domingo, 28 de março de 2021

Carta aos primos e primas.

 

     Virou mania eu escrever textos que refletem a experiência pessoal minha com fatos alegres ou tristes entre pessoas de nossa família.

    E que família. "Familhão", poderemos dizer, quando a língua pede dizer Familiona, sim, por parte de pai, o Cid, e por parte de mãe, Dorcas, mas conhecida como a tia Maninha.

        Já disse, do alto dos meus quase 64 anos, um dos filhos, neto e primo mais velho que, talvez, tenha ouvido mais histórias do que os outros mais novos, mas nem tantas ainda mais conhecidas pelos mais velhos.

     Este "texto do alvorecer", no Rio, ou da madrugada, aqui no Acre, é o segundo, por conta da triste partida de nossa prima mais velha, Dercília, quase 20 anos mais velha do que eu.

     Sou talvez um pouco mais novo, pouco mais velho do que meu primo Cláudio, filho mais velho dela. Filha de José, o primogênito de Adalgiza Barcellos de Jesus e Antônio Gonçalves de Oliveira.

    Nossos avós, caros primos e primas, bisavós para os filhos dos primos e primas e, quiçá, trisavós de tantos outros porque, por exemplo, Dercília já era bisavó, e não é a única.

     Para se ter ideia da ligação entre as famílias Araujo e Gonçalves, o meu avô paterno, esse que mencionei acima, de apelido Antunico ou Tunico, foi acolhido em Nilópolis, na casa de minha avó materna Eunice, falecido no ano de meu nascimento, em 1957.

    Não são somente esses laços que nos unem. Outros mais, que talvez a gente nem perceba, mas carrega com a gente. Para este texto não ficar enorme e menos motivado a ser lido, vou encurtar.

    Dizendo que no texto anterior escrevi sobre algo do que a vida da minha (linda) prima, melhor dizendo, nossa prima mais velha nos ensinou, em vida, para neste tentar escrever o que a morte dela nos ensina.

     O primeiro destaque é que, de Dercília, fica uma espécie de diálogo com o seu estilo de vida. As lembranças não são somente caprichos de memória. Ficam modos, jeitos e hábitos.

    Todos sabem minha religião, ou melhor, a nossa, espalhada entre tantos nas duas familionas, que acabam sendo uma só, que a nossa religião não é a que diz "falar com os mortos". Não é essa a nossa crença. Mas diálogo com o estilo de vida de nossos antepassados nós temos.

     Olhamos para nós e vemos na saudade e no nosso estilo, fenótipo, que é semelhança física, e genótipo, traços mais profundos de personalidade, enxergamos em nós esse diálogo com eles.

     E a gente se vendo neles, a gente percebe o legado que nos deixaram. Porque seu estilo de vida foi marcante. Tão marcante, que vivemos por meio dele, pois nos criaram, educaram, enfim, plasmaram, modelaram a gente nesse estilo.

     Vamos lá! Vamos ativar a memória. Até onde ela e, para não dizer, os olhos da memória nos levam? Ora, da parte de meu pai, levam à roça, como ele dizia, "sou do interior", município de Itaocara, do Valão do Barro. Da parte de minha mãe, à periferia do Rio de Janeiro, baixada fluminense da década de 1930, a Nilópolis.

     Em ambos os casos, pobreza, de vez em quando, falta, pouco para muitos filhos. Mas nunca desonestidade. Nunca covardia com a vida. E um tempero, que a própria Bíblia chama sal.

      Essa gente de onde eu vim, de onde viemos, temperava com esse sal a vida deles. Meu pai contava que na cozinha da tapera lá na roça, no Farope, havia uma Bíblia numa prateleira. Antunico chegava "bala" em casa com o menino Cid, meu pai, distraído demais no roçado.

      Adalgiza, então, dizia não adianta, Tunico, esse menino não vai ser roceiro: vai ser pastor. E foi. Gente pobre, que empurrou para frente os filhos. Como é bonita a minha família! Seja por parte de pai, quanto por parte de mãe.

    E os agregados? Chamo assim os que vieram casar por essas bandas. Que conheceram os primos e as primas e resolveram arriscar. Não digo que encontraram perfeição. Mas muita beleza acharam. E viram o mesmo filme.

    E o que mais acharam foi essa história das origens. A história da semente plantada pelos nossos antepassados. A marca plasmada em nossa vida. Esse diálogo que ainda temos com eles. Isso que trazemos, carregamos e reproduzimos.

     A morte de minha linda prima Dercília está me ensinando que não, ela não traiu sua herança. Guardou com ela, transmitiu e está aí, melhor, está aqui dentro. Dialogando conosco. Nesse sentido, dialogamos com eles.

     Não sou da religião que conversa com mortos. Mas sou daquela que reconhece que vivem. E estão junto daquele em quem esses nossos antepassados acreditaram e nos ensinaram a acreditar, Jesus, que ensinava a temperar com sal a vida.

     Melhor, ensinava a ser sal. Tunico e Adalgisa, no Farope, foram sal nessa vida. Tula e Eunice, de Nilópolis, foram sal nessa vida. Tantos outros que conhecemos foram sal nessa vida.

     Até já, prima. Fica a sua marca. Você temperou nossas vidas como tantos outros já fizeram. Resta a nós, enquanto aqui estamos, proceder assim. Sejamos sal, sejam sal nossos filhos, netos, bisnetos. 

      Ora, tenho certeza: os avôs e avós, da roça e da periferia, também fizeram essa oração. 

quinta-feira, 25 de março de 2021

Três aspetos da diversidade

 PROBLEMATIZAÇÃO


    A diversidade religiosa, em si, apresenta características que lhe são marcantes. A primeira delas é a necessidade permanente de se reinventar. Isso porque sua proposta, de aproximação e convivência respeitosa entre religiões, constantemente é questionada pelo risco e medo representados por uma equivocada compreensão de seus postulados.

     Portanto, a todo momento seus parâmetros precisam ser lembrados e a prática deles acompanhada de perto, de modo crítico e avaliativo, para que, no contexto de sua abrangência, perdas e erros sejam verificados, o que, certamente, promove afastamento e de novo o recomeço dos medos e das estranhezas.

      A segunda característica é a necessidade de que a concepção e prática dessa diversidade seja conjunta. De nada adiantará um "cânone" ou uma "dogmática" da diversidade religiosa, muitas vezes imposta por teóricos, sem o cuidado de que se reconheça plural em sua concepção e aplicação.

     O perigo de grandes religiões que, por sua antiguidade e quantidade de adeptos reúnem, unilateralmente, iniciativas e discursos de convívio plural reside na tentativa inconsciente ou, até mesmo, deliberada de definir diversidade a partir de sua visão supostamente abrangente.

    Essa prática assemelha-se a proselitismo doutrinal, quando ocorre, inclusive, a tentativa de enxergar a diversidade religiosa a partir dos valores de uma só religião. Por exemplo, o modelo de diversidade que Jesus respresenta para um cristão, ou o modo como é definido diverso e plural, não terá o mesmo efeito para um muçulmano, a não ser que ela procure em Maomé esses mesmos valores.

      O conceito do esvaziamento de Deus para assumir, no Filho, sua condição plenamente humana, para quem é cristão, ajuda na compreensão da necessidade do mesmo esvaziamento, de religião para religião, sem que esses dados de supremacia, sejam por que razões forem, postos em evidência, tornando o suposto diálogo uma imposição de pontos de vista, do "maior" para o "menor".

      Um terceiro aspecto associado à prática da diversidade religiosa é que ela, uma vez bem equacionada e vivenciada, contribuiu como modelo de prática social aplicada a outros segmentos da sociedade. O Brasil é um país classista. Há profundos veios abertos de preconceito e discriminação em meio à sociedade. O classismo religioso é apenas um deles.

     Num Estado que, nominal, jurídica e teoricamente se propaga laico, despudorada e cinicamente religiões de massa procuram espaço político, numa relação promíscua com o Estado, e ocorre mesmo disputa entre grupos religiosos por esse espaço conquistado ou a conquistar.

    O exercício franco, aberto e verdadeiro da diversidade religiosa jamais poderá prescindir da rejeição ao classismo religioso. Não pode haver "religião de elite" ou uma profunda brecha que separe liderança religiosa dos segmentos mais carentes da sociedade. Já a teologia da libertação contribuiu para que a ênfase ao pobre, em todos os sentidos, fosse priorizada.

     O exercício da diversidade religiosa, em seu modelo isento de distorções, contribui para que, primeiro no contexto das religiões, não haja o abismo que o próprio Jesus, em seus dias, denunciou entre os "religiosos" fariseus, em vício constante de proximidade com o poder político da época, colocados num abismo e numa posição de superioridade em relação à classe a que eles mesmo, pejorativamente, declaravam "pecadores".

     A eliminação desse abismo deverá ocorrer no contexto dos esforços das religiões, para que haja eco e modelo para fora do contexto religioso, de modo a positivamente contagiar os demais segmentos da sociedade. Sem esquecer que, nesses segmentos e nesses outros contextos estão o público-alvo da diversidade religiosa.