sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Crônicas de uma vida XIX - Peraltices II

        Escoriações generalizadas. Gozado essa coisa de infância. De quando em vez, a gente se quebra. Mas graças a Deus, não foi desta vez.

        Boçal. Resolvi me dependurar nessas casinholas típicas das eras iniciais da eletricidade, em casas de alvenaria, que consistiam numa armação de concreto, chumbada na própria parede da casa, com acabamento de uma armação e portinhola de madeira embutidas.

       Dentro ficava o relógio de luz, aqueles modelos antigos enormes, como a também antiga chave de faca de contato para fechamento de corrente elétrica através dos fuzíveis de porcelana, aqueles mesmos, de rosca, a mesma das lâmpadas incandescentes. Sua alma era um pinguinho prateado de solda dentro o qual, ao romper, desarmava o circuito, deixando todo mundo no breu, mas salvando a situação, cumprindo o seu papel.

      Meu avô que, às vezes, costumava demorar nos reparos menos urgentes, demorou a colocar o vidro na portinhola com trinquinho de correr. Provavelmente pelo preço do vidro. Por isso havia quem improvisava, colocando um pedaço de compensado, imitação da lâmina de vidro.

    Pela abertura sem vidro da portinhola, coisa de criança sem senso, eu enchi de frutinhas de café, isso mesmo, loucura da hora, arrancadas dali mesmo, do pezinho bem à beira do jardim da frente, que ainda tinha uma ameixeira na qual subi algumas vezes a colher essa outra frutinha amarelinha. Lá em cima mesmo degustava seu gosto meio azedinho, sua consistência meio durinha, para deitar fora o caroço amarronzado e liso.

          Para que encher de café o bendito espaço de dentro da caixa de concreto do padrão, como chamam aqui o medidor de luz? Não me perguntem. Nem sei se estava escolhendo as já vermelhinhas para, depois, reaproveitá-las. Nem sei. Dependurei-me, apoiando-me na moldura de madeira e portinhola nela ajustada pelo trinco, mas sem o vidro, exatamente deixando espaço e sobra de rebordo onde me apoiei.

 De onde me esborrachei. Evidentemente, Cid Mauro, mesmo com seus, vá lá, 5/6 anos, não havia como a moldura, apenas aparentemente encaixada, sustentar seu peso. Decobri após arrebentar-me no chão. Tenho claros, na memória, todos os movimentos.

       Qual juvenil-aranha forçava, para trás, o corpo, enquanto me aferrava com as duas mãos na moldura. Minha ideia (de gerico, como se dizia na época) era ver com estes olhos a ruma de frutinhas de café justo dentro da caixa do relógio. Para debruçar-me por cima e pôr dentro a carranca, tinha que, praticamente, num rapel ao inverso, forçar-me para trás, na parede, com os pés, fazendo gancho de apoio com os dedos das mãos justo na moldura.

      Essa pressão toda me arremessou com força ao chão, atuavam vários vetores, entre eles, meu próprio peso, com mais a força que fazia para subir, empreender uma curva de apoio sobre mim mesmo, como se fosse me sentar no ar, tendo pés na parede e mãos na moldura como único apoio. Estatelei-me.

       E, como já disse, avós, tias e mães têm 6o sentido ou, sei lá, a terceira visão, como naqueles livros do tio Nelson. No exato momento em que arremessei-me ao chão, milagrosamente, em mais esta vez, sem fraturar coluna, crânio ou qualquer outro osso, apenas mordendo a língua, de puro susto, gosto de sangue na boca, nesse exato momento, dava-me conta do trauma e avistava minha avó na porta da casa. Logo deduziu, pelo impacto e trajetória da queda, o que eu tentara fazer.

       Também a moldura, como prova do delito, estava ainda em minhas mãos. Só faltava à vó descobrir o agravante do crime ecológico, sem nenhuma culpa teriam as frutinhas de café. Dor por todo o corpo. Água com açúcar para o menino. Gargarejo para cicatrizar as marcas das mordidas. Marisa França Costa fazendo gozações, de modo a despertar o menino de sua modorra e desânimo.

       A prima Eliana, com a mesma cara debochada de sempre, também veio ajudar, quer dizer, ver se eu me animava, saindo daquele torpor pós-traumático. Não sei se tirei um sono, ali mesmo, na cama e quarto do Labrego, o último à esquerda, colado à cozinha, próximo ao velho filtro na junção das paredes. Acho que houve orações, por causa de uma suposta reunião de senhoras por lá. Houve igreja à noite. Pedido de colo, ora, como explorei esse recurso, descendo-subindo-descendo a Mena Barreto em suas ondulações.

       Chegamos ao ponto do Cascadura-Nilópolis, do outro lado da linha, na época, defronte ao Colégio Filgueiras, modelos ainda no tempo de seu colorido prata e azul claro, a viação com nome de Santa, N. Sra. da Penha. Cócegas de Marisa, cutucadas, gemidos, risos e choro simulados. Ela era incansável em suas gozações. Divertidíssima, no vocabulário de meu pai. E dava a sua risada sacudida, fazendo todos à volta escangalharem-se de rir e ela, cínica que só, soltava uma lufada de ar, como a se fazer de desprezível, mediante suposto qualquer argumento contrário. Muito divertidissimamente cínica essa Marisa. 

       No meu caso, as cutucadas, no colo das duas, ela e Dorcas, no interior do ônibus, também serviu de fisioterapia. Num retorno à casa da avó, posteriormente, comentários sobre o desatino, remediado está o conserto da casinha do relógio, dura reprimenda se eram verdes as frutinhas.  Bem dizia Adolpho Bloch: criança diz, no meu caso, apronta cada uma!

       Marisa preencheu nossas vidas. Tinha sua maneira especial de viver. Alegrando todos a sua volta. Jaíra, ela e quatro irmãs, filhas de Adelaide, apelido Bili, ela e sua irmã Neusa faziam lindíssimos duetos em Nilópolis nos anos idos de 1960, pois Jaíra lembra, em nossos encontros atuais no Rio, que não podiam cantar olhando para Marisa: era certeza e garantia de desconcentração. E riso seguro. Toda reverência do culto ia por terra (ou riso).

       Imitava muitos e qualquer um. Ainda na área da música, fazia deboche do estilo de outras das cantoras líricas da igreja, que não minha mãe, que aprendia canto com Terezinha, uma professora com casa bem ali, grudadinha no túnel por debaixo da linha do trem, no Encantado. Certa vez, enquanto minha mãe ali treinava, não resisti a um desses chocolates recheados da antiga Kibon: repousado nas teclas do piano, insistentemente olhava para mim, pedindo socorro. Não pude, para vergonha de minha mãe, deixar de comê-lo. Mais uma "coisa de criança", segundo análise da professora de canto que, aliás, também ensinava canto lírico a Marisa.

       Marisa, quando andava com Dorcas e Cid, nos fuscas que teve, o que dá toda uma história à parte, divertia muito o casal. Que os ativistas não saibam porque, sendo mulata, filha de pai nigérrimo e mãe alvíssima, imitava também racistas achincalhando, indiscriminadamente, quaisquer negros ou brancos barbeiros ao volante que ameaçassem meu pai. Ora, para Cid dirigindo, todos representavam ameaça.

       Deixou-nos de súbito. Ela e seu irmão Mario, este pai do menino que, em Cascadura, Dorcas amparou ao nascer, foram-se do mesmo jeito: infarto repentino. Eram gente muito boa. Mario mais na dele, caladão, sujeito tranquilo, gênio parecido com de sua mãe, Marisa mais expansiva, termo este que Cid usava com frequência.

        A chamada de Deus foi mais urgente para os dois. Tranquilidade e paz definitiva ao Mario e, com relação a sua irmã Marisa, tornar o céu (muito) mais divertido. De súbito e com urgência, assim quis o Altíssimo. E vai Marisa divertir a congregação celestial, com mais o riso contido de Mário, abanando a cabeça de leve, como a reprovar, em secreto, as irreverências da irmã.

Coleção típica do tio Nelson:
avós, tias e mães têm essa visão

Subia no pé e colhia essas ameixas
 no jardim cuidado por Tula e Eunice

Era mais ou menos essa a carroceria
dos ônibus da N. Sra. da Penha

Antigo fusível e chave
tipo faca

Antigo relógio de luz

Pé de café, segundo meus primos,
ainda até hoje preservado 
pelo novo dono

Barraquinha Kibon
modernizada

Barraquinha de sorvetes
anos 60 

Um desses chocolates
me seduziu

Casa atual onde, nos anos 60,
residia a professora de canto

Novo templo da Congregacional
de Nilópolis, pertinho do antigo

Antigo templo da
Congregacional de Nilópolis

Bem próximo a essa esquina
moravam Bili, José e suas
cinco meninas

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