, não deve ser tomado como história literal, sendo apenas uma forma simbólica de explicar a realidade do pecado e do orgulho na vida humana. Esse conceito de teologia não deixa nenhuma porta pela qual possa entrar a pregação da vinda do Filho de Deus como evento a ocorrer na história, por exemplo.
A insistência de Barth em Jesus Cristo como o coração da revelação é tão forte que o leva a negar a existência de qualquer outra revelação de Deus. Essa idéia é contrária a Bíblia, pois esta afirma que Deus se revela através da sua criação (Atos 14.17 e Romanos 1.19-20). O conceito barthiano e neo-ortodoxo de revelação também é contrário à doutrina bíblica da inspiração, e acaba por destruir o caráter bíblico de revelação canônica.
Alguns acusam Barth de fazer uma interpretação dualista da encarnação de Cristo, pois ele parece fazer distinção entre as duas naturezas, repudiando por completo o credo da Calcedônia. Ora, Cristo não nos salvou apenas por meio da sua divindade, mas também por meio da sua humanidade. Nós temos paz por meio do sangue da cruz (Colossenses 1.20, Efésios 2.16) e não há nada mais humano que o sangue de uma pessoa.
Ainda que Barth diz que nem afirma e nem nega a teoria da salvação universal, sua idéia de “eleição universal em Cristo” parece uma espécie de neo-universalismo. Além disso, seu repúdio pelas descrições do céu e do inferno parecem um conceito de salvação bem diferente do que é apresentado nas Escrituras. O resultado dessa postura “neo-universalista” é a destruição da gravidade da incredulidade, e deste modo a neo-ortodoxia destrói as advertências bíblicas contra a apostasia, bem como o chamado ao arrependimento e à fé.
Por várias razões, muitos teólogos têm entendido mal a neo-ortodoxia. Essa corrente teológica pretende, entre outras coisas, ser um retorno ao ensino dos reformadores. A razão de ser da neo-ortodoxia é atacar o otimismo do liberalismo clássico e as corrupções da teologia católica romana. É sua intenção por em evidência a centralidade absoluta da pessoa de Cristo, a transcendência de Deus e a necessidade de revelação. Naturalmente, todos esses pontos básicos estão em harmonia com o conceito evangélico. Apesar disso, como se pode observar, a neo-ortodoxia se separa da fé cristã histórica não somente em algumas esferas pouco relevantes, mas também em seus conceitos básicos. Recomendamos as obras de Barth, Bultmann e Brunner – bem como de outros teólogos neo-ortodoxos – por sua influência e contribuição para o cenário teológico contemporâneo, mas a apreciação dessas obras deve ser feita com cautela e com espírito crítico.