Quebre o cântaro, derrame a vida
Simão, o fariseu, reuniu sua turma e armou, em sua casa, o circo para desmoralizar Jesus. Era um festão, no estilo oriental, a nata no mais interior da casa e o povão fora, ao redor.
No círculo mais íntimo, acesso mais restrito, Jesus, Simão e os dele. Repentinamente, lá adiante, pode-se imaginar o círculo, circuito da conversa e convívio entre eles, entrou a mulher.
Até ali, risco calculado, pois sabiam ser Jesus arguto e agudo em suas falas. Se o propósito da malta reunida era apanhá-lo em falta seria, ao mesmo tempo, fácil e difícil.
Fácil, porque Jesus nunca teve calo na língua e qualquer chance era oportunidade de exortação. Difícil para eles, porque sabiam, como ocorrera outras vezes, que Jesus expunha ao ridículo as ideias e intenções de grupos como aquele.
Frisson. Ela entrou, com seu porte milenar, característico das mulheres que vendem a si mesmas por preço porém, naquela tarde, um tanto despojada de si. Mas a sutileza desse olhar e dessa visão somente Jesus, por ter coração desarmado, enxergava.
Trazia uma cânfora de perfume à mão. Silêncio. Os olhos de todos acompanhando-lhe movimento e atrevimento. Sabia o que queria. Olhou no grupo e localizou Jesus.
Caminhou na direção dele, debruçou-se-lhe sobre os pés e, derramando neles o perfume que trazia, lavou-lhe os pés, e acariciou-lhe os pés, e secou-lhe os pés com os cabelos, beijando-os. Todos os olhos acompanhando a milímetros a cena. Olhos postos nas reações de Jesus. Olhos postos nos gestos da mulher.
Foi quando Jesus interveio. E quando Ele o faz, sempre que o faz, coloca homem/mulher no centro da questão. Ali, naquele dia e quanto àquele fato, propôs uma parábola. Isso mesmo: parábola de Jesus nos coloca no centro da história.
Entre sábios, naqueles tempos idos, costumava-se propor parábolas. Simão, Jesus chamou e, muito provavelmente, ele deve ter estremecido. E aí o Mestre estabeleceu a símile a respeito de dois homens devendo a um mesmo credor: um deles, devia 500; o outro 5000, assim, nessa proporção.
O credor mandou chamar os dois e, começando pelo primeiro, conferiu-lhe a dívida e, imediantamente depois, deu documento de quitação, surpreendendo o homem. Evidentemente que o outro atinou com o fato se ter sido também chamado: ele vai abater-me 500, muito provavelmente, e passarei a dever 4500.
Qual não terá sido a surpresa do segundo quando a ele se dirigiu o credor, conferiu dívida e deu o mesmo instrumento de quitação dela completa; quase um infarto, só de alegria. Jesus terminou, propondo aos ouvintes a moral da história.
Quem ficou mais feliz na entrevista, após a audiência dos endividados? O que mais devia, respondeu com certeza a acertadamente Simão. E assim, colocou-se por si mesmo como personagem no centro da parábola.
Certo, disseste-o bem: quem mais deve, mais alegre fica quando perdoado. Quem mais deve? Quem se reconhece, sensivelmente, culpado. Não era esse o caso do fariseu anfitrião.
Comparativamente falando, do ponto de vista dele, achava-se moralmente menos endividado do que a meretriz profissional. Erro de cálculo. Não há esse menos ou mais endividado, quando a questão é a culpa: todos estão no mesmo patamar endividados.
Erro de cálculo. O fariseu achava ser melhor do que a mulher. Também avaliava que Jesus havia dado à mulher muita cancha. Mas Jesus quis lhe ensinar que o que se destacava na mulher era um sentimento que passava distante ao fariseu: amor.
A cânfora tinha o bálsamo para pelo menos um ano. Era perfume usado para os banhos de aroma, na troca de parceiro para parceiro. Agora, a mulher trocara de vida. Por isso derramou o cântaro aos pés do Mestre, à vista dos convidados do fariseu.
Como se dissesse, a minha vida derramo a teus pés. Tocada por teu amor, reconheço que me aceitas. Os homens viram por outros olhos, escandalizaram-se naquele ato, muito provavelmente não enxergando o amor.
Com um gesto, apenas, aquela mulher dizia que recomeçava sua vida a partir dali. Jesus ainda avançou detalhando como, no gesto dela, a mulher cumprira o acolhimento com que o fariseu não brindou, nem formalmente, Jesus, quando o recebeu em casa.
Muito me ama, porque muito deve. Na proporção do tamanho da dívida, reconhecidamente, é a proporção do amor. A quem pouco se perdoa, é porque pouco deve, ironizou Jesus. A quem muito se perdoa, é porque muito deve, portanto, mais ainda e na proporção certa ama.
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