sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Crônicas de uma vida XVI - Japeri

        Desde que me entendo por gente, isso significa dizer até onde minha memória alcança, subia no púlpito da Batista de Japeri, onde meu pai foi pastor, do ano em que nasci, 1957, até finais de 1962, quase 6 anos no total.

        Então, visitávamos Inês e Gilda, isso quando Dorcas, em esporádicos domingos, agendava visitar a igreja do esposo. Daí as histórias, como aquela já contada algures sobre a baldeação, na estação de Japeri, para um trem de bitola curta, para ir à fazenda do diácono Osvaldo, negro consagrado, líder e um excelente crente, de boa fama naqueles tempos e naquelas localidades.

       Demorou muito o conserto da velha locomotiva que, se a memória não me prega peças, ainda era daquelas a vapor. Pois bem. Conta também uma lenda urbana (há várias delas, a meu respeito) que treinei uns leitõezinhos, na casa da irmã Inês, a nadar, experimentalmente pondo-os num poço, é flor do chão. D. Inês resgatou-os, mal (muito) menor, evidentemente, e reputação salva também.

    Almoços memoráveis. Naquele tempo, Cid ainda não estava sob o império da Macrobiótica, nela iniciado pelo Nelson Lima Matos, irmão de minha avó materna Eunice. Então, ele se esbaldava nos torresmos de d. Inez, bistecas e pernis de porco, ou nas galinhadas de d. Gilda. Café à vontade, toras de goiabada cascão, ou não, importava que fosse algum doce. Poderia ser de laranja da terra, mamão, enfim. Adiante, ele teria de abandonar todo esse ritual.

  Depois, era a sesta. Lençóis branquíssimos, cheirinho de limpos, mesmo com sabão português da UFE (cheiro característico, também em sua fabricação, empesteando o ar nas cercanias do Caju, na Av. Brasil). Por mim, até dormiria, se não houvesse o que aprontar com a petizada, algum culto à tarde, Dorcas me punha entre ela e a parede. Limpeza ao extremo, minha mãe lembrava certa vez que d. Inês usou a bacia de roupas, retirando-a do tanque, deixando as peças de lado e se pondo a lavar o macarrão do almoço. Diga se não era absolutamente limpo.    

   Nesses usuais deslocamentos a congregações distantes, principalmente numa época em que ter ruas com calçamento, no caso, paralelepípedos de granito, era muito raro, amassávamos lama, como meu pai gostava de dizer. Sempre ouvi Dorcas, referindo-se a essas oportunidades, mencionar meu despojamento e adaptabilidade a qualquer contratempo e total intimidade e identificação com a garotada do pedaço.

       Certa vez encontrei um dos filhos de d. Gilda, com certeza, no prédio do antigo Ministério da Guerra, ali bem próximo à Central do Brasil. Eu era assinante da BIBLIEX - Biblioteca do Exército. Certamente era ele, do qual não me lembro o nome, mas os traços da fisionomia remeteram-me ao passado, instantaneamente. Mas não conferi, no dia, a patente daquele oficial fardado. Em 2007 quando, com meu sogro e sogra, no retorno de uma ida a Pati do Alferes, passamos por Japeri, visitamos d. Inês e seu esposo, alguns dos filhos, um deles comerciante, confirmei essa história do filho militar de d. Gilda.

      Além disso, a igreja em Japeri nos tijolos e reboco, proporcionava, na parede por detrás do púlpito, o espetáculo da competição entre lagartixas, disputando insetos e, eventualmente, perdendo a ponta da cauda por uma mordida mal calculada de uma companheira bem (mal) intencionada. Eu divisava essa competição, com ameaça de refrega, quando havia perdas de pontas de caudas.

      As viagens nos trens modelo 1930, os vagões mais velhos existentes, eram demoradas e cansativas. Naquela época, 13 era o Deodoro, parador, que fazia a ligação entre este terminal e a Cetral do Brasil, no Centro da Cidade. Cascadura, onde residíamos, e Madureira, estação seguinte, além do Engenho de Dentro eram aquelas que permitiam a chamada baldeação, mudança do parador para os diretos, ou vice-versa: o 33, Japeri/Paracambi, ou o 42, Santa Cruz/Matadouro.

       Até Deodoro, os diretos paravam nas três estações acima mencionadas e, daí, subdividiam-se os ramais da Baixada Fluminense, interior do Rio, a partir de Anchieta, ou zona oeste do Estado da Guanabara, até Santa Cruz. Então, paravam estação a estação, até o fim da linha. Vidros quebrados por pedradas, horas parados caso, por exemplo, uma rês de algum rebanho fosse atropelada na ferrovia, visto que, na época, era usual trechos muito longos sem muros laterais. Aí, uma ruma de gente destrinchava o gado, para aproveitar a carne grátis. Também muitos ambulantes, vendedo de tudo, incluído o chouriço, requentado numa lata de 20 l, com braseiro pelo meio: Dorcas nunca deixou o menino satisfazer essa curiosidade de paladar. Como comiam, com muito gosto, quem comprava! E dependendo da afluência de gente, sem lugar para sentar, havendo uma pane elétrica ou qualquer outra, defeitos agrupados no termo "avaria", estacionávamos na linha. Às vezes, horas a fio.

       Sinal fechado era o de menos. As portas eram forçadas e muitos pingentes, designação da época, andavam dependurados e, eventualmente, um ou outro caía na linha. E as pedradas? Era um princípio físico: velocidade do arremesso do pedregulho na mesma direção e sentido contrário ao fluxo do movimento da composição, termo da época para designar quatro + quatro vagões, dois deles motrizes, um em cada extremidade. Resultado catapultado e brutal: as pedras marcavam a lataria, rachavam o para-brisas dianteiro, quebravam as janelas e, de quando em vez, acertavam os passageiros. Nunca fomos vítimas, mas presenciamos quem foi. Bancos de madeira, encostados lateralmente ou, nesses modelos mais antigos, alguns para dois lugares, transversalmente postados. Aliás, gozado, essa disposição de assento mais antiga está presente nos modelos atuais que, além de bem conservados, estão munidos de ar condicionado. A quantidade de ambulantes é a mesma. Porém, mais limpos e refrigerados de, vez por outra, dar frio.

        Quantas vezes Cid retornou, fosse da estação de Cascadura ou Madureira, por causa de avarias, "o trem está avariado", dizia-se, acompanhando a gente a nossa igreja ou assistindo ao culto em outra co-irmã, por perto. Pela distância de Japeri, num tempo em que não existia, ainda, a Via Dutra, hoje caminho natural para aquelas bandas, caso a viagem não se completasse (ou não se arrastasse) a manhã toda, impossível tentar à tarde: caso se insistisse, só se chegaria à noite, e olhe lá, como dizia o Cid.

       Daquela vez da avaria no trem de bitola estreita, que nos levaria ao sítio do bom diácono, pelejamos, como dizia meu pai, manhã inteira, ali mesmo no pátio da estação de Japeri, até que fosse sanado o problema. 

        Chegando lá manejei, pela primeira vez, um pilão, percorri o descampado da fazenda até o limite extremo de uma cerca que subia uma ribanceira, flagrado por não me lembro quem, mas a audácia seria subir, avançando os limites dos moirões e do arame farpado: o sujeito leu na minha hesitação o desplante. Denunciou-me, novamente, desnecessariamente.

       Na reunião à tarde, congregação super lotada, fiquei de fora, como é costume da criancada, aprontando. Foi quando deparamos uma mulher imensa, tenho-a, ainda hoje, na memória, que tinha a fama, na redondeza, de assustar pirralhos. Os colegas se adiantaram, cumprindo sua rotina de se afastar, tratando-se dela e eu, perigosamente, fiquei por último, para avizinhar-me ao máximo, mirar seu rosto, reconhecendo aparência e perfil para, só então, cumprir com os demais o mesmo ritual de afastamento, só que nutrindo curiosidade e, pelo que pude constatar, nesta vaga lembrança, na minha mente de criança eu nutri simpatia e piedade.

      Depois, relatei tudo isso a meu pai, procurando saber deles que tipo de mulher seria aquela. E os naturais da redondeza pouco acrescentaram de explicação, apenas dizendo tratar-se de uma andarilha lesa, como dizemos aqui. Ou será que sua indigência, daquele modo, tinha uma razão definida? Mistérios desses causos de infância.
BIBLIEX no prédio do antigo
Ministério da Guerra, Centro do
Rio de Janeiro, próximo à
 Central do Brasil

Modelo de trens da
década de 60/70

Estes já são da década
de 30/40. Estação do
Engenho de Dentro

Terminal de Japeri,
anos 80/90

Pátio de Japeri,
 provavelmente,
década 70/80

Locomotivas dos anos
70/80. Mas acho que
fomos à congregação
numa Maria Fumaça

Interior dos vagões modernos,
bancos nos dois sentidos,
como nos da década de 30/40.

Antiga UFE - União Fabril
Exportadora, a fábrica do
sabão português, abaixo


Prédio desativado, na
 Av. Brasil, 
infelizmente demolido
no meado deste ano


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