sábado, 10 de novembro de 2018

Crônicas de uma vida XI - Alhures, quer dizer, esparsas memorias.

         Creio que já ter chegado a 10 crônicas permite uma reflexão. E, quem sabe, estabelecer um procedimento: de dez em dez, parar para refletir. E, quem sabe, de novo, encetar diálogo com hipotéticos leitores.

        Sobre o título, lembra-me os 16 anos como professor de língua portuguesa no CERB, depois, CEBRB, enfim, muito antes Lourenço Filho, depois CESEME ali, na Praça Mal Floriano ou Plácido de Castro, mais tarde, da Revolução, quando nos divertíamos, sempre que possível, em sala de aula. Colégio Estadual Barão do Rio Branco, Rio Branco, Acre.

       E lecionar pronomes indefinidos era divertido, ainda quando eu usava essa trinca machadiana, alhures, algures e nenhures. Mas vamos logo aos excertos, se preferirem, na verdade fatos esparsos colhidos aqui e ali na rede da memória.

1. Cascadura. Vizinhos. Já mencionamos José  Mauro, Luís Carlos e Alberto. Aliás, com relação a este, a razão de eu ser Flamengo, mais uma (de poucas) virtude. O pai dele, Milton, infelizmente, mais tarde tendo se ausentado da família, apresentou-me à Favela do Pinto, antiga comunidade colada no morro de mesmo nome, às margens da Cacopenipem, Lagoa das raízes chatas, que ficava na região de terras de Sapopenipã, para plantio de cana-de-açúcar, mais tarde Lagoa dos Socós, aves comuns por ali, todo perímetro empossado por Rodrigo de Freitas, na metade do séc XVII. Tudo isso para dizer que sou flamenguista. Vão bem essas memórias. Na verdade, uma laguna, por causa da saída para o mar ali, no Jardim de Alá.

2. Favelas do Pinto, Ilha das Dragas e Catacumba, respetivamente 15.000, 2.500 e 9.500 habitantes, foram transferidas para abrigos da Fundação Leão XIII, conjunto Cruzada São Sebastião e, mais tarde, para conjuntos habitacionais na Cidade Alta, em Cordovil, próximo à Av. Brasil, e Cidade de Deus, Jacarepaguá, zona oeste, e um grupo também em Vila Kenedy, Av. Brasil. O motivo foi um incêndio suspeito, em 11/5/1969, que acabou por liberar um dos metros quadrados mais valorizados da cidade, em torno do Leblon e Lagoa.

3. Acho que seu Milton brincou com minha ignorância. Mas é porque o Estádio do Flamengo situava-se na fronteira desse povo e, com apelido Urubu, a massa negra da torcida-nação, com muita honra, assim se auto-intitula. Sim, está aí a explicação: de pai torcedor do América, o pai do colega de infância ganhou na influência.

4. O dia em que atirei, puro desatino, uma lata com água, "pensa rápido", brincadeira idiota daqueles tempos, acertando (e quebrando) o dente de Shirley, que não pensou rápido e ganhou com a lata na fuça, outro termo da época. Ponto negativo para mim. Brincávamos na garagem, que não era ocupada por carro nenhum, daí ser um paraíso de quinquilharias para a petizada. Fica à direita de quem olha a foto da casa da esquerda, tomando as geminadas do Preguinho como referência.

5. O dia em que, outra mania de criança, em companhia de Alberto e Luís Carlos, triturávamos tijolos, batendo pedra menor sobre paralelepípedos, que sobravam do calçamento antigo da Mendes de Aguiar, para fazer "pozinho". Não, nada a ver com o pó, ainda não distribuído em larga escala nos anos 60. Colocávamos em chapinhas de refri, Crush, Grapette, Guaraná Antarctica, para inventar estivas (como chamam no Acre) de armazéns miniaturas. Os soldadinhos, aqueles mesmos, com os cowboys, tomavam de conta, antes do devastador ataque dos peles vermelhas.

6. Sei lá que encrenca houve, eu acho que Luís Carlos chutou, por pura implicância, o apoio, que era o paralelepípedo, eu corri atrás dele, até à entrada das casas geminadas, veja bem, as do lado direito da Vila, acertei-lhe uma pedrada nas costas, retornei vingado. Daí a instantes veio Preguinho, que nunca soubemos por que o apelido, porque era o maior da vizinhança, tamanho acima da idade e um brutamontes muito parecido, inclusive, com o Frankenstein. Tomando as dores do mulatinho, ameaçou-me com uma pedrada também, corri, entrei pelo corredor buscando refúgio, senti a pedra bater, zunindo, na parte de trás do crânio, certifiquei-me de que o perigo já havia passado, retornei à rua. Nem sei se Luís Carlos mesmo, sim, porque essas brigas tinham curto prazo de validade, notou o sangue escorrendo. Pus a não na cabeça, retirei-a manchada, desabalei chorando pelo corredor, na janela do quarto Dorcas veio checar, na da sala, ora, ora, Dr. Francisco, virei para mostrar o desespero, nem dava para ver, ora, esse amigo de Cid, doutor Francisco, talvez ele, mas um médico nos visitava naquela manhã. Com uma Gilette, raspou o cabelo em volta, mercurocromou, pôs um cotoquinho de esparadrapo, acalmei-me e voltei, com esse troféu, às brincadeiras. Mais tarde, a mãe de Preguinho chegou a saber, mandou o monstro de estimação pedir desculpa, até um riso, aquele mesmo, franknstênico, meio torto, ganhei dele. E as brincadeiras (e brigas eventuais) continuaram.

7. Aqui termina Alhures 1.

Lagoa, Nicola  Facchinetti
(1824-1900), óleo sobre madeira,
1884.

Lago Rodrigo de Freitas
hoje

Em 1965 - os aterros
começaram em 1808,
época da compra por
D. João VI ao antigo
 proprietário, Rodrigo de Freitas.
Canal do Jardim de Alah, comunicação
entre a lagoa e a praia, fronteira
entre Leblon e Ipanema.
A famosa 
Ponte do Jardim de Alah, 1958.

Jardim de Alah, anos 50.



Favela do Pinto: o quadradinho lá ao fundo 
da foto é o campo do Flamengo

Conjunto Cruzada São Sebastião



Preguinho, acho que também era Paulo,
residia na casa da esquerda, dessas
duas geminadas, ao lado da Vila.


       

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