quarta-feira, 3 de abril de 2019

Henry Bacon, nosso professor.

1o de abril

     Dia de verdade. Da verdade. Um amigo me avisou da morte de um velho professor.  O que eles representam em nossa vida?

    Como esse mundo é pequeno. Mas como eu ia saber que meu professor foi paraquedista. Que pulou sobre a Normandia em 1944, no esforço para encurralar o nazismo por uma nova e definitiva frente na Europa. Operação Overlord, 6 de junho, Dia D, Normandia.

     Um sobrevivente. Tinha alta estatura. Mãos enormes. Sotaque britânico. Nome de fast food. Henry Bacon. Lecionou Novo Testamento para o pessoal de minha geração. E várias outras disciplinas: sobravam competência e compromisso. No nosso caso, fomos alunos entre 1978-1981.

      Tomei alguns chás com a família, exceto a filha mais velha, que residia na terra natal de todos. Charles, o mais velho aqui no Brasil e o mais sagaz no cáustico humor britânico pouco esteve nos cafés.

      Na verdade, era sem café. Eu acahava notável que um pequenino recipiente contivesse tanto leite que atendesse a toda a família, no mínimo quatro, com mais os sempre famintos seminaristas e ainda outros três ou quatro irmãos da igreja.

    Mas se multiplicava. Porque, eu desconhecia tanto esse expediente, quanto o efeito: colocava-se, primeiro, chá, assim, pouco (ou muito, quer dizer) acima do meio. Para só então juntar-se o leite pois, para a quantidade de chá, o leite seria bastante. Definitivamente, o café com chá fundiu as duas culturas. 

     Descobri, ali na fronteira entre Neves e São Gonçalo, essa mistura. O mano Charles (leia-se Charles, ouça-se /chahrlz/, ouviram?), como dizia d. Beth Bacon, a esposa. Diferente de Jorge Benjor, que diria: Oba, oba, oba, Charles: cumequié, maifrendi Charles. Como vão as coisas, Charles?".

       Segura esse tranco. A dor é intensa. Já passei por ela. Aliás, pela roda do tempo, muitos alunos de teu pai atravessaram esse vale. Os Bacon foram presenteados com a longevidade. É há tanto tempo não nos vemos, my friend, que a família deve ter aumentado à beça. Diga aos netos que esse avô fez muitos fãs neste país.

       Ora, o Charles. No natal de 1980 não esqueço. Na igreja programaram uma peça de Natal, parte monólogo, parte pantomima, eu o protagonista. Desandou. Chahrlz entrou, de improvido, para transformar tudo em comédia. Não podia ouvir nada que não transformasse em motivo de moça. Bem, sobre o esquecimento do sabonete, na casa de Lidia, vamos calar: quem viveu, viu...

      Para falar do pai, que se foi aos 98, neste dia de verdade, tive que dar essa incerta, só para dizer que experimentei um tanto a mais de sua convivência. Devo isso ao Largo do Barradas, onde foram membros, e a Martineis Anjo Gonçalves, que me chamou, nesse ano, para ali estagiar.

      Bacon estudou literatura brasileira. E, como costume, comentava nossas provas, nome a nome, equívoco a equívoco de língua portuguesa, ora vejam só, cometidos por nós. Era um refinamento. E não adiantava rir do outro: a sua vez ia chegar. E ficava danado, desculpem o terno, quando alguém respondesse as três questões da tirinha de prova, das quais pedia que escolhêssemos "duas e somente duas". Eponina que o diga... Ó, Ephoninah, dizia em seu sotaque.

       "Ó, Cleriir", desculpem a tentativa, impossível escrever a pronúncia com sotaque britânico usada para chamar esse cínico colega que resolveu deixar a sala, saindo com a prova, ganhando os corredores do 2o andar do anexo da Fluminense. Bacon brandiu seu mãozão e partiu em direção ao corredor.

     Jeito característico, Cleir ajustou óculos, mirou assustado o professor, como se fosse muito natural evadir-se de sala, com prova nas mãos, sem nada avisar. Para o britânico, deve ter pensado, "virou Brasil"'.

       Muito engraçado Cleir querer explicar, justificando-se, que ia à biblioteca, que ficava na sala contígua. E Bacon, agora brandindo os dois braços, ainda atrás da lógica, por gestos, justiça e sotaque britânico "Ó, Clérir"...

      Vá, PQD britânico. Herói de guerra. Professor dos já sessentões. Somos gratos, muito gratos, sim, veio da velha Ilha, do cansado Império, pelo recente stress do Brexit, você combateu o bom combate e venceu.

     Saudade de suas aulas, seus comentários de provas, de sua sutil ironia, literalmente, britânica. Ficam marcas e exemplo de um tempo inédito. Eu, já meio envelhecido, não posso mais, com segurança, afirmar isto, sem que notem, intrínseca à afirmativa, certa nostalgia.

      Desculpem, professor, que se danem, pois vou dizer, com todas as letras. Times goes on. But professors like you we don't find anymore. Forgive my poor english.

        Carregue sua medalha no peito. Aposto que tem uma que nenhum de nós tem, essa da Normandia, de há quase 75 anos atrás. Mas temos outra, definitiva, em comum: a marca de Cristo que carregamos.

     No Brasil e em nossas vidas, você, professor Bacon, não caiu de paraquedas, não por ordem de nenhum comando humano, mas por chamado divino. Ali no anexo da Alexandre Mackenzie 60, centro do Rio de Janeiro, e no internato da Pedra de Guaratiba, ensinou-nos a ser pastores.

      Ouvimos ainda sua voz, de sotaque britânico, suavisando o /p/ latino com a inflexão bretã: "Louvamos-the, ó Phai". Ecoa em nossos ouvidos, sim, louvamos-te, ó, Pai pela família Bacon, de missionários. Todos juntos.

      Como é diferente a cultura milenar que vem da ilha, para a centenária dos trópicos! Mas eles abrasileiraram-se. Até o Chahrlz se tornou um gozador,  deixando meio de lado a ironia alglo-saxã.

      Pontualmente, um chá anglo-tupiniquim vamos tomar juntos, pode ser antes ou depois da ceia servida pelo Cordeiro. Juntos, relembrando outras histórias. Ainda ecoa a voz de sua oração, com sotaque: Louvamos-the, ó,  Phai. Louvamos-te, ó Pai.

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