segunda-feira, 8 de abril de 2019

Avante um pouco aos 20 anos - 4

Descendente

    Olhando assim, surfando a narrativa, não fica muito fácil perceber o conflito interno intenso. Bom falar sobre isso, para marcar a superação. Fica agora mais fácil falar e mencionar, mas a experiência dentro é tenebrosa. 

    Mas que se registre também que é transitória. Meu pai saía para o seu trabalho, minha mãe para o dela e eu ficava. No período em que também saía para a universidade, ainda acreditando que tudo seguiria o mesmo rumo do primário, na época, ginásio e Escola Técnica, sem maiores sobressaltos, tudo bem.

     A nossa rotina, família de três, era a mesma. Mas quando emperrei na PUC, sentava em casa para discernir física dos eixos x, y, z tridimensionais, quando somente, na Celso Suckov da Fonseca só estudara o cartesiano x,y e ainda demonstrações de teoremas matemáticos em Cálculo 0, eu viajava.

      Nunca sabia se o que eu via ou fazia equivaleria ao que vinha nas provas. Sentava e olhava ao lado muitos deslanchando. Eu travando. Pode até ser que fosse simulação de uns tantos. Mas, para mim, eu era o único travado. E era isso mesmo: nos murais, ao conferir notas, a multidão de 2,5 / 3,5 / 4,5 este já era um notão, e outras até menores,  demonstrava que eu não era o único. 

      Mas parecia que a experiência era só minha. E fui me fechando. Não queria compartilhar com os pais. O que dizia era uma espécie de narrativa mais amena, que tinha, sim, o objetivo, para eles,  de definir o dilema. Mas não na intensidade em que, muito dentro, o próprio conflito já marcava. Estava estacionado lá e adquiria sua cara de monstro. Um monstro que passaria a viver dentro, até o dia em que esse dragão seria vencido.

     Os pais diziam, principalmente o Cid: Cid Mauro, você orou e se preparou. Nunca gastamos com você nenhum dinheiro em escola. A formação sempre foi nas públicas. Mas agora é engenharia, sua carreira, numa boa faculdade. Portanto,  vale a pena o esforço. Falavam e concordavam assim quando, já em 1978, antevendo a repetição do fracasso de 1977, em falava em trancar matrícula .

     E esse discurso compensava, cassava minha réplica, mas aprofundava o problema, porque eu dizia a mim mesmo,  caramba,  como eles me apoiam, como estruturam com facilidade o problema e como eu traio os dois com minha incapacidade. E prosseguiram os estudos em total aridez. Terra seca, rachada e estéril. O dragão, dentro, ensaiava o discurso dele, no qual eu me tornava cada vez mais o maior culpado. 

     A gente tem, nessas horas, sim as tais janelas. No meu caso, eu tinha essa tradição, a Bíblia fora refúgio. A fase da adolescência, que fosse dos 14 aos 19 além, é claro,  de toda a infância e pré-adolescência eu passei na igreja. Na adolescência, intensifiquei a leitura da Bíblia. Diante do susto que a vida desperta, por exemplo, na fase da puberdade, época do departamento da e para a sexualidade, por falta de uma orientação mais direta, eu mesmo achei livros que orientassem e saí atrás da própria Bíblia. 

     Chegara a hora do batismo. Refiro-me ao choque com a realidade. Não que fosse uma luta contra o mundanismo dos anos 70. Ora, que fosse light, comparado ao atual. Mas não, eu fora muito bem domesticado e meu contexto era a igreja. O principal pecado da segunda infância fora rir das piadas indecentes de meu colega de rua e de turma, em Cascadura, assim como divertir-me com a liberdade dele em dizer palavrões. 

      Meu conflito configurava-se interno. Eu via que tinha de discursar a mim mesmo. Comecei a entender em que sentido a Bíblia forja o caráter nessa luta. O que eu lia, ia de encontro ao que se me apresentava, assim como, de dentro para fora, tinha que me forjar o caráter. Era como dizer a mim mesmo que, mais do que vi conhecendo e repetindo as histórias bíblicas, agora eu tinha que vivenciar, de modo coerente, a fé que eu dizia ter.

      O pecado "inocente" da infância se mostrava agora, no delinear da personalidade, com sua verdadeira cara. Eu tinha de checar se era mesmo um crente. Claro que a vida na igreja,  aquele grupo ABU na PUC, quando eu repetia as leituras feitas, uma espécie de externar numa forma de consumo para outros ouvirem, davam-me suporte.  E essa minha ênfase, como se eu repetisse para o público e para mim mesmo, incomodava meu amigo Paulo Kurka, que insistia no método indutivo. Eu queria o diretivo.

       Os textos repetidos eram os trechos diretos das cartas paulinas, do Evangelho de João, incluídas as cartas deste e de Pedro,  enfim, palavras de Jesus, nos Evangelhos, contanto que diretas: morte e ressurreição de Cristo, nosso batismo nele, juntamente com Cristo, mais, juntamente em Cristo, esses trechos eu precisava ouvir, por isso repetia aos outros, houvesse chance. Lembro-me que por essa época, a qualquer pessoa que, nos ônibus, sentasse ao meu lado, eu provocava uma conversa sobre evangelho. 

      Você sabe o que significa "evangelho" ou já ouviu falar? É uma "boa notícia": Jesus  morreu. Você entende por que isso é uma boa notícia? Assim começavam as conversas. Sempre predispondo o diálogo e conduzindo-o para o específico e essencial da Bíblia e da existência: crer no evangelho. Já era parte da cura eu repetir para mim mesmo. E é assim. Há pessoas que necessitam desse grau de revolução interna, desse grau de conflito íntimo para definir, de uma vez por todas, a fé. No meu caso, não foi nenhum São Jorge, mas Jesus mesmo quem venceu meu dragão interior.

Nenhum comentário:

Postar um comentário