sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Jornada Teológica de Ano Novo - 5 - Final - Redução ao absurdo

    Em relação às Escrituras podemos fazer um arco de sentido único, a respeito da personalidade e ação do Deus, desse modo, hipotético, que a percorre do seu início ao fim. Ainda que se queira supor que se trata de um arranjo, há um distintivo na Bíblia que, ou a garante como verdadeira, ou a estigmatiza como um dos mais absurdos livros ou coleção deles. 

     Porque as Escrituras vão afirmar, uma vez que se conjugam Antigo Testamento, este equivalente à Tanach hebraica, livro-texto do judaísmo, com o Novo Testamento, parte cristã dessa reunião de tradições escritas, o Deus do Antigo Testamento se faz homem, encarnado no homem Jesus que, uma vez tendo sido morto, ressuscita de entre os mortos.

      Portanto, na encruzilhada dessas duas tradições, a tradição judaico-cristã, como são usualmente chamadas, se existe um Deus, este se revela no Antigo Testamento, escolhe um povo para se tornar conhecido a ele e por meio dele e, ao final, na história do Novo Testamento, esse Deus, ao se tornar homem, realiza a salvação, assim chamada, por representar o resgate do ser humano de sua condição de corrupção pecaminosa e mortal.

     Se existe um Deus, fez-se homem para assumir a minha culpa, reconciliar-me, quer dizer, unir-me a Ele em comunhão, por meio de Jesus. Se eu tenho pecado, que todos temos, o batismo, quer dizer, a união a Cristo e em Cristo me faz morrer e ressuscitar em Cristo, o que significa herdar uma nova vida, em condições de lutar contra o pecado interno e pesoal e vencê-lo. Essa salvação é eterna e garantida, já a partir desta vida, no ato da fé, sem retrocesso e caducidade.

     Esse é o ponto central das Escrituras. É a partir dele, ou seja, do centro para a periferia, para usar esse termo de expressão, que devem ser validadas. Sim, porque seu principal agente será o Deus criador que se lança ao resgate de sua principal, prioritária e amada criatura, não exitando em se fazer homem para, de uma vez por todas, tornar efetivo e possível esse resgate.  

      Esse, termo que, usualmente, empregava meu pai, é o "pano de fundo" das Escrituras. Qualquer e todas as demais histórias orbitam em torno dessa narrativa central, desse percurso que, por via do cristianismo, no Novo Testamento, ainda instiga a imaginação do leitor quando supõe que, para conseguir seu fim, sua principal finalidade, Deus fez-Se a Si mesmo homem, pois não haveria como superar as imperfeições humanas, a não ser por esse meio.  

      Assim como não haveria outra opção para que o homem Jesus assumisse em si mesmo as imperfeições humanas, já que não as possui, e pudesse purgar em si o pecado (termo técnico síntese de toda a maldade instalada no ser humano), basta que haja uma opção sincera e voluntária em aceitar e acolher esse ato propiciatório, quer dizer, em lugar, expiação e esgotamento da dívida humana para com Deus. 

  E o Novo Testamento ainda vai apresentar uma terceira Pessoa, a quem Jesus introduz na história da salvação de que falam as Escrituras, indicando que a obra que Ele realizou, embora suficiente, única, perfeita e definitiva, está fora do ser humano. Para que seja, voluntariamente para quem opta, aplicada ao que crer, somente pela ação, no(a) crente, do Espírito Santo. Quem crê é, pelo Espírito, batizado em Jesus, ou seja, unido a Jesus, de modo que a trajetória de Jesus seja a de cada um que crer.

     Assim como Jesus é, para Deus, assim se torna o que crê e, por sua fé, é batizado em Jesus. Como Jesus é para Deus, assim o que crer se torna, do mesmo modo. Com a garantia do Espírito Santo, chamado "selo para resgate da propriedade de Deus", que são todos os que creem, tendo em si habitando esse mesmo Espírito, porque, no Novo Testamento está confirmado que o Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é Deus. 

      Esse o Deus, essa a história das Escrituras. Na matemática existe uma modalidade de demonstração de teoremas denominada "redução ao absurdo". Existe exatamente para demonstrar uma modalidade de teorema que se revela impossível de demonstrar. A solução será demonstrar que o seu inverso é verdadeiro. Então, definitivamente, por indução e dedução, o outro estará comprovado. Para afirmar o Deus das Escrituras e, concomitantemente, as próprias Escrituras, basta provar o seu inverso, anulando sua história, no que tem de essencial. Estará terminado. Simples assim.

      

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Jornada Teológica de Ano Novo - 4 - Um Deus e seus planos?

      É radical e de uma vez por todas. Se a opção for por admitir que as Escrituras apresentam um Deus, que nela é único, e que se comunica com o ser humano, elas próprias são a primeira fonte de comunicação desse e com esse Deus. 

    Pelo modo como nela está expressa a história da revelação de um Deus, seriam as Escrituras fraude sistematicamente organizada, na concepção e autoria dos seus textos? Ou ainda uma reunião de lendas, literatura piegas ou construções mitológicas sobre a saga de um povo?

     Nosso objetivo não é discutir texto a texto, ou discorrer sobre o modo específico como tratam do Deus, de que modo a literatura nela exarada reflete sua cultura e época, porque isso já está exaustivamente feito. Mas, em linhas gerais, supor que a ideia sobre um Deus ali descrito fosse tal que se sobressaísse a qualquer outra, por outros meios, exposta. 

     E assim, de uma vez por todas, estaria definido se vale a pena considerar Deus esse das Escrituras ou negá-lo e, consequentemente, negá-las, e assim definir se vale a pena procurar outro ou achar Deus fora das Escrituras. Eventualmente, poderemos considerar que elas dão alguma pista sobre Deus, que seria, em alguma proporção, Aquele que aparece, em esboço, em suas páginas. 

     Então vamos, mais uma vez, anotado que será em linhas gerais, ao perfil do Deus delineado em suas páginas, quer dizer, nas páginas das Escrituras. Elas o indicam como criador, iniciando com uma descrição como tudo foi, por etapas, feito. Para logo indicar a relação pessoal desse Deus com o homem/mulher, segundo elas dizem, criados à Sua imagem e semelhança. 

    Mas para que essa "imagem e semelhança", por motivos óbvios, não seja indicada como um rascunho, devido ao vexame, para um Deus, que representaria a performance da condição humana, as Escrituras indicam logo a razão da distorção e incoerência verificada, descrevendo o modo como homem/mulher contradisseram sua origem.

     Homem/mulher, criados para viver num paraíso, o que combina, segundo as Escrituras, com o perfil do Deus nela descrito, resolvem contradizer Deus, desconhecendo-O como parceiro de suas próprias condutas. Portanto, são expulsos para o que se chama Terra, ainda que esta fosse criada, anteriormente, com essa ideia de ser um jardim paradisíaco. Pois o planeta se tornará, agora, à imagem e semelhança dos seres criados, sem nenhuma depreciação para eles, visto mesmo que, quer exista ou não exista um Deus, o planeta não deixa de ser à imagem e semelhança desses seres que nele habitam.

     Pulando por cima de duas histórias, a primeira indicando que, ao invés de seguir a sugestão do Criador, para que se espalhassem e ocupassem com inteligência o solo, resolveram amontoar-se no que inventaram e passaram a chamar "cidade", com torre e tudo. E a segunda, na qual Deus quase que se desconhece, porque notou duas coisas: 1. A maldade do homem/mulher aumentava, quer dizer, multiplicava-se na terra (ou Terra?); 2. E que isso era sem cura, quer dizer, era continuamente mal o principal desígnio do coração de homens/mulheres. 

     O que essas duas histórias apresentam em comum, segundo ilustram essas partes das Escrituras, é a disposição de não estar nem aí para o Criador, em Suas sugestões. Inventam o que hoje se chama cidade e definem fronteiras e brigam entre si, por nada, e, em termos de refinamento de maldade, esta só aumenta e continua aumentando, com ou sem motivo, se é que, para ser mal, seja necessário um motivo, essas histórias, com ou sem existência de um Deus, são um retrato da humanidade. 

     Respectivamente chamadas, essas duas narrativas, de Torre de Babel, palavra esta que significa "confusão", sendo a outra denominada de história do dilúvio, a narrativa seguinte vai apresentar um homem a quem Deus escolhe e separa, revelando a ele um plano de constituir um povo entre todos os outros povos, para que, ao final, possa reunir, de novo, junto com Ele e para Ele, toda essa turma, quer dizer, todos os povos como um só, os quais 1. espalharam-se pela terra (ou Terra) toda e 2. decidiram ser maus, multiplicado e continuamente, e maus cada vez mais. 

    Esse é o começo da história, em linhas gerais, das Escrituras.  Convenhamos: ainda que nesse comecinho, existindo ou não, já dá para simpatizar com um Deus desse, disposto a consertar com parceira o rascunho em que o pessoal transformou a coisa toda e ainda pretende reunir com Ele todo mundo junto, de novo.
      

sábado, 9 de janeiro de 2021

Jornada Teológica de Ano Novo - 3 - Um Deus nas Escrituras

     Duas advertências neste terceiro texto desta singela, porém, repetimos, pretensiosa série. A primeira é para dizer que não vamos adentrar numa discussão exaustiva e de grande envergadura sobre a existência de Deus. 

     Porque nos falta competência para isso, por um lado e, por outro, essa discussão já deu "pano para manga" e, na maioria das vezes, revela-se estéril, eu diria até, contraditoriamente falando, incompatível com a fé. 

     Pois a simplicidade, finalidade e profundidade da fé não se presta a essa discussão. O próprio Paulo Apóstolo afirma que "a fé não pergunta", por mais, repito, contraditório que pareça. Porque supondo-se que Deus exista, a relação com ele é por meio da fé. 

     Portanto, a fé não pergunta pela existência de Deus. Ela pressupõe a existência de Deus. Aí, sim, faz muitas perguntas. As perguntas que a fé propõe são de natureza diversa da suposição pela existência de Deus. Porque a fé já pressupõe a existência de Deus. 

     A segunda advertência diz respeito ao que foi abordado no final do texto anterior. Não vamos aqui discutir o método científico e nem sua relação com a fé. É necessário compreender correta e individualmente cada um deles. 

      Muitas vezes a ciência depura a fé, mas não a define. Outras vezes, a ciência não vai ter ferramentas de como explicar algo que a fé, de modo natural, admite. Portanto, não vamos aqui discutir a relação entre fé e ciência, embora certas afirmações aqui feitas possam esbarrar na necessidade de definir, com precisão, o campo específico de uma e da outra.

    Vamos começar afirmando que a Bíblia, evidentemente, pressupõe a existência de Deus e se autoapresenta como uma primeira comunicação dele. Para citar um de seus autores, mais exatamente anônimo, na assim chamada carta aos Hebreus, diz que "Deus falou muitas vezes e de muitas maneiras".

    A primeira frase das Escrituras, "No princípio, Deus criou os céus e a terra", aciona, a um só tempo, fé, ciência e comunicação: alguém, em nome de Deus, está fazendo essa afirmação.

     E o que a Escritura está afirmando, pelo menos neste texto, não contradiz a ciência que, de si mesma, não sabe tudo sobre tudo e, sobre o universo, com detalhes, como surgiu. Ela tem suposições, por meio de seus métodos, hipóteses e teorias, mas não tem todas as respostas.

    Então, para que não se torne estéril a discussão de onde supor a fronteira entre ciência e fé, é necessário partir do pressuposto de que cada qual trata de um objeto diferente de estudo. Cada qual com seu método: a ciência, se for o caso, perguntada ou se perguntando sobre Deus, embora não seja este um objeto específico dela para estudo, e a fé perguntando a Deus.

     Para o Deus apresentado nas Escrituras, esta se constitui numa primeira comunicação a Seu respeito. Quem, nas Escrituras, fala sobre Deus ou quando, nas Escriruras está escrito o que Deus fala, elas estão se constituindo numa comunicação de Deus ao ser humano.

     Nesta altura de nossa argumentação, faremos uma escolha, que será por optar, como já mencionados anteriormente, em verificar o modo como as Escriruras apresentam o Deus a Quem ela se refere e o modo como ela declara que ele se comunica. 

    Porque já existe nela pronta, de certa forma, sistematizada, por assim dizer, uma ideia sobre Deus. Aqui, em linhas gerais, vamos abordá-la para, então, decidir uma das seguintes opções:

1. O Deus das Escrituras, exaustivamente nela indicado, por suas variações textuais, indicadas as formas pelas quais se comunica com o ser humano é o único possível de ser crido como verdadeiramente existente;

2. Uma vez definido dar sua existência como provável, se vale ou não a pena procurar outro, em função de, por hipótese, da fraca evidência das Escrituras, e, por assim dizer, dar por encerrada a tarefa, até mesmo admitindo que, por uma "redução ao absurdo", as próprias Escrituras, por sua incapacidade ou imprecisão em conceder uma diretiva precisa a respeito da existência de Deus e Sua capacidade inquestionável de comunicação com o ser humano, elas mesmas, ao contrário, constituir-se-iam (com merecida mesóclise) numa prova de Sua não existência.

     Portanto, terminamos este texto propondo verificar em que condições as Escrituras indicam um Deus e afirmam de que modo se comunica com o homem. Porque se ela puder ser desacreditada e, em que variados graus, isso puder ser levado a efeito, restará checar se, fora dela, vale a pena procurar por qualquer Deus e, se valer a pena, que pistas ela pode dar como válidas. 

Jornada Teológica de Ano Novo - 2 - Como comunicar-se

    No texto anterior estabelecemos o que chamamos axiomas, três deles, que passamos aqui a descrever, a fim de dar continuidade à nossa argumentação. Ah, sim, o assunto versa sobre a existência ou não de Deus. E os três axiomas se expressam como segue:

    1. Afirmando que Deus exista ou que exista um Deus, vamos nos ocupar aqui com a suposição de que Ele é único: se está (ou se for) difícil provar a existência de, ao menos, um, imagina a de outros tantos.

    2. Caso exista, só nos interessa (a nós e a toda a humanidade) um, ou melhor, Um que se comunique com o ser humano, porque não interessa a ninguém Um que não dê, literalmente, as caras, quer dizer, a cara (com todo o respeito).

 3. Evidentemente, deve haver intermediários autorizados para falar em nome dEle, visto que essa comunicação, muito e necessariamente descomplicada, para efeito de sua relevância, precisa ser essencial, muito embora não deva ser tão informal assim, porém protocolar. 

 Resta, neste texto, continuando a argumentação, esclarecer o modo como se dá essa comunicação e por boca de quem. Porque, como já foi assinalado, alguém que saísse por aí dizendo "falei agorinha com o Altíssimo", seria tido como, no mínimo e antigamente se falava, "louco manso".

      Para introduzirmos, portanto, esse item da argumentação sobre a modalidade de comunicação com o Altíssimo, será necessário mencionar a tão antiga e não menos conhecida, porém, atualmente, em vários graus desacreditada Escritura.

      Também conhecida como Bíblia ou tradição (escrita) judaico-cristã, por incluir duas partes: Antigo e Novo Testamento, como denominam os cristãos. Lembrar que, pelo ramo do judaísmo, ela é denominada Tanakh que, na verdade, refere-se à uma abreviatura de suas três partes componentes, senão vejamos:

     "T" de Torah, Lei; "N" de Naviim, Profetas; e "K" de Khtuvim, Escritos. Lembrar, ainda, que esta Tanakh é idêntica, em seu conteúdo, ao Antigo Testamento da Bíblia protestante porque, no Antigo Testamento da tradição católica, foram acrescentados mais 7 livros e ainda outros trechos em mais 2 livros, todos constantes na Septuaginta, esta a primeira versão, para a língua grega, feita a partir dos originais hebraico/aramaico dos textos, cerca de 250 a. C., em Alexandria, na diáspora, enquanto que a Tanakh judaica, herdada pelos protestantes, segue a tradição hebraica mais conservadora da Palestina.

     Por que mencionar Escritura? Porque elas falam de um Deus. Ora, se vamos, em meio a esta humilde, porém não menos pretensiosa, argumentação falar da tentativa de provar que existe, pelo menos, um Deus, não começar a partir da citação exatamente do Deus de que falam as Escrituras seria omissão, o que produziria uma inutilidade argumentativa.

     Não se pode avançar na tentativa de indicar outro deus sem admitir, na economia desta jornada, a possibilidade de existência desse indicado nas Escrituras. Portanto, não podemos avançar sem que, com todo o respeito, desautorizemos como Deus o próprio Deus das Escrituras (e, consequente e concomitantemente, as próprias Escrituras). Para só então partir, se for o caso, à demonstração de outro. 

  Mesmo porque a fama das Escrituras, exatamente por causa da sua divulgação secular, por que não dizer, milenar, torna famoso o Deus de que ela mesma se revela portadora, vide a história de religiões como o judaísmo e o cristianismo, este em seus variados ramos.

     E, se a argumentação vai se direcionar, como já indicado, para uma expansão do axioma três, específico para se definir por quais meios o Deus hipotético se comunica, vamos introduzir aqui as Escrituras como uma possível fonte indicativa da possibilidade e, quem sabe, até dos meios pelos quais, efetivamente, se dá essa hipotética comunicação entre Deus e o ser humano.

      Dizendo de uma outra forma: não se avança nessa jornada sem antes introduzir, em regra geral, a temática da comunicação com Deus como apresentada nas Escrituras. Supondo, então, ser necessário, de antemão, desacreditar seu conteúdo, no específico dessa possibilidade e, de uma vez, desacreditando ou desautoirizando como Deus esse que ela apresenta, caso seja uma falácia a possibilidade de comunicação com Ele.

      E para terminar esta etapa, que já se revela extensa, mais uma vez queremos destacar o respeito necessário ao se tratar deste assunto. Porque, se para alguns, é tão fácil duas coisas: 1. desacreditar as Escrituras e, 2. obviamente, o Deus de quem elas falam, para outros todo esse assunto se revela de suma importância e, por razões óbvias, até sagrado.

    Será necessária uma dissecação, vamos usar esse termo, das próprias Escrituras, visto que, em algumas partes, até como vício do ofício, elas falam com muita intimidade do Deus que apresentam em suas páginas. Porém, devido ao que podemos chamar de "evolução do pensamento humano", estudos, escolas, academias, enfim, o pessoal foi se desapegando de certas partes delas, corrigindo, vamos dizer assim, certos modos próprios delas se expressarem, indicando certas "falas" de Deus como disposições ou modos peculiares, literários, simbólicos, subordinados à época dos autores, enfim, "falas não-literais" do "Deus". Portanto, toda uma filtragem, segundo se alega, tornou-se necessária. 

      Resumindo, por incrível que pareça (e, por essa, ela não esperava), indiretamente a ciência é que vai dar a última palavra a respeito do grau de credibilidade das próprias Escrituras e ainda, não que ela, a ciência, tivesse procurado isso, vai acabar por definir se essas "falas" de Deus ou a respeito de Deus são mesmo como estão expressas, ou seja literais, figurativas, interpretativas, teológicas, enfim.

       Mas essa discussão até onde ciência e "fé" avançam, encontram-se, repelem-se ou se autoexcluem, talvez, seja ou não seja o nosso objetivo aqui. Mas certamente, em alguns momentos, não poderemos avançar sem esbarrar e transpor esse obstáculo.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Jornada Teológica de Ano Novo - Três axiomas

       Este texto, pretensiosamente, pretende discutir, afinal de contas, se o Deus possível tem mesmo alguma chance de existir, com possibilidade de ser acreditado por gente de certo nível e não somente o vulgo. 

    Para isso, a priori (gostei do termo), vamos estabelecer, pelo menos, três axiomas (outro termo interessante) sem os quais a gente não avança nesse terreno, qual seja, suposições a respeito de Deus. 

     O primeiro seria sobre a quantidade de deuses. Este será, em minha opinião, empiricamente falando, o de mais fácil abordagem e fixação, visto que, caramba, se está cada vez mais difícil confirmar a existência de um Deus, imagina dúzias deles. 

     Portanto, respeitando a mitologia alheia, vamos fixar nossa tentativa na confirmação de um Deus único. Para caminhar adiante, vamos então firmar as bases do segundo axioma desta nossa humilde, ainda que pretensiosa, argumentação. 

     Para segundo axioma, vamos admitir que, havendo Deus, haverá de se comunicar com o ser humano. Porque, ainda empiricamente falando, um Deus que exista mas, com todo o respeito, que não esteja nem aí para o ser humano, então nem precisa existir. 

     E tem mais: se o suposto Altíssimo existe, mantendo-se a Si mesmo afastado de conceder, pelo menos, uma pista científica de sua existência, uma única que fosse, que, pelo menos, desse para estabelecer um teoremazinho, se ainda por cima, decide existir e não falar nada com e para ninguém, seria, mantido aqui todo o respeito, inútil.

     Avançamos, portanto, para o terceiro axioma, mas não sem antes revisar aqui os dois anteriores: 1. Há um Deus possível, pelo menos, porque seria inviável para caramba tentar demostrar a existência de um montão deles; 2. Havendo um Deus, exige-se (em tese) que se comunique, porque não dá pra pagode um Deus que exista, mas que fique na dEle.

      Antes do terceiro axioma, preparando sua discussão, vamos estabelecer aqui certos fundamentos pelos quais, de modo plausível, para usar este termo, dar-se-ia (desculpe a mesóclise) essa comunicação. Sim, porque se já está difícil provar que existe um Deus, sair por aí dizendo "falei com ele agorinha" seria uma piada. 

      Portanto, quem sai por aí dizendo que falou com o Altíssimo cara a cara, não vai angariar muita, talvez nenhuma credibilidade. Então, malandragem, falar com Deus não é algo assim tão simples e direto, como bater um papo, jogar uma conversa fora na roda de bar.

     Mesmo assim, vejamos, ainda que não seja assim tão informal essa comunicação, caso se torne muito intrincada, ainda mais nesse tempo de smartphone, vamos cair naquela de que está difícil e improvável a comunicação, logo, anota aí: Ele não existe.

      Para axioma três, então, vamos estabelecer que há representantes devidamente autorizados, para falar em nome de Deus, para evitar, exatamente, o mico de sair por aí dizendo "falei com ele agorinha". Portanto, há um protocolo mínimo de acesso, vamos dizer assim, que inclui intermediários.

      Vejam bem, para a economia deste texto, não vamos aqui detalhar ou especificar o modo como esses "intermediários" entre o Altíssimo e a raça humana, previamente, habilitaram-se. Como foram, como acima indicado, "devidamente autorizados", é claro, porque aqui, autenticidade na comunicação é fundamental. Sem ela, esparrela, quer dizer, vai se tornar inviável prosseguir, em qualquer tentativa que não seja meramente crédula de se provar alguma coisa. 

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Crónicas de Terê - 2 - Saúde e os entornos

     As estadas em Terê poderiam ser referência para outras esticadelas, como a ida a Petrópolis, num desses dias mais ou menos chuvosos, para visitar a casa do Santos Dumont e até, ora vejam só, a casa do imperador. 

     Fazia-se o caminho por cima, pela estrada que liga as duas cidades, com direito a uma paradinha no alto da serra para o fascínio da natuteza e o ouvir o ruído da cachoeira. Outras saídas furtivas permitiram visitar o mirante da cidade, a cachoeira do Imbuí e um velho coreto por entre os caminhos das montanhas que, estrategicamente, cercam a cidade.

     Evidente que uma visita, pelo menos externa, à Granja Comari era imperdível, e foi feita com documentação fotográfica, sendo uma das mais antigas em meio a toda essa história da família por essas freguesias. Não se pode deixar de falar da característica principal e nunca esquecida, que é a presença na igreja, no caso a Batista Central, para logo depois da saída do pastor, acompanharmos sua nova igreja, a Batista Serrana, na qual rotineiramente, nesse período de férias, a gente se encontrava. 

     Outras funcionalidade essencial em Terê eram as revisões de saúde. No meu caso, sou o campeão que, a consultas médicas juntei, pelo menos, duas cirurgias no São José, ainda quando o plano de saúde permitia. Mais do que barriga, foram de bexiga aberta, pasmem. Fase boa, em que se proporcionava o célebre encontro das sogras, dividindo atenção para o meu bem-estar.

     A essa altura, já estamos no segundo ap, em função do qual, com tristeza, melancolia e nostalgia deixamos de lado o miudinho, para comprar dois aps, quase que geminados, mas emparelhados, 101 e 102, para a avó e para a tia-avó, em outra área nobre, próximo à Prefeitura, na transversal Rui Barbosa.

     Outras histórias, garagem para cima, de dois estágios, avançada em relação à do outro, que chegou a alagar, num desses temporais homéricos da região. Voltando aos médicos, desde que o menino precisava de revisões sistemáticas, devido ao leg perthes, passando pelas já citadas cirurgias e chegando às célebres seções de fisioterapia do pai, devido à fratura da cabeça do fêmur, que abarcou a virada 2008/2009.

      Esta vai se tornar célebre, também, por outras razões, desde o fato da vinda de avião, e não carro, por causa das muletas, da ida ao Maraca, sem largar as muletas, de não menos célebre tombo, em dia de chuva, após a saída da físio no Ortocenter e, pasmem, a compra de outro ap, desta vez, numa outra parte não menos nobre, no Alto, definitivamente enraizando a família na serra.

     Para encerrar, médicos, múltiplas consultas e exames, para toda a família, talvez a menina a menos requisitada nessas jornadas, não houve endereço onde não vasculhássemos à busca desses profissionais de saúde, alo e homeopatia, múltiplos exames e jornadas, no meu caso, até mesmo solitárias, como a vez em que, debaixo de frio e às escuras, pernoite no ap do Alto, na busca pelo médico da terceira cirurgia que, desta vez, não foi feita no São José e não com médico da serra, mas a jornada vem nessa direção, passa por essas paragens e vai dar na fronteira, em Guapimirim. 

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Crónicas de Terê - 1 - O Miudinho

      O pequeno ap de Terê ganhou o carinhoso apelido de miudinho. O acesso à garagem, por carro, era subterrânea, tinha um quarto só e a cozinha, de tão miudinha, era a parte da qual eu me lembro menos.

    Aproveitamento de espaço era o espaço entre a entrada, pela porta da frente, e a sala, propriamente dita, aliás, a dita cuja cujo espaço representava o possível, em temos físicos, da estada dentro dele e dela. Ora, esse era o quartinho de dormida da tia Gilca, porque o casal mesmo dormia na sala transformada em quarto, enquanto noite. O netinho com os avós no quarto único.  

     Havia, pasmem, uma área externa, onde o mais precioso era o reverberar da luz do sol, tão essencial no clima da cidade, e a genial solução que o vô Hetaldo deu a um cantinho onde criou seu universo de anotações e acomodação de toda a sua quinquilharia funcional, principalmente as ferramentas. 

     Ali produziu a célebre televisãozinha para as crianças, que não resistiu à umidade do Acre, além dos pacotes geniais que resistiam incólumes as viagens por carro, 4 mil km, 4 dias de superposição da obrigatória bagagem mais os víveres que as duas avós acumulavam, camada por camada, avaliando uma possível carência deles nessa cidade tão remota. E isso fosse na diminuta mala de um Gol 1.000 quadrado, ano 1995, duas Parati 1600, a de 1997, sem ar, e a Trackfield 2005, com ar e, last, but not least, a Filder 2006/2007, que durante anos, até que as crianças crescessem, visitaram Terê.

      Desde a época romântica dos pombinhos na praça da Catedral, alimentados pela paciência conjunta da vó Lourdes com o Isaac, até o banho de sol de Ana Luísa na areazinha do miudinho, no colo do casal de avós. Enquanto isso, é necessário a menina nascer, o que ocorreu quase exatos cinco anos depois do menino. Nesse meio tempo, adquiriu-se o universo em miniutura e a saga das idas a Terê se iniciaram. 

     O must da temporada foi a invenção, pela avó, do tal "aniversário das bonecas", com convidados e tudo, incluídos docinhos da tia Gilca, presentes e até fotografia. Desse dia há uma célebre foto que aparece pela parede vazada, uma solução para o espaço mínimo, onde uma pequena plataforma e um acabamento de madeira trançada em losangos otimizava o espaco.

      A área externa para além do miudinho era o mundo não tão imenso assim lá de fora. Perto de tudo, restaurantes do shopping, aliás, eram dois shoppings, que luxo!, um deles o paraíso das crianças, com brinquedos sortidos, pertinho do paraíso do pai, a livraria! Uma praça de alimentação, das tortas extraordinárias e inesquecíveis, longe se serem únicas, pois a meio caminho do comércio sobre a ponte do Paquequer, havia outra loja de guloseimas açucaradas. 

     A Lucio Meira, de um tudo, aberta no que era o antigo vale entre montanhas, hoje avenida que corta do chamado Alto à parte baixa lá embaixo, geografia local do miudinho, devidamente urbanizado, com seus antigos casarões quase todos demolidos, o que já foi a vistosa e antiga Teresópolis, à qual se poderia chegar por trem, desde a cabeceira do porto da Piedade, lá em baixo, nas vizinhanças de Macaé. 

     Resta muito pouco desse tempo, a não ser o charme insubstituível dessa terra. Clima aprazível, povo que se destaca por sua educação e poder cativante de acolhimento, talvez um dos poucos lugares no país onde, verdadeiramente, o carro para para o pedestre. Com esse tímido elogio inicial, encerramos esta crônica, mas deixamos a deixa para a próxima. 

Necrópole - X

      Chegaram a casa. O assunto morreu no carro. Pelo menos, por hora. Era assim. Tácito entre eles. Não ficavam muito tempo discutindo a mesma coisa ou uma coisa só. Houvesse ou não houvesse polêmica, assim ensinaram aos garotos, quer dizer, à garota e ao garoto. 

     Foram tomar seus banhos, primeiro a mãe, Rauana no banheirinho de fora, que era de empregada, não, Raul, pode tomar o seu primeiro, que vou ver uma coisa aqui no quarto. O menino foi. Pega a toalha, pega a roupa, põe a suja no cesto, leva as coisas para não ficar pedindo. Tá bom, mãe, respondeu sonora e solenemente.

     A menina foi ver nuns guardados. Achou um cartãozinho da avó Etiene, mãe do pai e irmã do tio protestante sorridente. Aqui, pai, foi mostrar. "À minha neta querida, uma lembrancinha de seus 5 aninhos: que Jesus Cristo e Nossa Senhora abençoe sua vida". Sua mãe era católica? Protestante não escreve N.Sra. Ei, minha filha linda: olha, que lindinha no retratinho! Ela sorriu. Muito lindo o sorriso de Rauana. Mas ela o economizava. 

     Minha filha, sua avó não era católica. A mãe dela, sua bisavó Isaurina era católica. Ela sim, fervorosa, beata como diziam. Por isso que nós aqui não temos tradição religiosa. Porque a vó Isaurina, quer dizer, minha vó, gozado, filha, era beata, mas achava que os filhos deveriam escolher a própria religião. Daí seu pai não ter nenhuma. Não ter nenhuma o quê? Vinha ela, Laura, que era uma mulher bonita, daquelas que escondem a idade, sem fazer nenhuma força. 

      Religião, bem. O assunto aqui é religião. Laura parada, com a ponta dos dedos na toalha secava os cabelos, jogando a lado e outro a cabeça, gesto que sempre fascinou Raul. Que assunto? Explicando para minha linda filha Rauana que eu, muito embora filho de mãe e avó católicas, nenhuma delas forçou religião para nós, eu e meus irmãos. 

      E você, mãe? Como foi? Minha mãe, sua vó Adália, não era muito ligada em religião também não. Na verdade, havia sido instruída pela mãe, a bisavó da menina, Idália, mas rebelara-se muito cedo, na adolescência, caso inédito para alguém da década de 1930. Mas isso a mãe não ia contar.

      Mas é bom, minha filha, concluiu o pai, quer dizer, às vezes é bom religião nenhuma, para não intoxicar. A mãe fez uma careta. Ué, e essa aí que vocês estão aderindo, não é religião? O menino havia saído do banheiro. Meniiiiiiino, carregou a mãe na sílaba tônica, olha aí, patinhando o chão! Reclamou. Ele parou, olhou de olhos arregalados para mãe, posso falar um instante? 

      Paralisaram os três. Mas o que ele vai falar, os olhos de todos congelaram inquirindo? Mãe, disse mirando-a nos olhos e com uma naturalidade descontraída, pausa: por que a senhora, e falava gesticulando, e Rauana também, igual ao pai e eu, a gente fica unida, acreditando em Deus e em Jesus juntos? 

     O pai abriu um sorrisão, meu filho, você é demais, a irmã olhou mãe e pai, deu um meio sorriso e a mãe pôs ambas as mãos na cintura, fez careta repuxando os beiços e falou eu quero mesmo é saber do meu chão. O menino riu, acolhido num meio abraço no regaço do pai. Tá bem, mãe, eu seco. Deixa comigo. 

Mais para Sodoma do que para Nova Jerusalém

    Vivemos tempo em que os textos bíblicos são questionados ao máximo. Claro que isso é cíclico. Portanto, não há novidade. Desde o Iluminismo se pratica, ou seja, há mais de 200 anos, e somente atualizam-se por que novos métodos e escolas, selecionadas quais partes das Escrituras e por quais motivos terão sua credibilidade questionada. 

 
    Meu professor de Metodologia Científica, no curso do bacharelado em teologia, Martineis Anjo Gonçalves, comentava conosco, na virada dos anos 70/80 do século passado, sobre fazer da Bíblia "campo de caça" de teologias, de hermenêuticas, exegeses, enfim, interpretações várias, retirando dela a competência de ser original (ou relevante) em relação ao que diz.

     Pobre Bíblia. O que mais se faz hoje. E, na medida em que se propala toda essa liberdade, em que, em graus diversos e num tom professoral se avança na determinação dos tipos de escola de pensamento que definem novas abordagens sobre a Bíblia, triste de quem discorda, vindo à reboque, na tentativa de confirmar o que, um dia, supôs-se de ser o específico do livro, ou seja, suposição de que fosse "palavra de Deus".

      Quem hoje insiste em afirmar que a Bíblia é "palavra de Deus", bem, em que sentido afirma, já se questiona, caso insista dizer que é no sentido literal, cuidado, prepara (como diz Anitta, desculpe a citação), vão chamar você de fundamentalista, no aspecto acadêmico(?)-teológico, e "de direita", direta e consequentemente, no aspecto político, já que o período é definido como "de polarização" e ai de quem não seguir a verdade imposta. Ou seja, são tempos de exceção de novo.

      Pois a visão distintiva entre as duas cidades mencionadas, Sodoma e a apocalíptica Nova Jerusalém que, no Apocalipse, desce do céu a se implantar no mundo, essas duas tradições bíblicas de texto precisam ser checadas em relação ao seu significado, para o que apontam e em que grau de objetividade servem como simbolismo. Podemos escolher o método e focar as duas, em seu contexto, submentendo-as ao escrutínio e definindo, a fim de retirar dos respetivos textos, lições que se apliquem, devidamente, ao tempo atual.

     Sodoma tem cada vez mais atualidade, numa relação prática com a realidade e numa assunção dos direitos que ela representa. A "Nova Jerusalém" já terá um valor mais questionável. A começar pelo seu teor místico e, talvez, pelo próprio dístico "Jerusalém", que divide atenção entre muçulmanos, cristãos e judeus. Incluído o distintivo de cada religião, uma vez imersos nos meandros da mais valia, dependendo do viés político, ser muçulmano, cristão ou judeu vai implicar graduação de valor.

     Porque ser muçulmano é ser politicamente correto, ser cristão pode ser sinônimo de fundamentalista, se não estiver engajado no movimento progessista da hora, e ser judeu é estar do lado errado da força. Portando, "Jerusalém" já evoca essa intrincada carga semântica. E, nesse texto apocalíptico, está relacionada a cristãos. Nada relacionado ao islã, nem ao judaísmo. 

      Portanto, a legenda "Nova Jerusalém" avança para o místico, enquanto que Sodoma avança para o mundo real. Cada vez mais redimida, enquanto que a visão de uma cidade que desce do céu, inspirada na visão do profeta Ezequiel, que afirma, em relação à cidade que avista, que Deus habita nela, ora, que "Deus"? Seria a "cidade de uma teocracia"? A cidade de um Deus moral, que seleciona excluindo? Se os tempos são de inclusão, uma teocracia que exclui só pode ser obra de um "poder opressor". Urge reinterpretar, para entender e, por enquanto, preservar Sodoma e descartar a outra.

       Neste texto queremos comparar a reabilitação de Sodoma em relação à utopia que representa imaginar uma cidade que desce do céu. Comparar a mentalidade que indica uma cidade onde Deus mora, "o Senhor está ali", como afirma Ezequiel, o profeta, no último versículo de seu livro, e o que representa, como choque de realidade, a reabilitação de Sodoma e, simbolicamente, tudo o que as práticas de que era acusada representavam. Uma vez reabilitada, Sodoma representará muito mais o tempo em que vivemos.

      Por exemplo, numa visão fundamentalista da Bíblia, a destruição de Sodoma e sua vizinha Gomorra se deu em função de práticas reprováveis. Deus chama Abraão para uma conversa, porque nela vivia Ló, sobrinho do patriarca, filho de Harã, o irmão caçula de Abraão, que havia falecido exatamente no lugar do crescente fértil que passou a ter o nome dele, o pai de Ló, a meio caminho da peregrinação de Abraão, o tio, este o pai de árabes e judeus, na jornada (mítica?!) entre a Mesopotâmia e a Palestina.

      Anjos, então, vão livrar Ló, emergencialmente, da destruição que virá sobre as duas cidades e, quando se dirigem à casa do sobrinho do patriarca árabe-judeu, destacavam-se em seu porte e são notados. A casa de Ló é procurada por uma turba, que insiste em que os dois varões sejam-lhes entregues para que possam ser abusados, ou seja, violados sexualmente. Daí o termo "sodomia", caracterizando sexo anal, que passou a estigmatizar esse tipo de ato, daí para a frente associado ao nome da cidade, "sodomia", substantivo, ou "sodomita", o que se dá à prática desse ato.

     Pois o que desejo destacar e usar como exemplo de mudança de abordagem no texto bíblico ou do uso franqueado do texto, aberto a qualquer interpretação que se queira dar, se espelha na comparação do que representa a visão com relação à cidade de Sodoma, que indicamos como portadora de uma abordagem que redunda numa postura prática no contexto da realidade atual, enquanto a expectativa em relação à outra cidade, a Nova Jerusalém, representaria uma abordagem muito além do mundo real prático, sob risco de uma visão opressora e não libertadora, exclusivista e não inclusivista, atente-se para a legenda de onde procede essa hermenêutica.

      Para tanto, destacam-se aspectos das duas cidades que, confrontados, podem ser avaliados por seu grau de relevância, quando abordados no contexto atual. Vamos alinhar de modo a permitir uma avaliação comparativa das duas cidades, para saber, deste modo, qual delas se revela mais realista e atualizada. 

       Em Sodoma, na direção dela Ló, o sobrinho de Abraão, constrói seu acampamento e estabelece suas tendas, quando o tio resolveu favoravelmente a ele o conflito entre os pastores de gado de um e de outro. O patriarca seguiu no rumo oposto. Cada qual fez sua escolha, porém na escolha de Ló, estava implícito o perigo que representava Sodoma para ele, sua família e seus pastores. 

     Se comparamos Sodoma, atualizando-a como modelo simbólico para cidades atuais, era a cidade desde as festas Rave, aos inocentes passeios nos shoppings e, adiante, quando anjos se apressaram a retirar Ló e o que havia restado de sua família, não era ambiente para eles: se foram, não tinham do que reclamar do assédio sofrido. Não era lugar para eles estarem e, se ali se meteram, apenas constataram o que ali era natural e corriqueiro. Entraram na casa dos outros para cobrar deles princípios éticos. Pois nada tinham a ver com isso. Se iriam reprovar seus modos, não lhes tinham que se meter na vida deles.

      Buscar Ló? Ora, as próprias Escrituras descrevem do que eram capazes suas filhas que, obviamente, tendo embebedado o próprio pai para, depois, manterem relações sexuais, uma e outra, com medo de não terem filhos, bem definiram o estilo de sua personalidade. Se houvesse tempo de se divulgar, em Sodoma, esse expediente das filhas de Ló, até os moradores da cidade expressariam, na sua opinião, caramba, dessa vez as meninas se excederam. 

      Exatamente nessa direção que se deseja caminhar, ou seja, para dentro de Sodoma, para se conhecer o que vem a partir dela, ou seja, o que se pode tirar de concreto e aplicável aos dias atuais, em oposição ao utópico, simbólico, exaurido, imagético e esvaziado de sentido de uma cidade onde, apenas o que se diz dela é que vai descer do céu e terá Deus habitando nela. 

    Há limites, evidentemente, para os escrúpulos de Sodoma, basta, como método, supor, no contexto dela, o disparate da atitude das meninas, filhas de Ló. Uma atitude dessas a sociedade atual ainda não aprova. Mas anjos que reclamam por sofrer assédio numa festa de vale tudo, o erro é deles, por se colocar fora de contexto.

     Uma releitura acertada dos textos bíblicos nos coloca dentro da perspetiva correta com que devem ser abordados, livrando-nos de interpretações equivocadas e francamente distorcidas, em relação à imagem atual com que tais textos devem ser compreendidos. Um resgate que se faz urgente e necessário, de modo a corrigir visões distorcidas e excludentes.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Necrópole - IX

      Efusivos cumprimentos na saída. Ainda no corredor central, dentro da igreja, as pessoas se acercavam de Raul, cumprimentavam, abraçavam, davam tapinhas no ombro e na cabecinha do menino: "Que lindo!", "Gente, que corajoso", etc, nos comentários.

    A mãe sorria amarelo, Rauana continuava séria e compenetrada nesses cumprimentos, "Parabéns, presbítero", o tio também era cumprimentado pelo acontecimento. Raul sempre sorrindo. Custou chegarem à porta de saída, ali o tio os abraçou, demonstrando sincera alegria, despedia-se e oferecia a igreja para o retorno deles.

     A menina, finalmente, deu um leve sorriso, a mãe, para o tio, sorriu com alegria sincera, acercaram-se do Fusca, aguardaram a manobra dos demais carros, o tio, sorridente, ajudou e ganharam a rua, de volta para casa. Silêncio no carro, naquele universo minúsculo e, naquele momento, densamente habitado.

     Filhos atrás, pais na frente e, como diziam os antigos, Raul, o pai, "caiu na besteira" de fazer um comentário: bonito, não é?! Em nenhuma outra situação, Laura diria qualquer coisa. Comedida. Não discutiam nunca na frente das crianças. Comentários dos dois eram entre os dois, nunca os filhos os viram trocar altercações.

      Bonito, Raul, bonito!? Bonito digo eu. Bonito, digo eu, ela repetia. Mas foi como num rompante, algo, assim, represado, que todos entenderam e estranharam na mãe. O pai continuou com a atenção no trânsito, muito embora a mãe já tivesse identificado uma sutil reação, o que já era o "passar recibo" e predispunha à liça.

      As crianças reagiram na hora, ela mesma entendeu que traíra a sua tradição de autocontrole, o menino cravando-lhe os olhos, a partir do banco de trás, a menina, séria, apenas tendo revirado os olhos, os quatro concordando com a reação inusitada. Silêncio. Não se sabia, diante da situação configurada, quem daria continuidade e qual seria, a partir de então, o enfoque da conversa.

     Raul, isso mesmo, o menino veio em socorro. Mãe, a gente foi sincero. Foi como num foguete, em direção ao espaço, ela se enterrando no banco da frente pelo empuxo do arranque. Silêncio. Ela se refazia. Não é, pai? Pronto. O menino democratizava, perigosamente, a questão, trazendo de novo a situação à baila.

      O pai assumiu. Foi sim, meu filho, espontâneo e sincero de nossa parte. A gente se empolgou. O que eu quero dizer, aqui a mãe retornou ao assunto, refeita, é que a atitude de vocês dois, dizendo pausada e gesticuladamente, entendeu, meu filho, implica, quer dizer, requer, procurava o vocabulário à altura do menino, compromisso.

     Vocês assumiram um compromisso com aquela atitude. Não é brincadeira. Vocês vão assumir? Mas ninguém achou que era brincadeira não, mãe: não é, pai? Ela interrompeu antes do marido falar. O que eu quero dizer, meu filho, é que assumir compromisso é ser dessa igreja, entendeu? Quando a gente toma essa atitude, as pessoas cobram da gente. Vocês têm de dar continuidade. E dar continuidade é entrar para essa igreja. 

      Pausa. O pai deu continuidade. Minha querida, veja bem, ele levava em conta que o menino ouvia e então dirigia-se, prioritariamente, a ele. Uma coisa é a gente entender aquilo que o meu tio falou, outra coisa é a gente firmar compromisso com a igreja. Eu acho... Ela ia interromper... Eu acho, ela recuou, que uma coisa é compromisso com Deus, não  é, meu filho, que foi o que a gente fez, outra é com a igreja.

      Aí é que está. Aí é que está, interferiu a esposa. Eu acho que as duas coisas estão juntas. Por isso eu estranhei a atitude de vocês. E Rauana percebeu. Ao mesmo tempo que incluía a menina na pugna, queria contar com a filha como aliada. Rauana continuou séria e calada. Uma coisa é vocês pensarem com vocês mesmos, entendeu, meu filho, falava, didática, olhando com meia volta para trás, outra coisa é o que as pessoas da igreja pensam.

      O que você acha, meu filho?  Por essa a mãe não esperava. Mas também, se recorrera à menina, o pai recorreu ao menino. A mãe revirou o olhar. Ia dizer, mas se segurou, porque não tinha como argumentar que essa pergunta era demais para o menino. O que pai? A mãe olhou com careta para o marido, como a dizer, você também, essa não é pergunta que se faça ao menino. Mas não disse.

     Meu filho, se a gente deve ficar na igreja. Eu gostei da igreja, pai. Para vir todo domingo, entendeu, seguir a crença. Peraí, pai. Agora foi Rauana que não se aguentou. Raul, a mãe acha que agora a gente tem de ficar indo naquela igreja, porque você e o pai foram lá, na frente, quando o tio do pai perguntou.

     Eu fui porque ele perguntou quem acreditava que Jesus pode fazer a pessoa filho de Deus. Eu entendi isso. Ele perguntou quem acreditava nisso. Eu acredito, então fui. E você, pai? Ora, meu filho dileto, às vezes, usava este adjetivo: eu acredito igual a você. Mas ficar ligado por compromisso à igreja, é outra opção, falou assim, ressaltando o vocábulo. É, pai. Eu também acho. Estavam, nessa altura dobrando a ladeira que ia dar na Escola Pública, já pertinho de casa.

domingo, 3 de janeiro de 2021

Necrópole - VIII

      O pessoal se reunia em conjunto, no templo, após a escolinha por classes. Era assim antigamente nas igrejas protestantes. Relatórios por classe, cada uma dizia um versículo, a de Raul recitou aquele "Porque Deus amou o mundo de tal maneira, que deu seu filho unigênito, para que todo aquele que nele crê, não pereça, mas tenha a vida eterna", Jo 3,16, todos da classe repetiram em coro.   

      Cantaram um hino, porque todas as demais classes já haviam falado seu versículo. As crianças menores se apresentaram. Falaram o seu versículo e também cantaram um corinho. Antigamente era assim. Aí, passaram a palavra ao presbítero Xavier, o tio de Raul, pai de Raul, para uma palavra final. Era um cara simpático, desses que parece que nunca param de rir.

      Boa dia. Agradeço a oportunidade. Belo domingo hoje. Quero destacar a presença de meu querido sobrinho e sua família. Falou sorrindo. A família olhou a lado e outro e, como Xavier estendesse a não, como num arco de amenidades, eles, meio assustados, entenderam que era para levantar. Todos sérios, menos Raul, o pai.

     Esse é Raul, filho de minha irmã Etiene. Alegria ter vocês hoje aqui. Podem se sentar. Muito grato. Meus amados, falou, sempre sorrindo, sempre fazemos essa palavra após o encerramento, que eu chamo, caro sobrinho, falou se dirigindo a Raul, sempre sorrindo, eu chamo "mais de 5 e menos de 10 min".

     E passou a se dirigir a todos. Hoje quero falar sobre a oportunidade de fé e de não fé. Há os que simplesmente dizem que Deus não existe, há quem até admite a possibilidade e há quem tenha confirmada no coração e na mente a fé em Deus. Pois bem, se fosse possível inventar deuses, como nas mitologias, até nas histórias em quadrinhos, cada um teria a chance de inventar de todo o tipo.

     Certa vez, em Atenas, Paulo encontrou uma praça cheia de altares dedicados a vários deuses. Era bem democrático, aqui ele riu: cada um poderia acreditar no deus que quisesse. Mas a Bíblia vem de encontro a essas duas concepções: de um lado, ela contesta a idolatria. Ela diz: não existem vários deuses. 

     E, por outro lado, ela revela um só Deus. Então, restam os que acreditam em muitos ou no deus que quiser e bem entender, ora, tem até esse direito, e os que creem no Deus único que a Bíblia revela. Porque nem vou mencionar os que dizem que existe um "Deus", sim, mas que não podemos saber. Ora, então não me interessa. Esse deus é inútil, com todo o respeito, aqui riu de novo, porque não tem nada comigo e eu não tenho nada com ele. 

     Resta, na minha opinião, o Deus da Bíblia, que tem tudo a ver comigo e quer que eu tenha com ele. Portanto, entre acreditar num montão de deuses ou em um que não se revela, fico com a história da Bíblia, de um Deus que é amor, que se fez homem na vida de seu filho, que morre, mas ressuscita para que também, se a gente crer nele, um dia, ressuscitar.

      Há alguém aqui hoje que deseja confirmar sua fé nesse Deus? O pai, Raul, imediatamente levantou a mão, Raul filho fez o mesmo, de imediato. A mãe empalideceu, de estalo, a menina olhou os dois, cabeça pendida à meia curva, a cada lado, olhando também a mãe, e continuou séria. O pai se levantou, sorrindo, com a mão à meia altura. A mãe, levou a mão direita à fronte, apoiando-a nos dedos, reclinada para a frente, no típico sinal de "que mico!".
      
      O menino, ao ver o gesto do pai, imediatamente imitou, mas não chegou a completar o alevantar a mão, entendendo ser desnecessário. A irmã olhou o gesto dos dois, olhou o gesto da mãe e ficou na dela. Séria, no entanto. O tio Xavier, como sempre, recebeu os dois sorrindo, e dizendo, olhem, gente: meu sobrinho Raul e seu filho de mesmo nome. 

     Os dois formaram na frente, Raul pai sorrindo, parecido com o tio, Raul, o filho, compenetrado, com o queixo mais perto do peito, olhava para todos e o tio se pôs entre os dois, mãos em desnível no ombro dos dois e se pôs a orar. 

     Mais alguém vai atender a esse apelo, imitando o gesto dos dois, disse, olhando o sobrinho ao lado, que respondeu o sorriso com um sorriso, e olhando abaixo, onde Raul estava, a sua esquerda, que se manteve olhando o povo. Nesse momento, Rauana olhou a mãe, esta, sutilmente, desenhou leve contrariedade, com o friso lateral dos lábios, e acompanhou, embora de pé, com cabeça baixa, a oração do tio do esposo. 
      

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Necrópole - VII

     Acordaram domingo mais cedo. Tomaram o café de sempre, porém mais apressados, porque ele detestava atrasos. Iam de carro mesmo. Fusca da família. Ganhariam o rumo contrário, porque era para dentro, para o subúrbio que ficava a igreja.

     Descer a ladeira mansa e dobrar à direita, lá embaixo, era ir para o centro da cidade. Subir a caminho da vedinha de seu Carlos, dobrar à direita e depois à esquerda, bem defronte da Escola Pública Ágata da Fonseca, e descer outro ladeirão, esse mais íngreme e, lá embaixo dobrar à esquerda, era ganhar o rumo do subúrbio.

     Chegaram. O tio esperava sorrindo na calçada. Havia pequeno estacionamento no pátio da frente. Ajustaram o Fusca ali do lado dos outros carros. Não eram muitos. O tio esperava. A esposa dele, uma das filhas, que logo se enturmou com Rauana, todos sorridentes. Venha Raul, para levar o garoto também para a classe dele. Era uma escolinha de classes por idade. Vai, meu filho. 

     Havia uns seis a sete meninos e meninas. Raul chegou assuntando. Era uma professora. Olhem, gente, temos um visitante. Raul sério. Como é seu nome? Raul. Seguiu sério. O que vamos dizer para ele? Disseram. Era um versinho dizendo bem-vindo. Ela apresentou nome por nome ao menino. Ele é sobrinho, quer dizer o pai dele é sobrinho, a professora repetia, do seu Xavier, quer dizer, presbítero Xavier.

     Raul sério. Cantaram. Oraram e começaram a lição. A professora iniciou, era falar do nascimento de Jesus, o filho de Deus, ela disse. Como assim, Raul perguntou. Todos os olhos se voltaram para ele. Sabe-se lá que teologia perpassou a cabeça do menino, que lampejo de Deus foi resquício nele da conversa do picolé. Como assim?

    A professora também não sabia o que se passava, mas era sua especialidade reconhecer quando chegava ali alguém não previamente doutrinado. É que Jesus é o filho de Deus. Raul fixava os olhos nela que, com um insight, resolveu usar o método indutivo e perguntou o que ele sabia da história de Jesus?

    Nada, respondeu Raul. Meu pai me falou de Deus. Ah, bem, respondeu. Pois Jesus é filho dele. Esperou. Raul manteve os olhos fixos nela. Continuou. Porque Deus nos ama e, para nos salvar, ele enviou o seu próprio filho para morrer na cruz e nos salvar dos nossos pecados. 

    Para Raul, a ideia de pai que tinha era bastante nítida, portanto imaginou seu pai e o amor que tinha pelo filho, quer dizer, no caso ele mesmo. Mandar o filho, ele pensou seu pai o mandando morrer numa cruz. Lembrou dos crucifixos da vida, um que via na escola, na sala da Diretoria. Logo associou a imagem à história. 

     Mas como, interrompendo a professora, um pai manda seu filho morrer? A turma ia de olhos para olhos, mirando Rual e a jovem professora. Ela arregalou olhos. Acho que num instante deduziu que a relação do menino com a família era estável. Bem acolhido. Raul, foi um caso diferente, especial. Deus é Pai para nós todos. 

      Porque nos ama. Mas para isso, Jesus precisava morrer por nós, porque os nossos pecados nos afastam de Deus. Para ele ser o nosso pai, tinha de enviar seu filho para ser o nossos salvador. Pois quem acredita, ela quis dizer "acredita" no lugar de "quem crê", em Jesus, Deus também torna essa pessoa seu filho também. 

      Ficou na expectativa, avaliando a reação do menino. Ele se demorou calado, olhando para ela. Ela havia deduzido que, no caso dele, a grande sacada era explorar a relação pai-filho. Por isso esperava uma compreensão do menino nessa direção. 

    Então, é para todos terem Deus como pai? Sim, Raul. Como é entre você e teu pai, pode ser entre Deus e quem quiser ser filho dele. Mas, para isso, precisa acreditar, crer, ter fé em Jesus. Pausa. O garoto mantinha os olhos fitos nela. Você entendeu? Ele fez com a cabeça que sim.

Necrópole - VI

    Foi falar com o menino. Não foi no cemitério. O tempo urgia, eles iam na igreja do tio, resolveu prevenir o menino. Vamos tomar um sorvete. A mãe, dobrando a roupa lavada, ohou de solaio e adivinhou. A menina estava em casa de colegas. 

     A rua ainda era de paralelepípedos, daqueles antigos, um tijolo de granito. Sobravam pedras pelas redondezas da cidade. Entre morros e à beira mar. Era uma lenta ladeira. Subiram mais um pouco, fizeram uma curva e deram com uma portinha camuflada numa parede contínua de uma casa. Seu Carlos. 

     Antigo no bairro. Ele mesmo comprava sorvetes ali quando garoto. E aí, seu Raul, tudo bem? E você, Raulzinho, legal? Vamos de sorvete? O de sempre? D. Laura, vai bem? E a Rauana? Leva para elas também. A gente vai levar. Mas é que vamos ali e, na volta, a gente paga e pega mais. Não tem de quê. Vão na pracinha? Na pracinha. Legal. 

      Coco para o pai, chocolate para o menino. Foram caminhando, pai e filho, chupando sorvete. Chegaram à praça, enquanto terminavam, viram as crianças, os cachorros, d. Amélia com a netinha Andressa recém-nascida, deram um aceno para ela, acabou o sorvete do pai, e ele perguntou. Filho, eu nunca te falei de Deus?

     O menino respondeu com o sorvete na boca, beiços ao estilo, balançando a cabeça pros dois lados. Cara, que furo. É que eu me distraí. O pai fez um gesto abrangente com as mãos, o menino retirou e colocou de novo o picolé na boca, o pai viu o gesto e moveu os ohos na órbita à volta, sentindo que precisava falar.  O menino estava esperando. Resolveu por uma abordagem narrativo-histórica. 

      Seu avô era muito prático. Também não vivia falando sobre Deus, assim, como eu nunca te falei. Seu avô achava que, aqui fez uma pausa, para escolher as palavras, bem, que Deus é assim, meio intuitivo. O menino tirou o picolé, mirou o pai, que viu nos olhos do menino uma suposta leitura do que ele processava, o menino demorou, esperando a continuação da conversa.

     Como olhou para o picolé, à meia distância, na mão, tendo pingado no chão, voltou-o à boca, beiços ao estilo, arregalando os olhos para o pai.

    Ele entendeu que tinha de continuar, afinal o assunto era solene, ele já havia envolvido o avô na conversa e, por isso, não poderia agora titubear, pois era a reputação dos nomes e da família que estava em jogo, pela capacidade de suprir uma questão assim, como dizer, tão metafísica.

     Tinha de falar. Não podia esperar muito. Ia pagar mico com o menino. Pois é. Papai, que era o avô do menino, ele continuou, papai não me falou muito sobre Deus. Ele achava meio natural, entendeu meu filho, meio intuitivo saber sobre Deus. Para ele, era simples, olhar à volta, assim, como se fosse uma teologia natural. 

     O menino mantendo o picolé na boca balançava a cabeça que sim e mantinha atentos e arregalados os olhos. Entendeu, meu filho? Era protocolar. Porque o menino não ia dizer que não entendia, da parte do avô, pela narrativa do pai, a fé numa tal "teologia natural".

    O pai chegou em casa dando à mãe o relatório da conversa. Ela olhou com descrédito. Ele fingiu que não viu. Depois perguntou ao menino sobre a conversa. Ele confirmou. Falou sim, mãe. Mas ela não perguntou mais nada. Não queria atrapalhar a cabeça do garoto. Achou que estavam prontos para conhecer a igreja do tio. 

Necrópole - V

      Raul, o filho, nunca esqueceu esse dia. Porque olhou para o pai como se não entendesse que faltava ter falado sobre Deus. Claro que o menino havia ouvido falar fora de casa. Mas nunca da boca do pai. E a mãe achava que isso era assunto de pai. O menino perguntou sobre Deus. Foi? Claro. Quando eu disse que domingo vamos à igreja. Por que você nunca conversou com ele sobre isso?

     Ué, por que você não conversou? Porque é assunto de pai. Ele riu. Ela fez cara de mau humor. Ele ria ainda mais. Toda conversa é para pai e mãe, só varia a abordagem. Não sei nada de Deus. É intuitivo, mulher. Intuitivo, ela perguntava com espanto? Eu não acho. Aí ele ficou sério. Rauana já tinha me falado que, um dia, ele perguntou. Por que nessas idas tuas ao cemitério, você não aborda esse assunto? Ara, falar de Deus em cemitério, Laura?

      Definitivamente, eu não te entendo. Você traz para dentro de casa esse assunto estranho de visita a esse lugar lúgubre. Quando ela usou esse termo, ele arregalou os olhos. Então, vai me dizer que lá não é lugar para falar de Deus? Ora, Raul, falar de Deus eu acho que qualquer lugar serve. Sim, o que você disse a Rauana? Ora, que ela falasse com ele para te perguntar.

      Rauana, que que é Deus? Ela olhou para o irmão. Ora, Raul, dizem que Deus fez tudo o que existe. Mas como assim? Ora, Raul, pergunta pro pai. O próprio pai não soube, até a conversa com a mulher, porque o menino não teve curiosidade de perguntar.

Jornada Teológico-Natalina 5 - Final

    Uma leitura honesta e competente da Bíblia, sim, ela mesma, também conhecida como Escrituras do Antigo e Novo Testamentos, escritos da tradição judaico-cristã, se assim você preferir identificar, como eu dizia, uma leitura honesta e competente dela vai revelar sua (dela) identidade (e claro, a sua própria, quer dizer, a identidade de quem lê). Para isso ela foi escrita.

     Então, começamos por reafirmar a personalidade da Bíblia. Ela não foi escrita ao gosto do freguês. Sim, vários são os gêneros literários, há, sim, linguagem figurada e simbólica, sem dúvida, mas também há linguagem literal, social, histórica, doutrinária, religiosa, enfim, como já dissemos, uma leitura criteriosa e responsável será muito produtiva. 

      Pois aqui, neste texto, vamos exatamente nos valer da narrativa primordial da criação para reafirmar um princípio bíblico, que o Livro tem o direito de estabelecer, como qualquer outra tradição escrita o tem (aliás, até tradições orais têm esse direito), independentemente, como já discutimos em textos anteriores, de sua procedência ou origem. Qual seria a personalidade desse texto? 

      Foi diretamente inspirado por Deus? Seu autor é Moisés? Quem escreveu foi um escriba ou redator anônimo? Foi tradicionado oralmente? Em que época foi fixado por escrito? Que graus de credibilidade e respostas têm essas questões aqui levantadas? Enfim, seja que conclusão se tenha a respeito da origem do texto do Gênesis, para a determinação da afirmação de que consta como "palavra de Deus", o que vale, para este texto aqui escrito é sua abordagem como texto que confere personalidade à Bíblia, ao Antigo Testamento e assim será aqui abordado. 

      No Gênesis está escrito que Deus criou homem e mulher a sua imagem e semelhança. "Homem e mulher os criou, a sua imagem os criou". Literalmente está escrito como segue: "Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou". 

      O que isso significa? Que para a autoria da Bíblia, seja ela quanto incerta se desejar supor, ela admite, de modo intuitivo, se ainda assim se deseja supor, que Deus criou homem e mulher, que os abençoou para que se multiplicassem e enchessem a terra. 

      "E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra". Gênesis 1,28.    

      Do texto acima vamos destacar, em duas etapas, a questão do "ser fecundo e se multiplicar", para um comentário maior, e a do "dominar" sobre a criação, apenas como alusão. Para dizer aqui que a concepção do texto bíblico, sua cosmovisão intui que a questão de ser macho e fêmea, também aplicado ao ser humano, é para tornar possível a procriação, expansão e manutenção da espécie humana. 

      E consideramos legítimo que se derive desta afirmação bíblica sendo desse modo considerado, para uma parcela da população ou da sociedade, que assim deseja, para modelo próprio seu de conduta e propaganda, considerar casamento a união entre homem e mulher, sendo família os filhos nascidos dessa relação. É legítimo que assim entendam e que assim pratiquem e ainda que assim definam por seu modelo e ideologia. 

    O texto seguinte a ser mencionado, além de frisar a união entre homem e mulher, acrescenta um dado sobre uma característica exclusiva dessa união. "E disse o homem: Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne; chamar-se-á varoa, porquanto do varão foi tomada. Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne". Gênesis 2, 23 e 24.

     O texto, como já havia sido indicado na citação anterior, que estabelece homem e mulher equiparados, numa relação equivalente com Deus, ambos de si mesmos criados à imagem e semelhança de Deus, aqui se unem, numa complementaridade natural, tornando-se "uma só carne".

       A reunião desses dois textos, alusivos à criação do homem e da mulher, circunscritos à economia da narrativa da criação, no Gênesis, nome da tradição grega, ou Bereshit, se for mencionada a Torah hebraica, indicam: 1. Casamento monogâmico entre homem e mulher; 2. Os filhos da relação constituem-se em família; 3. A relação pretende-se indissolúvel, pela indicação da fusão numa só carne.

      Evidentemente, e a própria narrativa indica isso, estamos falando de condições ideais. Ou seja, a própria narrativa admite esses pressupostos como propósito ideal do Criador para as suas criaturas. Porque a própria narrativa, em sua continuidade, aponta para um situação a partir da qual homem e mulher se tornam incapazes de atingir o modelo ideal proposto pelo Criador para as suas criaturas. 

     Portanto, o modelo original, além de não ser mais naturalmente atingido pelo homem e mulher criados, não se torna, tal modelo, imposto a eles pelo Criador, exatamente porque, ainda que fosse imposto, seria inatingível. Mas o modelo perdura como opção a ser alcançada, assim como perdura como o ideal original anteriormente proposto. 

     Portanto, as Escrituras, em sua identidade e proposta original afirmam que Deus existe e criou homem e mulher à Sua própria imagem e semelhança, abençoando-os e propondo para eles que se unissem e procriassem, a fim de povoar a terra, estabelecendo que sua união os tornassem um só, de modo que fosse indissolúvel.

     Portanto, união entre homem e mulher, segundo está proposto pelas Escrituras, não é aleatória e simplesmente intuitiva, biológica ou animal somente, mas está inserida num contexto de bênção intencionalmente proposta por Deus, em que homem e mulher, criados à imagem e semelhança de Deus e no contexto de uma relação entre si e com Deus, propõe povoar a terra e dela cuidar como seu lar definitivo, para si e para toda a humanidade.  

      Para ser Escrituras, para ser o Deus das Escrituras e para ser homem e mulher segundo as Escrituras essa é a proposta para o casal original e, em decorrência, para todos os demais casais e para toda a humanidade. Mas a continuidade da narrativa da própria história das Escrituras aponta para um decaimento da condição humana, em sua relação com Deus, de modo a que o padrão estabelecido não ocorra. 

     Pode-se, então, dizer-se ou fazer o que se quiser, uma vez que se diga que Deus não existe. Ou que homem e mulher, consequentemente, nunca foram criados, específica, peculiar e obviamente, porque deus não existe, à sua imagem e semelhança. E que o modelo proposto de união entre as criaturas não criadas, assim como a sexualidade dele decorrente, não terá nenhum padrão específico original, mas será aleatório, segundo concepções diversas estabelecidas por quaisquer ideologias, com escolhas, definições e terminologias próprias. 

     Uma vez removida ou desacreditada toda a história do Gênesis, nas Escrituras, tomada ao inverso a narrativa bíblica, a ela agregada, nela posta ou dela deduzidos quaisquer outros modelos que, por exemplo, invertam para um deus criado à imagem e semelhança da criatura, numa inversão que a própria Escritura de antemão já prevê, assim como proposto para homem e mulher outros modelos de união, assim como para a sexualidade outras modalidades de abordagem, que não seja somente o conjunto de características da sexualidade masculina constituído para complementaridade ao conjunto de características da sexualidade feminina e vice-versa, não haverá qualquer impedimento para isso, a não ser a notação de que as Escrituras, assim ou por qualquer outro modo concebidas, terão sido violadas.

      Ninguém é obrigado a concordar com esses modelos da tradição escriturísitica judaico-cristã. Mas também ninguém é proibido de dizer que acata e aplica a sua vida esse modelo. O que está valendo é que, quem aceita o modelo judaico-cristão das Escrituras, cuide da sua própria vida, e considere problema alheio quem não concorda em assumir essa mesma concepção.
     
     E não interessa quantas outras concepções surgirem, que ideologias as sustentem, questões terminológicas, científico-epistemológicas, enfim, cada um cuide da concepção que decidir assumir, sem importunar ou criticar o outro e, principalmente, sem trabalhar por desconstruir a concepção alheia. A segurança em admitir a sua pessoal e intransferível concepção a respeito da sexualidade deve se configurar de tal forma que não seja necessário desconstituir a do outro para, só então, confirmar a sua própria. 

     E quanto à propaganda e ao alarde de qualquer das concepções, na luta pelo direito das reafirmações, em defesa do diverso, que se respeitem esses direitos acima mencionados. Quem não segue o modelo homem/mulher criados à imagem e semelhança de Deus, abençoados pelo Criador na união indissolúvel que proporciona a procriação e o prazer sexual exclusivo entre os dois, nessa configuração restrita e exclusiva de sexualidade, bem está, os que aceitam e tentam praticar esse modelo, vivam em paz em sua concepção, cuidem de suas vidas, deixem os outros em paz também e, caso queiram fazer sua propaganda desse modelo, sem impô-lo aos outros ou declará-lo o único possível ou certo, têm esse direito, com essas ressalvas aqui estipuladas.

     Os que vão seguir outro(s) modelo(s), diverso(s) deste especificado nas Escrituras da tradição judaico-cristã, que o façam com todo o alarde, coragem e personalidade, sem achar que, para reafirmar o seu modelo, precisam desconstruir ou acusar quem não o admite, acolhe ou pratica de retrógrado, anacrônico ou politicamente-incorreto. Tantas quantas forem as variações possíveis fora do padrão delineado nas referidas Escrituras da referida tradição judaico-cristã, porque tais Escrituras, a elas se reserva o direito de estabelecer um padrão, ninguém está obrigado a se comprometer nem com ela e nem com ele. Mas também não pense em adquirir, impropriamente, qualquer direito de lhe enxovalhar, desmerecer ou inverter a seu favor os rumos da narrativa ali exposta. 

     Ressalvado o direito de lhe negar autenticidade, como negar que o Deus que ela indica exista, não passando de (mais um) deus e o modelo ali discorrido esteja absolutamente equivocado. Mas lembrando que o fato de assim entender nunca vai privar o direito dos que entendem como está escrito e de sua escolha em aplicar a sua vida como está escrito.