domingo, 3 de janeiro de 2016

Mal traçadas linhas 8


 
      Ano Novo

           “Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.”

           Lemos, no tradicional culto de vigília, que é aquele culto que os evangélicos estendem até 24h de 31 de dezembro para, como se costuma dizer, ‘romper o ano’, o texto de Romanos 12:1-2. Encontra-se bem ali, no coração da carta, quando Paulo faz, no texto, transição da parte doutrinária de seu argumento para a parte prática, usual procedimento dele.

          Tenham paciência, mas vamos, digamos assim, dissecar esse trecho aí da carta de Paulo Apóstolo aos Romanos. Isso porque a Bíblia carece de atualização. Sua confrontação atual deve ser exercício do tripé leitura-assimilação-prática. Por isso é necessário reconhecer até que ponto há gente ainda disposta a isso.

          Esse texto é um pedido, mais que simplesmente isto, é um rogo, ou seja, pedido de intensidade maior. E Paulo invoca às misericórdias de Deus que, ao mesmo tempo, são suprimento para quem ouvir atender ao pedido, assim como essas misericórdias visam sensibilizar quem ouve, a fim de que atenda a esse pedido.

         Trata-se de, pelo menos, duas coisas, em linhas gerais, para a economia deste texto: (1) autenticidade de culto; (2) um não conformismo. Por isso considero que o texto acima se constitui em regra geral e obrigatória a todos os crentes, quanto à definição de sua identidade no mundo de hoje. Autenticidade do culto prestado a Deus e presença não conformista constituem-se em elementos definidores da identidade do cristão.

        A palavra “pois”, no início da sentença, subscreve tudo o que vai em sequência ao que Paulo escreveu antes. Melhor dizendo, para que se entenda a base argumentativa do pedido, que não será, automática e somente pelas misericórdias de Deus, num ato mágico, atendido, é necessário ler os capítulos anteriores da Carta aos Romanos. Está aí um bom exercício e fica pendente a pergunta: há quanto tempo você não lê toda a Carta aos Romanos?

        Deus nos requer como culto. Somos sacrifício vivo, santo e agradável a Deus. Fomos santificados no sacrifício de Cristo. E, de modo consciente, em exercício de santidade, devemos nos oferecer a Deus. Como Abel, o segundo a oferecer a Deus sacrifício, foi aceito, porque Deus, dizem as Escrituras, "agradou-se o Senhor de Abel e de sua oferta", assim deve ser conosco.

         Culto não é, definitivamente, sequência litúrgica, lugar, duração e caraminguás culturais, firulas, discussão estéril se tais ou quais modelos são mais ou menos aceitáveis. O máximo que se pode avaliar, quanto a esses detalhes, é se são de bom ou mau gosto, se são inteligentes ou medíocres ou se são originais ou plágio da cultura rasteira vigente. Culto verdadeiro é oferta de si mesmo a Deus, que avalia ser santo e agradável. Veja bem: aqui, como na adoração, o controle de qualidade pertence a Deus.

       Segundo critério de identidade, Paulo relaciona, intrinsecamente ligado ao primeiro é o não conformismo. Não adianta: a Bíblia é o único Livro que denuncia e define o que é pecado. Ser cristão envolve profecia. E profecia é denúncia coerente e identificação do que é pecado em si, no outro e na sociedade. Impossível identidade cristã sem um critério de identificação, isolamento e tratamento do mal na pessoa, no próximo e na sociedade.

        Quando Amós, no Reino do Norte de Israel, assim como Isaías, no Reino do Sul de Judá, cerca de 700 a.C. denunciaram o culto praticado, ativeram-se ao fato de que era culto exterior e hipócrita e que, entre os que ofereciam, grassava o pecado, estabelecida, então, a incoerência que tornava nojenta, para Deus, toda aquela panaceia. Quando cumpriam sua agenda de culto, Deus mudava de canal, para não sentir náusea.

      Paulo sugere que nos permitamos transformar por uma renovação de mente que somente o Espírito Santo proporciona. Daí ser inteligente e original a postura evangélica. Pelo menos deveria ser. Evangélico autêntico, autêntico cristão sempre terá uma proposta nova e atual. Deve trazer consigo, permanente e espontaneamente, como um dia escreveu o pastor John Stott, uma contracultura cristã. Um dos graves problemas atuais da igreja é que perdeu a capacidade de apresentar-se ao mundo como contracultura a tudo isso que está aí.

        Mais uma vez Deus vai avaliar como bom, agradável e perfeito. Será que podemos considerar essa trinca de adjetivos um padrão de avaliação de Deus? Experimentar a vontade de Deus significaria, por exemplo, um padrão de conduta desejado por Ele, uma afirmação de identidade na sociedade, enfim, uma postura profética individual para cada cristão e, coletivamente, para a igreja? Bom, que esta reflexão se constitua num bom exercício de interpretação para este trecho em questão.