terça-feira, 13 de novembro de 2018

Crônicas de uma vida XIV - Didática de Dorcas

          Rapaz, há brincadeiras que a memória faz com a gente que, nessas horas, eu me arrependo de não ter guardado mais retalhos do passado ou mesmo ter escrito um diário.

      Desse meu primeiro Jardim de Infância, no Clube dos Suboficiais e Sargentos da Aeronáutica, ali na Ernani Cardoso, bem em frente à entrada da Mendes de Aguiar, tenho na memória pelo menos uma cena da professora e meus colegas, da qual e dos quais não lembro nenhum nome.

       Aquelas mesinhas antigas, com quatro cadeirinhas, e aquela professorinha amável, -inha até no tamanho, cabelinho curtinho, cortadinho rente aos ombros, tudo -inho nessa época.

      Acho que Dorcas já havia começado seu curso normal no Sto Ângelo, em Nilópolis, por sinal, encontrei seu convite de formatura. A turma convidou o Rev. Theodoro José dos Santos para pregar na formatura. Na época de minha internação no HSE, junho a setembro de 1967, ele era o Capelão Evangélico do hospital.

       Nessa experiência do Jardim, ali no Clube dos Sargentos, como era mais conhecido, quem me apanhava e levava para casa, pastorando o menino, era d. Luíza, a portuguesa amiga e vizinha. Mais tarde fui matriculado no já mencionado Instituto Filgueiras, em Nilópolis.

       Uniforme ridículo, para meninos. Moda infeliz. Olha que pesquisei na net, moda masculina, e não encontrei o tal modelito. Mas sabe aquele calção que afofa, preso às coxas por elásticos, apoiado por suspensórios nos ombros, cara, com 5/6 anos, uma criança, e já tinha implicância com esse mau gosto.

        Certa vez, fui com um conjuntinho, ora, desta vez lembro até a cor, verde-musgo e, sumo azar, tive um brutal piriri. Foi-se a roupa de baixo, emporcalhada. Na ocasião, sumo azar, justo num dia que havia deixado em casa a farda ridícula, a professora emprestou-me uma de reserva, sem roupa de baixo, sem fecho éclair (como se chamava zíper naquela época), sem droga nenhuma de arremate que fechasse, por isso mesmo era um uniforme emergencial, e fui eu pela rua, do Instituto Filgueiras até a Osvaldo Cruz, 306, do outro lado da linha do trem, onde morava minha avó  materna Eunice.

       Pasta posta atrás, era imensa, para resguardar o traseiro, aquela fofura ridícula no alto da coxa, suspensórios apoiados nos ombros, atravessei a antiga cancela de Nilópolis, cortornando as poças de lama, da rua não urbanizada na época. Não sei por que cargas d'água, como dizia meu pai, Dorcas não foi me buscar naquele dia. Ora, ir para a casa da avó era o máximo. Leila, Gislaine, Onésimo, Miriam e a mais séria de todas, Eunice (filha) era pura esculhambação, brincadeira e gozações. Que me deixassem lá, que me esquecessem, que me errassem, por lá.

        Do mesmo modo, lembro cenas do Jardim de Infância do Instituto Filgueiras, o rosto da professora, mas não me lembro de nomes. Nem do colega da nota de 5 mil. Bela lição de Dorcas. Chegado a Cascadura, a casa, minha mãe me chamou: "Cid Mauro!". Sabem quando, pelo tom, já se sabe que não era boa coisa? Tratava-se de minha merendeira amarela. Também lembro dela, formato e cor.

      Na verdade, levava minha merenda mesmo no papel de pão, aquele acinzentado, anos 40/50/60. Mas os colegas tinham suas merendeiras e, na hora do recreio, forravam-se as carteirinhas com as toalhinhas e cada qual colocava seu lanche sobre a mesinha. Eles apresentavam seus modelos de merendeiras, cada uma de seu formato e cor requintados, mas era aquela história do orçamento: esse material escolar era supérfluo para nosso nível econômico.

       Pois Dorcas achou a nota de 5 mil cruzeiros dentro da merendeira, esquecida. Tão sem malícia ela foi parar lá dentro, que eu até havia esquecido dela. Não. Não fora sem malícia. Então entrou a maestria de Dorcas como mãe. "Cid Mauro, que dinheiro é este?". Olhos arregalados, digressão estudada do menino de 5 anos, bem, mãe, é do meu colega. Estava em cima da carteira (escolar, mesinha do Jardim) dele, ele ia perder mesmo...

        Dorcas colocou os pingos nos ii: "Você sabe o nome disto?". Cortou fundo, nessa cirurgia. É roubo, ela disse. "Não, mãe!", o menino redarguiu muito assustado. Pois é, ela reiterou. "Ele sabe que você pegou?". Não. E quando a mãe dele procurar, ele  vai dizer o quê? Era a prova de que havia colegas mais abastados do que eu naquele Jardim: uma nota de 5 mil assim, na mão de crianças. Dele, como dono; na minha, como surrupião.

         Era muito argumento para minha estatura de gente. Ajoelhei, como ela pediu, ali mesmo, no quarto do ap 102 de Cascadura, em meio aos móveis "estilo Brasília" de arquitetura, para pedir perdão a Deus. Por enquanto, a primeira atitude seria essa. No dia seguinte, as demais providências, seriam Dorcas, mesmo com seu uniforme de normalista, levar-me ao Filgueiras, atrasando sua própria aula, chamar professora e mãe do colega, colocar-me diante de todos os três, para formalizar a confissão do erro e o pedido de desculpas. 

      Isso posto, isso feito. A mãe do colega contemporizou, Dorcas discordou, assinalando e frisando o tamanho do erro, e tudo ficou resolvido. Por aqui ficamos restando, noutra oportunidade, narrar mais uma investida, desta vez na bolsa de Dorcas, para outra arte com dinheiro. Haja doutrinação.
Clube dos Sargentos, assim conhecido

Uniforme (farda, no Acre):
Jardim de Infância do
Instituto Filgueiras

Mais ou menos assim
Nota não muito positiva
de minha biografia


Cancela de Nilópolis

 Osvaldo Cruz 306: a casa com placa de
VENDO era essa de nossa avó: paraíso
para todos os netos
Já vendida e reformada, na 
atualização do Google

Muro ainda da versão antiga


Hospital dos Servidores do Estado - HSE:
nasci em 1957, operei garganta e adenoide,
por aí, 1963/64 e lá me internei entre junho
e setembro de 1967, devido ao atropelamento
Pr. Theodoro José dos Santos
e esposa, Olinda: chegou a
carregar-me no colo, com gesso
imenso, do calcanhar à coxa







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