quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Ora, as mulheres 2 - Minha filha Ana Luísa

  
    Mulheres de minha vida, chegou a vez de minha filha. Como é prazeroso falar de você.

    O seu sorriso meigo é de Ana Luísa mesmo. Mas me orgulho em dizer que há gene de Dorcas e meu mesmo.

    Claro, da outra mulher de nossa vida também, a querida mamãe sua. Mas o pessoal costuma comparar você à primeira mulher do pai, que foi sua avó paterna.

     Sim, ela nos legou a fé, assim como a outra avó legou a sua mãe. Outro segredo do seu sorriso, tão característico, é a fé, que vence o mundo.

      O nosso maior legado. A nossa maior herança. Em nosso meio, no seio de nossa família, o chão e a semente de fé plantada.

     Que bom que cedo, você acolheu Jesus. E vive de transmitir a outros. Como você, ainda tão tenra, já me ensina, filha querida.

     Deleite do fruto do Espírito no seu viver, quando assim percebemos. Desde muito cedo a gente aprende com vocês, os filhos.

      Jesus mesmo recomenda, que temos de nos tornar como crianças. Acho até que deveríamos ter aprendido mais. Mansidão.

     Talvez seja sua principal lição, minha filha, a nós. Nunca é fraqueza. Ao contrário, é sua maior força. Olhando o mundo à volta, pensamos ser  desvantagem.

       Mas Jesus foi manso. Não foi covarde ou medroso. Venceu o mundo e não teve medo. E ensina que quem é aperfeiçoado no amor, não sente medo.

      Minha linda. Mansa filha. Forte filha. Amorosa filha. Meu lindo sorriso. Seja mansa, seja forte e nunca tenha medo.

      Seja sempre plena no fruto do Espírito, que é amor.

Ora, as mulheres 3 - Salmo de Sandra

  
     Louvai ao SENHOR, porque ele é bom; porque a sua benignidade dura para sempre.
Louvai ao Deus dos deuses; porque a sua benignidade dura para sempre.
Louvai ao Senhor dos senhores; porque a sua benignidade dura para sempre.
Aquele que só faz maravilhas; porque a sua benignidade dura para sempre.
Aquele que por entendimento fez os céus; porque a sua benignidade dura para sempre.
Aquele que estendeu a terra sobre as águas; porque a sua benignidade dura para sempre.
Aquele que fez os grandes luminares; porque a sua benignidade dura para sempre;
O sol para governar de dia; porque a sua benignidade dura para sempre;
A lua e as estrelas para presidirem à noite; porque a sua benignidade dura para sempre;
                          Salmos 136:1-9
      Aquele que uniu Nelson Roger e esposa, porque a sua benignidade dura para sempre.

      Que os fez conhecer Jesus, seu Filho, porque a sua benignidade dura para sempre.

      Deu-lhes como filhos e filhas servos dEle, pelo testemunho do casal, porque a sua benignidade dura para sempre.

       Distribuiu-lhes dons do Espírito, palavra de poder, música, profecia e dons de serviço, fé, misericórdia porque a sua benignidade dura para sempre.

      Abençoou com netos e netas, terceira geração na mesma fé, porque a sua benignidade dura para sempre.

      Aquele que tornou Sandra Roger relações públicas da família, porque a sua benignidade dura para sempre.

     Que lhe plantou na face o sorriso Roger, que lembra a doce gargalhada de Jesus, porque a sua benignidade dura para sempre.

      Aquele que deu a ela dons missionários, de exortação e profecia, pregação, implantação de igrejas, enviando-a por todo o país e pelo mundo, porque a sua benignidade dura para sempre.

      Que, enfim, lhe deu dons do amor, porque o Senhor é bom, e sua benignidade e misericórdias duram para sempre.

     Que lhe fez mulher de oração, de pregação, de leitura da Bíblia, exemplo vivo a tantos e tantos, porque a sua benignidade dura para sempre.

      Aquele que a tornou amiga de quem a encontra, de perder a conta de tanta amizade que granjeou, porque a sua misericórdia dura para sempre.

       Entre tantos e tantas, igrejas e igrejas onde os Roger são bênção, deparou Odinal e Cordovil, porque a sua misericórdia dura para sempre.

      Paulo Leite, Marco Antônio e Cid Mauro, Vicente de Carvalho, Piedade e Cascadura, porque a sua misericórdia dura para sempre.

       Pelo desafio e missões em Campo Grande, cada detalhe, cada luta, toda a vitória, porque a sua misericórdia dura para sempre.

     Pelos frutos permanentes deste e de outros trabalhos, que ainda brotam e brotam como o Caiobá, porque a sua misericórdia dura para sempre.

     Que a fez consolo de muitos e para muitos e muitas, de perder de novo as contas, porque a sua misericórdia dura para sempre.

     Entre as quais consolo e assistência no leito de Dorcas, porque a sua misericórdia dura para sempre.

       Louvai ao Senhor, por tanto e tanto que não vai aqui escrito, mas é fruto do Espírito em sua vida, Sandra, porque a sua benignidade dura para sempre.

     Louvai ao Senhor, enfim, por sua história de vida e marcas atrás e adiante de você, porque a sua benignidade dura para sempre.

     Louvai ao Senhor, por gente como os Roger, primeira, segunda e terceira geração, porque a sua misericórdia dura para sempre.

       Todos que a conhecem, que privam da bênção que é dádiva de Deus, louvai ao Senhor por essa vida, seguindo as pegadas de Jesus, porque a misericórdia do Senhor dura para sempre.

     Louvai ao Senhor por Sandra Roger, bênção e modelo a tantos e tantas, por esse Brasil afora, porque a sua misericórdia dura para sempre.

       Sim, louvai ao Senhor porque ele é bom, porque a sua benignidade e misericórdia duram para sempre.

terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Ora, mulheres - A número 1


   Natal 2018

   Aí, eu acordei. Pensando. Um cara de mais de 60, às vezes, fica pensando.

   No quê? Bem, às vezes olha para trás. E pensa nos erros/acertos da vida. Há acertos e erros.

    Sempre pensa, como ensina Jesus, ao invés de se gabar, pensar: puxa, isso e aquilo eu poderia ter feito bem melhor.

    É. Mas não dá para voltar no tempo. Então, a gente procura enxergar de outro modo. Que é ver marcas positivas.

    Naquela circunstância e contexto Deus esteve conosco. E deixou as marcas dEle nas nossas. Não se envergonhou de seguir conosco e nos dar Seu nome.

     Resgatou nossa vida por preço de sangue e disse que agíamos e falávamos em Seu nome. Sim, serve de consolo.

     Então vamos focar em algumas coisas essenciais que Deus fez. Em meio a essas idas e vindas, olhar no passado, a gente avalia.

      Decisões fundamentais: com quem casar, que profissão ter e onde viver. Aí entra você, Regina. Regina, a louca.

    Caladona que é, por pura estratégia, deve ter fantasiado me namorar. Aí, namorou. Depois, desmanchou. 

    Doida. Entrou naquele GP da igrejinha antiga, num domingo sei lá, de 1991, eu acho, para dizer que queria casar comigo.

      Daí o casamento. Fundamental. Sustento. Onde morar. Tudo ajustado. Aí, veio a guinada dos 4.100 km, ainda em 1995, dois anos após casar.

     Até hoje não sei direito o que lhe passou pela cabeça. Mas topou. Pouquíssimas vezes repartiu medos seus comigo. Seguiu adiante.

     Pulei um estágio. Nesse meio tempo, veio o filho. Mas, caramba, antes dele nascer, até mesmo antes de saber que ele ia nascer, o marido já estava assaltado pela ideia de se mudar.

      Caramba! O que passou na cabeça dessa linda mulher? Casou com um doido. Sem esquecer que, acima de tudo, nessa mulher, no fundo bem fundo nela estava a fé.

     Está a fé. Não nos planos do marido. Mas em Deus. Ele a guiou todo o momento. Regina, Deus nos guiou a todo o momento.

     Conversa decisiva no GP: "Quero casar contigo". Louca, estou namorando. "Ora, desmancha". Desmanchei. Você é meu maior acerto.

      A vida com você se renova todo dia. Sempre novo e diferente. Você é o meu maior acerto. Minha vida é muito abençoada com você e por você.

      Deus me deu auxiliadora idônea. Eu entendo e vivencio esse texto da Bíblia. Sua louca. Eu te amo.

       Me desculpe te chamar louca. Você é sábia. Que arquiteta e constrói sua casa. Que vigia e detalha todos os cuidados com nós três.

      Minha cúmplice. Nos acertos. Deixa os erros, por minha conta. Mas mesmo nesses foi cúmplice e consoladora. Amamos você.

      Dádiva de Deus. Regina, nossa Rainha.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

    Natal

    Tenho que escrever. Vou tentar fugir do comum, do tipo "são tantas emoções, bicho". Todo mundo tem coisas a lembrar sobre o Natal, de um jeito ou de outro.

    São muitos e são um. Bem, nos últimos 23 deles estabelecemos uma tensão entre Natal/Ano Bom, quer dizer, Ano Novo, por causa dos 4.100 km entre Rio, onde está toda a família, e Rio Branco, terra por adoção.

      Natal comércio, festa e fonte bíblica costumam se misturar. Claro que a fonte de tudo é o presépio que Lucas descreve na Bíblia. Mas espraiado o significado, virou troca de presentes, euforia e cheiro de feriado e reveillon.

       Lá se vão meus Natais da infância, sempre associados à igreja, ensaios de cânticos de época e das pecinhas teatrais sobre pastores, reis magos, José, Maria e o menino.

      Veio à memória um micão, bem assinalado o ano, 1980, conta redonda, Natal meu como estagiário no Largo do Barradas, Niterói, RJ. Uma tal peça de um tal sapateiro, nunca vi antes, sem fala, mimética, eu como protagonista.

     Não deu certo. Houve uma entrada extra de um "salvador da pátria", nada a ver com Jesus, para transformar o enredo, criando ação, mudando o foco para a comédia.

     Fora esse Natal, se voltamos o foco para as reuniões de família, duas citadas como simbólicas, no Meier, as do Ap de Dorcas, mesa lauda, decoradíssima, sortida, cheia de capricho.

      Na casa de Lourdes, desde o Ap do Cachambi, a mesma mesa, quanta saudade, pasando pelo Ap da Venceslau e esticando até Teresópolis. Em certo Natal, fizemos Rio Branco-4 dias de estrada-Méier-Teresópolis, para comemorar o Natal todos juntos.

     Natais recentes em Rio Branco, nos anos iniciais. Sendo de igreja, Natal e Culto de Vigília são extensão um do outro: sempre estamos pela igreja. Aqui no Acre, já dissemos, mais de 20 anos, mas destacamos um dos primeiros, pela perda coletiva do salpicão, azedado por causa do calor típico de época.

     Natais. Natal. Espírito de época. Desde crianças, quando nossa expectativa era o presente. Há uma certa nota muito particular e individual nessas memórias, porque há quem para quem nunca foi Natal.

     Ou o que viu de Natal, nos outros, reprimiu o que nele nunca foi sinal de alegria. Pobreza, por exemplo. Meu pai, 1949, em Nilópolis, viu mesa farta na casa de Eunice, minha avó. Dorcas esclareceu que, com emprego de Merinho, Ebinho e Maninha, deu para remediar.

      E Tula pôde fritar umas rabanadas (paridas, aqui no Acre) a mais. Mesmo sendo filho de casal de poucas posses financeiras, ainda assim vi primos, ora, parentes próximos, com menos posses ainda na comemoração do Natal.

     Portanto, que Natal? O do presépio de Lucas? Não tem nada a ver com dinheiro o dar presentes. A não ser para dizer que Jesus é o maior presente. Mas nasceu entre pobres e ainda rejeitado, duplamente: não havia dinheiro com José e Maria para bancar una estalagem e não havia lugar específico e preparado nem para o parto espontâneo.

       Maior dádiva versus maior rejeição. No lugar onde Jesus nasceu, fedia a cheiro de bicho: por isso, puseram nuna manjedoura, envolta em panos. Radical o sentido do Natal.

      Riqueza, para Deus, definitivamente não tem o mesmo sentido de riqueza para os homens. Maior presente, Jesus, ou é aceito de uma vez, identidade completa, ou é rejeitado de uma vez, sem meios termos.

      Feliz Natal.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

     A verdade sambou

     Deve-se esperar dela postura. Mas é inegável sua capacidade para se dizer, sua clássica função, do modo mais simples e acessível possível.

     Daí dizer:  "Clareô...ôô...ôôô..ôô..ôôô..". E dessa forma combina com outra tradição milenar, que é a do Livro. Samba, no dizer banal, e Livro, no requinte de sofisticação acadêmica, então se encontram.

      O Livro diz que Deus disse "haja luz" e o samba manda clarear. Ora, no barato, que barato, dizem igual. Se Deus do caos disse haja luz, o samba dizer que Clareô..ôôôô está inteiramente certo.

       No banal e no barato, se do caos, que deve ser escuro, o Altíssimo fez brilhar, que dirá o foco de luz que vai clarear dentro do coração.

      Precisa o sambista advertir. Numa linguagem próxima daquela de Jesus. Muito popular esse Mestre. Afinal, sua linguagem é próxima de uns ou de outros?

      É melhor dizer de uns e de outros, para ficar no equilibrista, dizer que Jesus fala simples, como sambistas, assim como fala com e como doutor.

      Assim agradamos uns e outros. Mas advirto que, por singeleza e proximidade com menores, natural (e incomodativa para alguns, admite-se), a preferência de Jesus era mesmo a marginália.

      Quem não se considera menor, vai ter dificuldade de entender Jesus. Aliás, para compreender o Mestre, vai ter de clarear. Clareô..ôôôô..ôô.

      Desculpe aí. Jesus joga luz no teu caos. Jesus reorganiza teu mundo. Põe luz na tua existência. Então, clareou. Haja luz, e houve luz, diz o Livro.

      Clareou, diz o sambista.

Pastoral

        Fora do Jardim

        A terra era(é) um jardim. Onde podemos encontrar sinais disso? Deu erva daninha. Aliás, danou-se o dono. Danaram-se, melhor, o casal que era dono.

      Assim a Bíblia explica a entropia reinante. Desvanece toda a beleza. Nasce, cresce, viceja, floresce, murcha e morre. Beleza, sim, com prazo de validade.

      Natureza pródiga. E prodigiosa. Dela fazemos parte. Mas vivemos em rebelião contra ela. Os únicos a não se sentir nela integrados. Rege-nos uma loucura.

      Como explicar que o único ser que se autointitula racional, trabalhe contra si próprio? Destruidor. Mais uma vez lembramos a primeira advertência após a saída do Jardim.

     Conhecemos que o nosso desejo é contra nós, porém a nós mesmos cabe dominá-lo. Daí, divide-se o mundo entre os que não o dominam e quem o domina. Com larga vantagem para os primeiros.

      Quem domina seu instinto assassino, torna-se vítima dos que não o dominam. Abel dominou, tornou-se vítima do irmão que não dominou esse instinto.

       Ponha seus olhos na criação, para ver nelas as marcas do Jardim nela presentes. Ponha seus olhos em você, para ver as marcas do Autor presentes. Para só então, uma vez confrontado, vencer o instinto assassino presente em você.

     Há nostalgia. Memórias de um tempo em que tudo era beleza, a natureza se autosustentava, preservadas as marcas do Criador. Agora, que tudo lentamente definha, loucura não admitir. Mas bênção é aguardar, em Cristo, a restauração.

      Há quem dê preferência à dupla ilusão: a primeira, de que o esvanecer-se confirma mesmo que nosso fim é o pó; a segunda, de que a beleza estampada na criação é pura ilusão. Desprovido da certeza de um Autor que cria, sustenta e preserva a vida.

     Não há. Nunca houve jardim. Tudo se reduz a uma fórmula química magnífica em si mesma, exatamente por ser fruto do acaso. Será a primeira e única fórmula que, sendo perfeita, com resultado tão retumbante, seja fruto do nada.

       A única criação sem Autor. Esse o absurdo. Traços do Autor na criação. Profecia permanente. Tenha olhos de ver e ouvidos de ouvir. O mesmo Jesus, presente na criação, redime-a, assim como nos restaura, como expectativa.

       A ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus. Aleluia! Veja as marcas.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Crônicas de uma vida XIX - Peraltices II

        Escoriações generalizadas. Gozado essa coisa de infância. De quando em vez, a gente se quebra. Mas graças a Deus, não foi desta vez.

        Boçal. Resolvi me dependurar nessas casinholas típicas das eras iniciais da eletricidade, em casas de alvenaria, que consistiam numa armação de concreto, chumbada na própria parede da casa, com acabamento de uma armação e portinhola de madeira embutidas.

       Dentro ficava o relógio de luz, aqueles modelos antigos enormes, como a também antiga chave de faca de contato para fechamento de corrente elétrica através dos fuzíveis de porcelana, aqueles mesmos, de rosca, a mesma das lâmpadas incandescentes. Sua alma era um pinguinho prateado de solda dentro o qual, ao romper, desarmava o circuito, deixando todo mundo no breu, mas salvando a situação, cumprindo o seu papel.

      Meu avô que, às vezes, costumava demorar nos reparos menos urgentes, demorou a colocar o vidro na portinhola com trinquinho de correr. Provavelmente pelo preço do vidro. Por isso havia quem improvisava, colocando um pedaço de compensado, imitação da lâmina de vidro.

    Pela abertura sem vidro da portinhola, coisa de criança sem senso, eu enchi de frutinhas de café, isso mesmo, loucura da hora, arrancadas dali mesmo, do pezinho bem à beira do jardim da frente, que ainda tinha uma ameixeira na qual subi algumas vezes a colher essa outra frutinha amarelinha. Lá em cima mesmo degustava seu gosto meio azedinho, sua consistência meio durinha, para deitar fora o caroço amarronzado e liso.

          Para que encher de café o bendito espaço de dentro da caixa de concreto do padrão, como chamam aqui o medidor de luz? Não me perguntem. Nem sei se estava escolhendo as já vermelhinhas para, depois, reaproveitá-las. Nem sei. Dependurei-me, apoiando-me na moldura de madeira e portinhola nela ajustada pelo trinco, mas sem o vidro, exatamente deixando espaço e sobra de rebordo onde me apoiei.

 De onde me esborrachei. Evidentemente, Cid Mauro, mesmo com seus, vá lá, 5/6 anos, não havia como a moldura, apenas aparentemente encaixada, sustentar seu peso. Decobri após arrebentar-me no chão. Tenho claros, na memória, todos os movimentos.

       Qual juvenil-aranha forçava, para trás, o corpo, enquanto me aferrava com as duas mãos na moldura. Minha ideia (de gerico, como se dizia na época) era ver com estes olhos a ruma de frutinhas de café justo dentro da caixa do relógio. Para debruçar-me por cima e pôr dentro a carranca, tinha que, praticamente, num rapel ao inverso, forçar-me para trás, na parede, com os pés, fazendo gancho de apoio com os dedos das mãos justo na moldura.

      Essa pressão toda me arremessou com força ao chão, atuavam vários vetores, entre eles, meu próprio peso, com mais a força que fazia para subir, empreender uma curva de apoio sobre mim mesmo, como se fosse me sentar no ar, tendo pés na parede e mãos na moldura como único apoio. Estatelei-me.

       E, como já disse, avós, tias e mães têm 6o sentido ou, sei lá, a terceira visão, como naqueles livros do tio Nelson. No exato momento em que arremessei-me ao chão, milagrosamente, em mais esta vez, sem fraturar coluna, crânio ou qualquer outro osso, apenas mordendo a língua, de puro susto, gosto de sangue na boca, nesse exato momento, dava-me conta do trauma e avistava minha avó na porta da casa. Logo deduziu, pelo impacto e trajetória da queda, o que eu tentara fazer.

       Também a moldura, como prova do delito, estava ainda em minhas mãos. Só faltava à vó descobrir o agravante do crime ecológico, sem nenhuma culpa teriam as frutinhas de café. Dor por todo o corpo. Água com açúcar para o menino. Gargarejo para cicatrizar as marcas das mordidas. Marisa França Costa fazendo gozações, de modo a despertar o menino de sua modorra e desânimo.

       A prima Eliana, com a mesma cara debochada de sempre, também veio ajudar, quer dizer, ver se eu me animava, saindo daquele torpor pós-traumático. Não sei se tirei um sono, ali mesmo, na cama e quarto do Labrego, o último à esquerda, colado à cozinha, próximo ao velho filtro na junção das paredes. Acho que houve orações, por causa de uma suposta reunião de senhoras por lá. Houve igreja à noite. Pedido de colo, ora, como explorei esse recurso, descendo-subindo-descendo a Mena Barreto em suas ondulações.

       Chegamos ao ponto do Cascadura-Nilópolis, do outro lado da linha, na época, defronte ao Colégio Filgueiras, modelos ainda no tempo de seu colorido prata e azul claro, a viação com nome de Santa, N. Sra. da Penha. Cócegas de Marisa, cutucadas, gemidos, risos e choro simulados. Ela era incansável em suas gozações. Divertidíssima, no vocabulário de meu pai. E dava a sua risada sacudida, fazendo todos à volta escangalharem-se de rir e ela, cínica que só, soltava uma lufada de ar, como a se fazer de desprezível, mediante suposto qualquer argumento contrário. Muito divertidissimamente cínica essa Marisa. 

       No meu caso, as cutucadas, no colo das duas, ela e Dorcas, no interior do ônibus, também serviu de fisioterapia. Num retorno à casa da avó, posteriormente, comentários sobre o desatino, remediado está o conserto da casinha do relógio, dura reprimenda se eram verdes as frutinhas.  Bem dizia Adolpho Bloch: criança diz, no meu caso, apronta cada uma!

       Marisa preencheu nossas vidas. Tinha sua maneira especial de viver. Alegrando todos a sua volta. Jaíra, ela e quatro irmãs, filhas de Adelaide, apelido Bili, ela e sua irmã Neusa faziam lindíssimos duetos em Nilópolis nos anos idos de 1960, pois Jaíra lembra, em nossos encontros atuais no Rio, que não podiam cantar olhando para Marisa: era certeza e garantia de desconcentração. E riso seguro. Toda reverência do culto ia por terra (ou riso).

       Imitava muitos e qualquer um. Ainda na área da música, fazia deboche do estilo de outras das cantoras líricas da igreja, que não minha mãe, que aprendia canto com Terezinha, uma professora com casa bem ali, grudadinha no túnel por debaixo da linha do trem, no Encantado. Certa vez, enquanto minha mãe ali treinava, não resisti a um desses chocolates recheados da antiga Kibon: repousado nas teclas do piano, insistentemente olhava para mim, pedindo socorro. Não pude, para vergonha de minha mãe, deixar de comê-lo. Mais uma "coisa de criança", segundo análise da professora de canto que, aliás, também ensinava canto lírico a Marisa.

       Marisa, quando andava com Dorcas e Cid, nos fuscas que teve, o que dá toda uma história à parte, divertia muito o casal. Que os ativistas não saibam porque, sendo mulata, filha de pai nigérrimo e mãe alvíssima, imitava também racistas achincalhando, indiscriminadamente, quaisquer negros ou brancos barbeiros ao volante que ameaçassem meu pai. Ora, para Cid dirigindo, todos representavam ameaça.

       Deixou-nos de súbito. Ela e seu irmão Mario, este pai do menino que, em Cascadura, Dorcas amparou ao nascer, foram-se do mesmo jeito: infarto repentino. Eram gente muito boa. Mario mais na dele, caladão, sujeito tranquilo, gênio parecido com de sua mãe, Marisa mais expansiva, termo este que Cid usava com frequência.

        A chamada de Deus foi mais urgente para os dois. Tranquilidade e paz definitiva ao Mario e, com relação a sua irmã Marisa, tornar o céu (muito) mais divertido. De súbito e com urgência, assim quis o Altíssimo. E vai Marisa divertir a congregação celestial, com mais o riso contido de Mário, abanando a cabeça de leve, como a reprovar, em secreto, as irreverências da irmã.

Coleção típica do tio Nelson:
avós, tias e mães têm essa visão

Subia no pé e colhia essas ameixas
 no jardim cuidado por Tula e Eunice

Era mais ou menos essa a carroceria
dos ônibus da N. Sra. da Penha

Antigo fusível e chave
tipo faca

Antigo relógio de luz

Pé de café, segundo meus primos,
ainda até hoje preservado 
pelo novo dono

Barraquinha Kibon
modernizada

Barraquinha de sorvetes
anos 60 

Um desses chocolates
me seduziu

Casa atual onde, nos anos 60,
residia a professora de canto

Novo templo da Congregacional
de Nilópolis, pertinho do antigo

Antigo templo da
Congregacional de Nilópolis

Bem próximo a essa esquina
moravam Bili, José e suas
cinco meninas

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Crônicas de uma vida XVIII - Peraltices I

        A casa da avó ficava na esquina de Dr. Rufino com Osvaldo Cruz. Aos poucos o vô Tula, nickname do Baldomero Leal de Araujo, foi construindo. Dorcas, segunda dos 8 filhos que se criaram, acompanhou passo a passo essas etapas.

      Conta que no nascimento da caçula, Leila, quando ela já namorava meu pai, as janelas ainda tinham pranchas de madeira que as guarnecessem. E mesmo assim era casa de total hospitalidade.

       Antônio, meu avô paterno, veio de Itaocara para tratamento médico na capital daqueles dias. Hospedou-se em casa de minha avó Eunice, viu-me apenas recém-nascido e ali mesmo faleceu.

      Todos os genros de minha avó, numa etapa de sua vida, hospedaram-se naquela casa. Meu pai, quando solteiro, ainda recebeu ajuda de meu avô para construírem no Éden, não o jardim, mas o bairro de São João de Meriti, a casa do casal, casados em 29/05/1954.

        Baldomero, este o filho mais velho, ocupou a outra metade da casa, sim, meu avô dividiu-a ao meio. Essa parte foi oferecida antes a minha mãe, que não escolheu essa modalidade de inquilinato, opção de Merinho e Zila, os que por mais tempo e com a privacidade dessa parede-meio ocuparam a outra metade.

       Aprontei muito com Rúbio, meu primo, caçula com Rute, filhos desse casal, na casa de minha avó. A única vez na vida que vi meu avô se envolver com pirraça de neto, foi comigo. Eu e Rubinho, apelido, colecionávamos folhetos de propaganda política, na época de confecção ainda amadora, impresso o rosto do candidato, com tinta preta, em papéis multicores.

       Eu e meu primo chamávamos dinheiro e juntávamos blocos e mais blocos, muito novinhos os folhetos, em grande quantidade, amarelos, azuis, verdes, rosas, brancos, enfim, dividíamos entre nós. Certa hora, Rubinho apropriou-se de uma quantidade muito maior do que a minha, denunciei, fiz queixa, importunei minha avó, quis intervenção, ela avaliou por menos, pirracei. Muito. Minha reivindicação era que havia uma injustiça, alguma coisa tinha de ser feita e o meio pelo qual eu me manifestava era por uma brutal pirraça.

       Esperneava no chão, batia as duas pernas, abalava para os dois lados a cabeça, com o que restara dos folhetos que sobraram nas mãos, bem ali, na cozinha velha, antiga que, exatamente por que a casa estava dividida ao meio, era apertadinha.

      Tula estava na sua oficina. Era uma parte secreta da casa, lugar exclusivo de acesso pelo Tula. Talvez quando seu cunhado Nelson o visitasse, que não era frequente, esse irmão de minha avó morava em Bangu, mais ainda internado nesse bairro, os dois eram eletricistas do mundo das válvulas. Ora, só os(as) netos(as) mais velhos(as) se lembram dessa bat-caverna.

        Instituto Univesal, cuja propaganda vinha no verso das últimas capas das revistas em quadrinhos da EBAL - Editora Brasil América, formava pelos correios, isso mesmo, EAD, escola a distância anos 40 a 70, enviava testes e materiais para formar diversos profissionais, no caso de Tula e Nelson, eletricistas.

      Em plena, no clímax da pirraça, Tula que, sei lá no que mexia, só sei que armou com suas pernas um arco por cima do menino que esperneava no chão, brandiu os dois braços, é claro que nunca usaria as ferramentas que tinha nas mãos, mas lembro uma delas ser uma perna de três, na outra, provavelmente um serrote ou até um martelo, para clamar: "Cala a boca, menino!".

       ..... ..... na hora.... Engoli o choro sem lágrimas e a pirraça junto. Lembro-me de sua carranca enfática, de suas costas largas, das mãos enormes, numa delas faltando o indicador, retirando-se de volta à sua oficina-refúgio. Afastou-se curvo para seu recanto e recato, meio que arrastando as chinelas, que era seu jeito.

       A vó Eunice veio dizer "viu, viu", a título de advertência. Eu, olhos arregalados, mais pelo inusitado do fato, que era a intervenção raríssima do avô nesses assuntos, do que propriamente a cena presenciada, aquilatei, também por influência da fala da avó, o grau da crise que eu provocara.

      Mas Rúbio não era fácil (também). Lembro de nosso malabarismo, muito evidentemente sem nossa comum avó saber, andando os dois, ora, avaliem bem, por cima do muro da frente da casa. E transitávamos por cima do muro, pulávamos o espaço do portão, criança tem mesmo titica de galinha na cabeça, eu e Rúbio, Rúbio e eu, foi quando. Houve una hora em que fiquei só eu. Meu primo, vá lá por que cargas d'água, havia descido. Certa hora parei e ele, com o par de olhos muito azuis que tem, até hoje, pai de duas lindas meninas que já lhe deram netos, irmãs de dois temporões gêmeos lindíssimos que Deus deu ao casal (aliás, antes de nossa avó falecer, aos 96 anos, foi trisavó do bisneto desse meu primo). Com esses olhos e um sorriso Coringa, Rúbio me grampeou com as garras de sua mão meu pé. De cima do muro, não acreditei. Antes que eu esboçasse reação, pelo menos gritasse um nãããããooooo, eu já estava caído, atravessado na vala negra, aquela mesma que levava os barquinhos de papel que nossa tia Leila confeccionava, nos dias que as chuvas de verão a faziam transbordar e tornar, pelo menos, barrenta a água fétida.

       Ele puxou com vontade e ímpeto o meu pé, despencou-me daquela altura, pelo menos, na época, rua sem calçamento, quase 2 m, caí sem fala e sem fala fiquei, por causa do impacto. Providência divina, não fiquei "carcunda", que era como mencionávamos esse tipo de deficiência, outro milagre foi eu ver o rosto de Leila, vindo ver, lá de cima, debruçada no muro, o desastre ocorrido. Acho que por intuição veio ver, talvez porque Rúbio deve ter aparecido sozinho, disfarçando, lá nos fundos. Ou porque quando criança do nosso tipo fica mesmo meio largada pra lá, podes crer, vai dar.... titica.... Socorreu-me, nem foram tantas as escoriações, as torções musculares, acho, nenhum ferimento de sangue, argh, talvez porque chovesse, a terra estava fofa e havia anjos de prontidão. Talvez.    

        É claro que aqui nenhum demérito ao meu primo. O que vai escrito aqui são reminiscências da infância, para ele e para mim, aliás, para todos os primos e primas dessa família gratificantes. Por isso somos amigos e amigas até hoje, Rúbio e todos nós. Em 2007 estivemos toda a família e mais minha mãe na casa dele em Paraty. Momentos inesquecíveis.

        Grato a Deus. Grato a Rúbio. Todos, primos e primas, sejamos gratos pela dádiva que foram e ainda são nossos pais, avós, tios e tias e filhos e filhas, bens maiores, continuidade na terra da presença viva desses heróis que nos precederam e nos educaram. Viva!




Rádio a válvula, 
especialidade do Tula








domingo, 18 de novembro de 2018

Crônicas de uma vida XVII - Nilópolis

        O que Japeri tinha de remoto e distante, Nilópolis, estação do mesmo ramal ferroviário, tinha de próximo e familiar. Naquela época, deixando, em 1961, o Rio de Janeiro de ser o DF - Distrito Federal, a bifurcação em Deodoro, nessa direção, levava o Estado da Guanabara até Anchieta.

      Olinda já pertencia a Nilópolis começando, portanto, o antigo Estado do Rio, capital Niterói. E, nessa rota, chegava-se a Nova Iguaçu, passava-se por Comendador Soares, Austim, Engo Pedreira, etc e etc, até chegar a Japeri.

       Nilópolis associava igreja e casa da avó, um paraíso aqui na terra. Era muita palhaçada juntos. O tio Onésimo, ora, era época da explosão mundial de Elvis Presley, o que fazia o Labrego, era esse seu apelido, demorar-se fração de hora a ajeitar o topete na mesma moda internacional. E tome Gumex no cabelo. Já o fixador do meu pai era o Quina Petróleo San-Dar, uma mistura não homogênea de um líquido amarelo, embaixo, vermelho, acima que, sacudidos, misturavam-se, postos à mão, melados os cabelos, com cheiro de brilhantina enchendo o amhiente.

       Muitos mosquitos, à noite, isso fazia com que a bomba de Flitz fosse muito útil, na pulverização de uma nuvem que, pelo menos por uma meia hora, surtia seu efeito. Se não era ela, entrava em cena o Durma-Bem, marca daqueles espirais que, como outros produtos, entre eles Gilette, Durex, a fita adesiva, K7, a fita de gravações dos anos 70, marcas que passaram a designar o produto em questão.

      Eu costumava chorar, à noite, com saudades dos pais. Então tias e tios revezavam-se nas palhaçadas, Miriam, a Cabrita, Gislaine, Girafa, posto por Onésimo, porque ela havia cortado muito curto o cabelo (meu pai a chamava de Fininha), Leila, a russa que, mais próxima de mim na idade, inventava variados modos de diversão. Principalmente barquinhos de papel, para os dias de chuva de verão e sarjetas da rua sem calçamento, na verdade a vala negra mesmo, próximas às casas, levando o brinquedo de enxurrada.

      Tia Nice, não, porque era mais enfezada. Eu chamava todos pelo nome mas, quando dizia "Eunice", só pra contrariar, como diz o pagode, ela redarguia: "Como é que é?", e isso muito séria. Eu emendava "tia Nice". Ah, bom, ela encerrava. Por isso, seu apelido era Madrasta (não podia ser outro). Certa vez, ora, todos acordavam tarde. Se eu estava lá, queria-os cedo na pândega, como dizia o saudoso Moisés, sobrinho da avó Eunice.

      Então, nesse dia, ali sentado no chão da sala, bem em frente à porta do quarto de tia Nice, que ainda dormia, achei de descobrir-lhe os pés, para fazer cócegas. Ela também descobriu, agora a cabeça, mirou-me o olhar, de cima para baixo, para dizer "tisk", quer dizer, só um muxoxo e a cara amarrada bastaram. E as histórias? Cid, na sesta após almoço, acostumou-me de ouvi-las. Então eu pedia a qualquer um que as contasse. Até Gislaine, meio sem jeito, tentava. E não adiantava se enrolar: eu insistia, e nada de dormir. Para não dizer que não, tia Nice me acompanhou no Servidores, na época de recuperação do atropelamento. Era braba só por fora, uma espécie de defesa.

        Falavam a língua do "m", que consistia emendar com esse fonema a mesma vogal da sílaba anterior. "Falar a língua do 'm'", seria: Fa-ma - lar-mar a-ma lín-mim gua-ma do-mo e-me me-me, isso falado numa velocidade que uma criança, no caso eu, ficaria confusa.

      Mascar chiclete, que não era a toda hora, porque o dinheiro custava ser ganho, era proibido para mim, pelo menos pouco recomendável porque, como já expliquei, toda a família sabia: Cid Mauro é educado pelos livros, como meu pai postulava. Quando acontecia, tinha que aproveitar bem o gosto, porque comprado fiado e anotado no caderninho, na venda do seu Morais, bem ao lado.

      Por isso muitas vezes a turma da casa me enganava, mastigando só a língua, havendo ou não havendo goma de mascar, ping-pong, a mais vendida, tinha também o famoso chiclete de caixinha, quando se comprava, tinha que especificar. Este era meio sem graça, o outro era melhor, inclusive pelas bolas que estouravam. Um deles era marca Ploc exatamente por causa dessas bolas, horror para professoras em sala de aula e custosas para crianças de minha idade, na época, aprender a espoucar. Quando enormes, espoucavam fora da boca e grudavam na cara suja, pelo lado de fora, bota de novo pra dentro, um nojo.

       Para não ficar só nas artes de casa da avó, na igreja, certa noite de culto de Santa Ceia, uma vez encerrada a programação da noite, alguém (lendas urbanas de novo me acusam, mas os cúmplices da época farão justiça) teve a brilhante ideia de, apagadas as luzes do templo e, cuidadosamente, encostadas as portas laterais, proceder a uma curiosidade de todas as crianças de minha idade naquela época: que gosto tinham o pão e vinho da ceia?

         Pulamos a janela, eu e um grupo misto de crianças, entre meninos e meninas daquela geração, hoje todos em torno dos 60, mais ou menos 2 anos, para a margem de acerto. Não sei quem teve a ideia, não sei quantos e quantas pularam, mas sei que, na pressa e medo do flagrante, na hora de tomar seu cálice, alguém (ora, quem foi?) desenhou na toalha uma risca carmesim, entornando (derramando, termo daqui) o calicezinho.

       Era aquela mesa imensa, sobre um tablado, abaixo do púlpito de alvenaria trabalhada num requinte de massa lisa e tinta a óleo, reluzente, com gradis de ferro que decoravam as aberturas de ventilação. Toalha alvíssima maior ainda, bandejas de meio metro de diâmetro, duas sobrepostas, com as sobras de cálices cheios e os quatro pratos de pães, de vidro grosso decorado.

       Foi uma revoada de menino, como dizem aqui no Acre, fundindo neste vocábulo os dois gêneros. Nem mais importava se pela portal lateral esquerda, de quem olhava para o púlpito, porque era a mais remota, por ser mais rente e de corredor mais estreito, colado ao muro do vizinho. Recompus bandejas, toalhinha menor que a cobria, saí por último, traidores, diante de meu aperto todos me abandonaram.

       Puro bullying anos 60, se já existisse o termo como designação, ao dar a volta pela mesma rota dos outros, medindo a lado e outro se alguém me observava, dei com um par de pernas maiores que o meu tamanho, já avaliando ou tendo certeza do aprontado. Ora, adultos, sempre intrometidos. E já me colocavam como primeiro suspeito. Luzes do templo se acendendo, mães colocadas a par do ocorrido, convocadas que foram, nem sei que extra foi esse que prendeu os adultos mais tempo após o culto, dando chance à nossa criatividade.

        Entrou tudo na conta da idade, pouca demais para enquadramento em qualquer lei de responsabilidade. O máximo, já dissemos, eram os beliscões. Nesse grupo, estavam os que, junto comigo, para quebrar a monotonia do culto, sentávamo-nos embaixo dessa já referida mesa da ceia, sobre o tablado que a sustinha, desta vez em pleno programa da noite (de ceia), meio escondidos por detrás dessa toalha imensa, em forma de "V", no caimento dos quatro cantos da  mesa, ficávamos bem de frente à assistência do culto, papeando e, de vez em quando, pelos claros do rendado da bainha da toalha, acompanhando o pessoal. Até que uma ou duas mães, para não dar na vista, viesse(m) buscar o(s) seu(s), ensejando a mesma atitude para outras ou, por si, dispersando o grupo. Beliscões, disfarçadamente, assim como conversas ao pé do ouvido seguiam-se como cena seguinte.

       Ora, adultos, não entendiam o quanto isso foi gostoso, sem ainda saber que, do tamanho nosso, dá uma vontade danada de repetir.

Eterno Gumex


Brilhantina
de meu pai
   
Fita K7, depois
chamada cassete

Fita adesiva, conhecida
pelo nome de marca durex

Chiclete de caixinha, sem
graça: não fazia bola

O mais tradicional: ainda
havia um com papel vermelho,
azul e branco, parecendo a
 bandeira dos EUA.


Interruptor típico
das noites na casa da avó


Este tipo

Espiral, nome genérico,
todos eram chamados
Durma-bem, marca


De meia hora a
45 min sem mosquitos,
carapanã aqui no Acre

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Crônicas de uma vida XVI - Japeri

        Desde que me entendo por gente, isso significa dizer até onde minha memória alcança, subia no púlpito da Batista de Japeri, onde meu pai foi pastor, do ano em que nasci, 1957, até finais de 1962, quase 6 anos no total.

        Então, visitávamos Inês e Gilda, isso quando Dorcas, em esporádicos domingos, agendava visitar a igreja do esposo. Daí as histórias, como aquela já contada algures sobre a baldeação, na estação de Japeri, para um trem de bitola curta, para ir à fazenda do diácono Osvaldo, negro consagrado, líder e um excelente crente, de boa fama naqueles tempos e naquelas localidades.

       Demorou muito o conserto da velha locomotiva que, se a memória não me prega peças, ainda era daquelas a vapor. Pois bem. Conta também uma lenda urbana (há várias delas, a meu respeito) que treinei uns leitõezinhos, na casa da irmã Inês, a nadar, experimentalmente pondo-os num poço, é flor do chão. D. Inês resgatou-os, mal (muito) menor, evidentemente, e reputação salva também.

    Almoços memoráveis. Naquele tempo, Cid ainda não estava sob o império da Macrobiótica, nela iniciado pelo Nelson Lima Matos, irmão de minha avó materna Eunice. Então, ele se esbaldava nos torresmos de d. Inez, bistecas e pernis de porco, ou nas galinhadas de d. Gilda. Café à vontade, toras de goiabada cascão, ou não, importava que fosse algum doce. Poderia ser de laranja da terra, mamão, enfim. Adiante, ele teria de abandonar todo esse ritual.

  Depois, era a sesta. Lençóis branquíssimos, cheirinho de limpos, mesmo com sabão português da UFE (cheiro característico, também em sua fabricação, empesteando o ar nas cercanias do Caju, na Av. Brasil). Por mim, até dormiria, se não houvesse o que aprontar com a petizada, algum culto à tarde, Dorcas me punha entre ela e a parede. Limpeza ao extremo, minha mãe lembrava certa vez que d. Inês usou a bacia de roupas, retirando-a do tanque, deixando as peças de lado e se pondo a lavar o macarrão do almoço. Diga se não era absolutamente limpo.    

   Nesses usuais deslocamentos a congregações distantes, principalmente numa época em que ter ruas com calçamento, no caso, paralelepípedos de granito, era muito raro, amassávamos lama, como meu pai gostava de dizer. Sempre ouvi Dorcas, referindo-se a essas oportunidades, mencionar meu despojamento e adaptabilidade a qualquer contratempo e total intimidade e identificação com a garotada do pedaço.

       Certa vez encontrei um dos filhos de d. Gilda, com certeza, no prédio do antigo Ministério da Guerra, ali bem próximo à Central do Brasil. Eu era assinante da BIBLIEX - Biblioteca do Exército. Certamente era ele, do qual não me lembro o nome, mas os traços da fisionomia remeteram-me ao passado, instantaneamente. Mas não conferi, no dia, a patente daquele oficial fardado. Em 2007 quando, com meu sogro e sogra, no retorno de uma ida a Pati do Alferes, passamos por Japeri, visitamos d. Inês e seu esposo, alguns dos filhos, um deles comerciante, confirmei essa história do filho militar de d. Gilda.

      Além disso, a igreja em Japeri nos tijolos e reboco, proporcionava, na parede por detrás do púlpito, o espetáculo da competição entre lagartixas, disputando insetos e, eventualmente, perdendo a ponta da cauda por uma mordida mal calculada de uma companheira bem (mal) intencionada. Eu divisava essa competição, com ameaça de refrega, quando havia perdas de pontas de caudas.

      As viagens nos trens modelo 1930, os vagões mais velhos existentes, eram demoradas e cansativas. Naquela época, 13 era o Deodoro, parador, que fazia a ligação entre este terminal e a Cetral do Brasil, no Centro da Cidade. Cascadura, onde residíamos, e Madureira, estação seguinte, além do Engenho de Dentro eram aquelas que permitiam a chamada baldeação, mudança do parador para os diretos, ou vice-versa: o 33, Japeri/Paracambi, ou o 42, Santa Cruz/Matadouro.

       Até Deodoro, os diretos paravam nas três estações acima mencionadas e, daí, subdividiam-se os ramais da Baixada Fluminense, interior do Rio, a partir de Anchieta, ou zona oeste do Estado da Guanabara, até Santa Cruz. Então, paravam estação a estação, até o fim da linha. Vidros quebrados por pedradas, horas parados caso, por exemplo, uma rês de algum rebanho fosse atropelada na ferrovia, visto que, na época, era usual trechos muito longos sem muros laterais. Aí, uma ruma de gente destrinchava o gado, para aproveitar a carne grátis. Também muitos ambulantes, vendedo de tudo, incluído o chouriço, requentado numa lata de 20 l, com braseiro pelo meio: Dorcas nunca deixou o menino satisfazer essa curiosidade de paladar. Como comiam, com muito gosto, quem comprava! E dependendo da afluência de gente, sem lugar para sentar, havendo uma pane elétrica ou qualquer outra, defeitos agrupados no termo "avaria", estacionávamos na linha. Às vezes, horas a fio.

       Sinal fechado era o de menos. As portas eram forçadas e muitos pingentes, designação da época, andavam dependurados e, eventualmente, um ou outro caía na linha. E as pedradas? Era um princípio físico: velocidade do arremesso do pedregulho na mesma direção e sentido contrário ao fluxo do movimento da composição, termo da época para designar quatro + quatro vagões, dois deles motrizes, um em cada extremidade. Resultado catapultado e brutal: as pedras marcavam a lataria, rachavam o para-brisas dianteiro, quebravam as janelas e, de quando em vez, acertavam os passageiros. Nunca fomos vítimas, mas presenciamos quem foi. Bancos de madeira, encostados lateralmente ou, nesses modelos mais antigos, alguns para dois lugares, transversalmente postados. Aliás, gozado, essa disposição de assento mais antiga está presente nos modelos atuais que, além de bem conservados, estão munidos de ar condicionado. A quantidade de ambulantes é a mesma. Porém, mais limpos e refrigerados de, vez por outra, dar frio.

        Quantas vezes Cid retornou, fosse da estação de Cascadura ou Madureira, por causa de avarias, "o trem está avariado", dizia-se, acompanhando a gente a nossa igreja ou assistindo ao culto em outra co-irmã, por perto. Pela distância de Japeri, num tempo em que não existia, ainda, a Via Dutra, hoje caminho natural para aquelas bandas, caso a viagem não se completasse (ou não se arrastasse) a manhã toda, impossível tentar à tarde: caso se insistisse, só se chegaria à noite, e olhe lá, como dizia o Cid.

       Daquela vez da avaria no trem de bitola estreita, que nos levaria ao sítio do bom diácono, pelejamos, como dizia meu pai, manhã inteira, ali mesmo no pátio da estação de Japeri, até que fosse sanado o problema. 

        Chegando lá manejei, pela primeira vez, um pilão, percorri o descampado da fazenda até o limite extremo de uma cerca que subia uma ribanceira, flagrado por não me lembro quem, mas a audácia seria subir, avançando os limites dos moirões e do arame farpado: o sujeito leu na minha hesitação o desplante. Denunciou-me, novamente, desnecessariamente.

       Na reunião à tarde, congregação super lotada, fiquei de fora, como é costume da criancada, aprontando. Foi quando deparamos uma mulher imensa, tenho-a, ainda hoje, na memória, que tinha a fama, na redondeza, de assustar pirralhos. Os colegas se adiantaram, cumprindo sua rotina de se afastar, tratando-se dela e eu, perigosamente, fiquei por último, para avizinhar-me ao máximo, mirar seu rosto, reconhecendo aparência e perfil para, só então, cumprir com os demais o mesmo ritual de afastamento, só que nutrindo curiosidade e, pelo que pude constatar, nesta vaga lembrança, na minha mente de criança eu nutri simpatia e piedade.

      Depois, relatei tudo isso a meu pai, procurando saber deles que tipo de mulher seria aquela. E os naturais da redondeza pouco acrescentaram de explicação, apenas dizendo tratar-se de uma andarilha lesa, como dizemos aqui. Ou será que sua indigência, daquele modo, tinha uma razão definida? Mistérios desses causos de infância.
BIBLIEX no prédio do antigo
Ministério da Guerra, Centro do
Rio de Janeiro, próximo à
 Central do Brasil

Modelo de trens da
década de 60/70

Estes já são da década
de 30/40. Estação do
Engenho de Dentro

Terminal de Japeri,
anos 80/90

Pátio de Japeri,
 provavelmente,
década 70/80

Locomotivas dos anos
70/80. Mas acho que
fomos à congregação
numa Maria Fumaça

Interior dos vagões modernos,
bancos nos dois sentidos,
como nos da década de 30/40.

Antiga UFE - União Fabril
Exportadora, a fábrica do
sabão português, abaixo


Prédio desativado, na
 Av. Brasil, 
infelizmente demolido
no meado deste ano