segunda-feira, 9 de maio de 2022

Caminhos pela vida

  

 Caminhos pela vida. A Bíblia chama peregrinação. Abraão peregrinou pela terra que acreditava ter recebido, por Deus, como promessa. A gente também se acha peregrino.

    Eu, que pratico nostalgia, às vezes me reporto ao mais atrás de que me recordo, com sentido e tino, quando me dei comigo como gente. Um desses corredores de memória diz respeito à escola.

    O Jardim de Infância, em Nilópolis, com Dorcas indo à direita, para o Nilopilitano, Curso Normal dela, iniciado em 1965, quando tinha 35 anos. E eu, para a esquerda, no Instituto Filgueiras, o velho, para aquela geração, porque o novo beirava o muro defronte da linha férrea.

    Não me perguntem o nome da professora. Esqueci-me. Mas a imagem de seu rosto eu a tenho. Mas em 1966, já no, naquele tempo, 1o ano primário, era d. Rita. Atarracada, gorduchinha, metro e meio de altura.

    Além do magistério, eu a via à porta de um Mercantil, no Acre, as quitandas da década de 60/70, no Rio de Janeiro, porque há o Rio Branco. Essa quitanda, já há muito desaparecidas da paisagem carioca, pelo Império dos supermercados, d. Rita a tinha ali na Mena Barreto, reta para a Congregacional de Nilópolis, então indo para a escola dominical nós a víamos à porta, para atender a freguesia.

     D. Rita mandava-me à Coordenação, com certa frequência. Eu era meio danado, entendam bem, levado, no vocabulário carioca. Cid Mauro, já para a Coordenação. E me traga aprendida a tabuada de 7, 8 e 9. Não quero as outras não. Dorcas vinha me buscar, encontrava-me na Coordenação.

    Lembro de d. Rita por detrás daquela mesa imensa, ainda sobre um tablado, eu numa curvatura máxima de pescoço à nuca, d. Rita me perguntando 8 X 5, 8 X 6, 8 X 7 e por aí ia, quer dizer, ainda vai: trago esse trauma, ainda psicanaliticamente não resolvido, de ter aprendido toda a tabuada ainda na 1a série.

    Mas de um polo a outro, vamos à 6a série, de um curso primário de 6 anos. Eu até tentaria da 5a série para o 1o ginasial. Podia, naqueles idos. Tratava-se de um salto por cima do Admissão ou 6a série, praticamente repetição da 5a, uma espécie de cursinho pré-ginasial.

     Mas o trauma do atropelamento, na metade do ano de 1967, em 27 de junho, empurrou-me para o 6o ano. Sem mais traumas, por favor, deixa o menino fazer o 6o. Fiz.

     Ainda me lembro, gesso até metade da perna esquerda, altura do joelho, saltinho na sola, eu me deslocando da Mendes de Aguiar, em Cascadura, ao longo da Av. Ernani Cardoso, na direção da Escola Paraná, situada nessa avenida, na esquina com Pe Manso, ironia, onde fui atropelado.

    Subi e desci a escada central dessa escola um pedaço de tempo, para terminar a 5a série. E esse ano coincide com a mudança de Cascadura para o Meier, onde d. Rute, esposa do pr Amaury Jardim, arranjou para o menino uma escola U.I., Unidade Integrada que, além de ser contígua ao Colégio Bento Ribeiro, muro com muro, permitia a conexão com vaga garantida.

     Foi nessa escola de Unidade Integrada que conheci d. Cleuma. O melhor adjetivo para ela é baixinha arretada. Elétrica, fala 78 rpm, velocidade máxima da vitrolas da época, como  aquela que havia lá em casa. Reinava na turma.

    Aluno com ela não cortava volta. Dela trago comigo outro trauma pedagógico: ter aprendido dízima periódica no Admissão. E foi em aulas que ela, a preço módico, como explicadora, nos assistia em sua casa bem ali, na Carolina Santos, coladinha na Aquidabã.

    As tardes que passávamos ali eram uma agradável extensão da sala, com d. Cleuma, de mesma eletricidade, puro dinamismo e competência, aparando arestas. Os caminhos da vida não nos permitiram desencontros.

    Ela mesma lembra eu ter compartilhado que seu aluno terminara o bacharelado em teologia. Lá está d. Cleuma Brasil em minha formatura, em 1981, na Igreja Fluminense. Pronto. Custou, mas casou. Lá está d. Cleuma no casamento de seu aluno, em 1993. Puxa, mal deu dois anos ele sai do Campinho, no Rio (de Janeiro), para o Rio (Branco), no Acre.

    Ruptura? Não, porque nas reuniões de família, na Magalhães Couto, lá está d. Cleuma, já reconhecida como membro da família. O casal comemorou 25 anos: lá está d. Cleuma.

    Cleuma de Lourdes de Jesus Brasil, uma legenda. Ainda caminhando juntos. Já numa idade, minha e dela, que somadas vão a mais de 150 anos. E sua vida forma um arco de serviço, que passa pela escola pública, pelo Ministério da Educação, pela educação especial e pelo serviço social, outra especialidade dela.

    Um arquivo vivo. Uma memória super ativa. Causos e causos do Rio, como o carnaval nos bondes, especificamente o que vinha de Cascadura e circulava por ali, pelas quebradas do Engo de Dentro, onde ela residia, e subia num caixotinho para, literalmente, ver passar o bonde da folia.

     Pai pianista, artista da noite, mãe rigorosa, matriarca da família. Cleuma filha única, valendo por 10, na dedicação, cuidado e amor com que se devotou aos dois. E a toda a família. O caos recente foi o celular bugar. Porque perdeu todos os contatos. Alarmou.

     Eu, pelo pouco que sabia, e pela experiência de perda do meu, adverti que estavam "na nuvem", bastando sincronizar com o novo aparelho. Buscou assessoria. Como andarilha que é, conhece meio mundo e tinha a pessoa certa para efetivar o resgate.

    Sentiu-se recompensada no lançamento do livro que dediquei a ela. Muito feliz, na véspera, ter comemorado comigo meus 65 anos e presentear-me com a caneta com que assinei os autógrafos. Ligou-me para agradecer, como rotina que praticamos, pelo menos 15/15 dias.

     Nossos caminhos estão cruzados. Darmos as mãos pode significar essa transição, do tempo que dependi dela para avançar nos estudos, para esse tempo em que nos tornamos tão mais próximos. Ora, ironia, virei um professor, igualzinho a ela. Parceiros. Darmos as mãos significa sermos parceiros.

     Em todos os sentidos. No magistério, na amizade, enfim, nos caminhos da vida. Grato, Cleuma de Lourdes de Jesus Brasil.

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