sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Evangelho/Evangélico

     Introdução 


     Nomes enxovalhados. O que fazer para resgatar sua verdadeira ênfase? Pedro, mais maduro e consciente, diz em sua segunda carta: "Antes, santificai ao Senhor Deus em vossos corações; e estai sempre preparados para responder com mansidão e temor a qualquer que vos pedir a razão da esperança que há em vós".1 Pedro 3:15.

     Certamente, outro Pedro, diferente daquele do incidente com João quando, convidado por ele a entrar no pretório romano, desembocou na negação de Jesus. Fase que ilustra bem o que pode ocorrer conosco, intimidados ou envergonhados do evangelho. Paulo nos socorre, indicando o antídoto e, ao mesmo tempo, a identidade: "Porque não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, e também do grego. Porque nele se descobre a justiça de Deus de fé em fé, como está escrito: Mas o justo viverá pela fé". Romanos 1:16,17

     Questões:

1. O que é, afinal, em dimensões exatas, "evangelho/evangélico"?

2. A compreensão é estática ou dinâmica, ou seja, estagnada ou renova-se?

3. Que fontes seguras me indicam as repostas?

      Respondendo desta última questão para as anteriores, temos 4 fontes denominadas "Evangelho", um gênero literário inédito do Novo Testamento. Cada uma, por si, fornece uma pista definida que responde a principal questão:

1. Evangelho de Marcos: inicia-se dum modo típico e preciso, citando suas fontes, na Bíblia de seu tempo, na profecia de Isaías: "Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus; Como está escrito nos profetas: Eis que eu envio o meu anjo ante a tua face, o qual preparará o teu caminho diante de ti. Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, Endireitai as suas veredas". Marcos 1:1-3.

    A palavra "princípio", para Marcos, a um só tempo significa a) "ponto de partida", assim como b) "fundamento". Depois aponta para uma personagem excêntrica, João Batista, sacerdote fora de função, profeta anacrônico e o mais anti-social dos precursores de Jesus.

     Mas representa, homem "maniento" que foi, a) advertência para o arrependimento e b) promotor antecipado do batismo, daí seu apelido "batista", do símbolo distintivo de autenticidade do evangelho.

      Jesus enaltece João, assim como este enaltece Jesus: "E eu vos digo que, entre os nascidos de mulheres, não há maior profeta do que João o Batista; mas o menor no reino de Deus é maior do que ele". Lucas 7:28; assim como João dignifica Jesus, dizendo "Este é aquele que vem após mim, que é antes de mim, do qual eu não sou digno de desatar a correia da alparca". João 1:27.

      Por falar em princípio, há eco nas palavras de Marcos, quando da decisão de Jesus, logo após a prisão do Batista, seguir para a Galileia anunciando, pela primeira vez, a mensagem do evangelho, indicando o contexto preciso de sua urgência e cumprimento: "E, depois que João foi entregue à prisão, veio Jesus para a Galiléia, pregando o evangelho do reino de Deus, E dizendo: O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo. Arrependei-vos, e crede no evangelho". Marcos 1:14,15.

     Esta fala de Jesus introduz o evangelho, contextualizando sua mensagem, assim como indicando a circunstância pela qual é incorporado à experiência humana:

1. "tempo cumprido" significa definição profética precisa, bem como última chance; 2. "reino de Deus próximo", os dois aspectos desse reino, o "já" e o "ainda não"; 3. e o arrependimento e a fé são os dois fundamentos sem os quais a autenticidade do assumir o evangelho como profissão individual de fé não ocorre.

      Marcos indica princípio e fundamento, contexto e as duas alavancas sem as quais ninguém incorpora o evangelho autêntico a sua própria experiência.

2. Evangelho de Mateus: começa por uma genealogia. Porém, Mateus foge do padrão delas e, no contexto purista farisaico de sua espoca, tiraria nota zero. Além de incluir, de modo inusitado, nome de mulheres, não escolhe aquelas de pedigree judaico definitivamente comprovado, mas mulheres goyim, quer dizer, estrangeiras, como a samaritana era considerada, o que, no mínimo, constituía-se numa provocação da parte dele. 

     Se das três, a única que não teve conduta duvidosa foi Rute, o fato de ser moabita, povo originário de uma relação incestuosa das filhas de Ló com ele, e chapados por Israel como malditos, já desabonava de uma vez, inviabilizando uma suposta inclusão nessa lista. Definitivamente, esse tal Mateus era um subversivo, no sentido lato da palavra. 

     Tamar, que entra na descendência porque foi mãe dos gêmeos nascidos do patriarca Judá, posou de prostituta, numa artimanha para enquadrar o pai dos meninos, que não a concedeu, nora legítima que era dele, ao filho caçula, cumprindo a lei do levirato.

    Desses detalhes sórdidos os "puristas das genealogias", nessa hora, não lembravam. Assim como, levianamente, não identificavam a legítima conversão de Raabe à fé do Deus Altíssimo únicos, ela com sua família, sobreviventes ao cerco de Jericó. 

    Essas três mulheres entram na genealogia, porque Mateus enfoca o termo na sua ampla acepção: "gene", genética; "logia", estudo exaustivo. O povo judeu não era o melhor, como o próprio Moisés explicou em seu discurso, no Deuteronômio, mas o privilégio (e a responsabilidade) dele é a que Paulo expressa aos Romanos nos capítulos 10 e 11: sacerdócio universal de aproximação de todas as nações com Deus, condicionado a que: 
    
     "Vós tendes visto o que fiz aos egípcios, como vos levei sobre asas de águias, e vos trouxe a mim; Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, então sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos, porque toda a terra é minha. E vós me sereis um reino sacerdotal e o povo santo". Ex 19,4-6.

     O gene de Jesus é humano, sua identidade judaica está associada ao privilégio do sacerdócio que Deus concede a esse povo, porém o sacerdócio dele não procede da linhagem levítica, como certamente questionariam seus próprios patrícios. 

      Mas provém direito de Deus, no estilo Melquisedeque, rei de justiça, homem sem nenhum ascendente judaico ou abraâmico. Mateus já anuncia que o evangelho tem, sim, um salvador judeu, como Jesus disse à samaritana, mas tomado de entre os homens, condição que iguala os goy e os goyim, sejam judeus ou gentios, na mesma carência de salvação. 

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