Foi falar com o menino. Não foi no cemitério. O tempo urgia, eles iam na igreja do tio, resolveu prevenir o menino. Vamos tomar um sorvete. A mãe, dobrando a roupa lavada, ohou de solaio e adivinhou. A menina estava em casa de colegas.
A rua ainda era de paralelepípedos, daqueles antigos, um tijolo de granito. Sobravam pedras pelas redondezas da cidade. Entre morros e à beira mar. Era uma lenta ladeira. Subiram mais um pouco, fizeram uma curva e deram com uma portinha camuflada numa parede contínua de uma casa. Seu Carlos.
Antigo no bairro. Ele mesmo comprava sorvetes ali quando garoto. E aí, seu Raul, tudo bem? E você, Raulzinho, legal? Vamos de sorvete? O de sempre? D. Laura, vai bem? E a Rauana? Leva para elas também. A gente vai levar. Mas é que vamos ali e, na volta, a gente paga e pega mais. Não tem de quê. Vão na pracinha? Na pracinha. Legal.
Coco para o pai, chocolate para o menino. Foram caminhando, pai e filho, chupando sorvete. Chegaram à praça, enquanto terminavam, viram as crianças, os cachorros, d. Amélia com a netinha Andressa recém-nascida, deram um aceno para ela, acabou o sorvete do pai, e ele perguntou. Filho, eu nunca te falei de Deus?
O menino respondeu com o sorvete na boca, beiços ao estilo, balançando a cabeça pros dois lados. Cara, que furo. É que eu me distraí. O pai fez um gesto abrangente com as mãos, o menino retirou e colocou de novo o picolé na boca, o pai viu o gesto e moveu os ohos na órbita à volta, sentindo que precisava falar. O menino estava esperando. Resolveu por uma abordagem narrativo-histórica.
Seu avô era muito prático. Também não vivia falando sobre Deus, assim, como eu nunca te falei. Seu avô achava que, aqui fez uma pausa, para escolher as palavras, bem, que Deus é assim, meio intuitivo. O menino tirou o picolé, mirou o pai, que viu nos olhos do menino uma suposta leitura do que ele processava, o menino demorou, esperando a continuação da conversa.
Como olhou para o picolé, à meia distância, na mão, tendo pingado no chão, voltou-o à boca, beiços ao estilo, arregalando os olhos para o pai.
Ele entendeu que tinha de continuar, afinal o assunto era solene, ele já havia envolvido o avô na conversa e, por isso, não poderia agora titubear, pois era a reputação dos nomes e da família que estava em jogo, pela capacidade de suprir uma questão assim, como dizer, tão metafísica.
Tinha de falar. Não podia esperar muito. Ia pagar mico com o menino. Pois é. Papai, que era o avô do menino, ele continuou, papai não me falou muito sobre Deus. Ele achava meio natural, entendeu meu filho, meio intuitivo saber sobre Deus. Para ele, era simples, olhar à volta, assim, como se fosse uma teologia natural.
O menino mantendo o picolé na boca balançava a cabeça que sim e mantinha atentos e arregalados os olhos. Entendeu, meu filho? Era protocolar. Porque o menino não ia dizer que não entendia, da parte do avô, pela narrativa do pai, a fé numa tal "teologia natural".
O pai chegou em casa dando à mãe o relatório da conversa. Ela olhou com descrédito. Ele fingiu que não viu. Depois perguntou ao menino sobre a conversa. Ele confirmou. Falou sim, mãe. Mas ela não perguntou mais nada. Não queria atrapalhar a cabeça do garoto. Achou que estavam prontos para conhecer a igreja do tio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário