quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Crônicas de uma vida XV - Encantos de criança

       Desta vez o culto na Congregacional de Nilópolis seguia seu curso dominical. Assaltei a carteira de Dorcas por razão incontida. Algo que me fascinava.

      Domingos de junho, caminhávamos a pé, como por qualquer outro domingo, subindo o morro da Dr. Rufino. Era o caminho natural até à igreja. Ora, fazíamos essa rota desde os tempos em que tínhamos que subir ziguezagueando os sulcos abertos pela enxurrada, assim como contornando as poças de água.

      Ou poderíamos seguir direto pela Osvaldo Cruz, dobrar à esquerda lá adiante na Av. Carmela Dutra, altura da antiga cancela, caminhar até à famosa praça, contexto das conquistas amorosas, tanto de Cid, quanto de Dante Santos, e subir a Mena Barreto.

      De qualquer modo, meus olhos de criança não se cansavam de apreciar e, a cada oportunidade, eu retardava os passos, "Vamos, Cid Mauro, anda, anda (aqui, seria cuida, cuida), menino: já estamos atrasados!", para ver aquelas barraquinhas de venda de fogos de artifício, improvisadas numa forma artesanal já tradicional, no portão das casas. Era um meio muito usual de alguns faturarem algum e facilitar a queima de fogos (e dinheiro) por parte de outros. 

        Por cima da parte retangular, a forma clássica de um telhadinho de imitação, em forma de triângulo equilátero, encimando um caixote invertido, com prateleirinhas onde, olha, gente, ficavam expostos, naquela dobradura padrão o produto à venda:

       Balões japoneses, bombinhas (traque, aqui no Acre), cabeções de nego (aqui, bomba), mas desses eu não sonhava comprar, era para maiores de 14 anos, estrelinhas, estalinhos, cobrinhas, barbantinho cheiroso (ou peido alemão, no nome popular), este meio sem graça, só usado para perturbar professores e alunos em sala de aula.

         E já ia me esquecendo do buscapé. Era, para mim, um tipo mais remoto que, nessa faixa de idade, era para adultos soltarem. A minha imaginação percorria cada modelo desses fogos de artifício, pré-selecionando aqueles de menos perigo, inocentes para a nossa idade. Fascinavam-me! E os balões? Já mencionada a permanente carestia, Cid, de vez em quando, comprava balões nessa época. Ao recebê-lo em Cascadura (onde fiquei até os 10 anos, em 1967), chegado do IBGE, pelo trem da Central, eu sempre perguntava a ele: "Trouxe alguma coisa pra mim?".

       Desde quitutes, como as rosquinhas amanteigadas (nunca encontrei outras com aquele mesmo gosto da infância!) que comprava por ali, nos meandros, ruelas, becos e ruas do Centro da Cidade, como a ela nos referíamos (caminhos secretos que só meu pai conhecia, a essa altura da vida trilhando havia 30 anos, desde 1934, essas rotas), quando ele procurava seus produtos da Macrobiótica. Lembrava-se do pedido do filho, então trazia, entre outros, biscoitos de polvilho, que poderia ser o famoso e tradicional Globo, vendido até na Geral e Arquibancada do Maracanã ou os balões japoneses, papel seda, dobradinhos, bucha cuidadosamente sobreposta, ah, aquele cheirinho característico de material inflamável, feito de cera e parafina. Quando íamos, eventualmente, ao Servidores (hospital HSE) para consultas e, se fosse o Cid, invariavelmente, pegaríamos o trem da Central, pedia a ele (assim como também ensinei a Dorcas esse atalho) passar numa lojinha bem ali, por detrás do antigo Ministério da Guerra, rua transversal à Senador Pompeu, onde havia fogos, de modo geral mas, especial e especificamente, balões japoneses à minha espera. Dependia, às vezes, do grau de enfermidade e prostração do garoto, para que desse certo o feitiço do desvio de rota para a compra dos balões: com Cid, o pai, dava mais certo, tiro e queda.

      Voltando às barraquinhas, todas, gente, muito lindo!, iluminadas por uma lanterna sanfonada, multicor, com uma vela dentro, dependurada, chamariz da freguesia, especialmente gente da minha idade, assim como engenhosa forma de iluminar as mercadorias. Num tempo de recente aposentadoria para a chamada "luz de galeria" (ou seria "luz de cabine"), de lâmpadas incandescentes ainda amareladas, que presenciei em visitas a recantos da baixada como Éden, Belford Roxo, Japeri, Andrade Araújo, entre outros, a iluminação urbana ainda menos potente, de eventuais postes, com aquela característica bandeja ondulada e arredondada invertida, no meio encaixado o bocal, com uma lâmpada enorme, talvez 200 w, essa luz difusa conferia chance de um charme indecifrável àquelas lanterninhas juninas.

     Pois foi exatamente, na casa ao lado, vejam bem se não era, para usar mal um termo, uma tentação de absoluta inocência para um menino, colocarem uma dessas barraquinhas ao lado da Congregacional de Nilópolis, grudada, grudadíssima ao muro, limites extremos, num domingo de São João, São Pedro, não importa o santo, todos evangélicos, tudo no contexto. Eu notei mais esta barraquinha. Guardei comigo esse segredo, oh, tentação que não me abandonou e, por ela, armei a treta.

     Enquanto cantavam, oravam, nem sei, assaltei a carteira de Dorcas e, coisa raríssima, encontrei, desta vez, diferente daquela vermelhinha do ilícito da merendeira, uma nota amarelinha, não menos valiosa porque, se aquela fora de 5, esta era de 1 mil. Saí pela porta lateral. Ora, para Dorcas não notar, muito provavelmente o que distraía, ou melhor, concentrava a atenção (dos adultos, é claro) deveria ser uma oração.

      Escapuli pela plataforma frontal ao parapeito do muro, parte direita de quem olha da rua o velho templo, desci as escadas, dobrei à esquerda, pus-me de pé, defronte da barraquinha, não sei bem o que escolhi, acho que uma caixa de estalinhos, puxei a nota do bolso, muito provavelmente, de novo, um shorts de linho branco, confeccionado por Dorcas de sobras das camisas de Cid, para pagamento. 

      A moça fingiu que aceitou, não dava para, matematicamente, talvez nem calcular ou providenciar troco para uma fração de centavos em milhares, mais precisamente, 1 mil. O produto adquirido era para moedas, quem sabe a nota de 5 cruzeiros. Eu me distrai por ali mesmo, na calçada, sem dar muita atenção ao movimento da vizinha que, pelo montante do dinheiro e feitio da nota, notou que o menino estava fortuito, indigente, por conta própria escapando da vigilância da mãe, proveniente da igreja de crente ali ao lado.

        Que mulher inteligente! Quanta (desnecessária) dedução! Alguém alertado veio me buscar, entregaram-me a Dorcas, a delação surtiu efeito, nem sei bem se foi ela mesma, a mãe, que veio me buscar. A nota foi devolvida, não, a moça não se importava com o produto, que ou nem se pagasse depois. Também não me lembro se houve beliscão, lembrem, punição intermediária entre uma bronca no jeito, dum lado, ou uns tapas bem dados lá nos fundos da igreja, às vezes no banheiro, no outro extremo. Aos costumes.

       Desnecessária, absolutamente desnecessária a delação. Tudo poderia ter sido muito bem contornado de outra forma. O culto seguiu seu curso. O produto adquirido foi guardado. O menino que estava na calçada com uma nota de miles para comprar centavos era o Cid Mauro, para variar, alguém deve ter notificado Dorcas. O sermão (para usar um termo do contexto) de sempre, doutrinação, uma ou outra ameaça e recomendações, vida que segue. Até a próxima arte, ainda desse tempo de primeira infância, em Nilópolis.

Desta casa na esquina,
subíamos esse morro
da Dr. Rufino

Não encontrei na net nenhuma foto,
mas alguém desenhou este esboço

Balão japonês
em plena performance

Estalinhos

Bombinhas (no Rio), 
traques (no Acre)

Cabeção de nego (no Rio),
bombinha (no Acre)


Luminária e prato das
lâmpadas enormes de 200 w


Dinheiro grande, ordem 
de milhar, para adquirir
o que moedinhas podiam comprar

Nota de 5 cruzeiros
também mencionada
(que por falar nisto,
estampa o Barão do Rio Branco)

Pura coincidência, duas conduções do
Cid, meu pai, que também me iniciou
nelas: o bonde de Cascadura e o trem
da Central do Brasil.

Rua Visc. da Gávea (sentido
Mal. Floriano): esses relevos
no muro marcam a antiga entrada da
lojinha onde os balões me esperavam

A mesma rua, agora no sentido
Senador Pompeu: rota do Hospital
dos Servidores, na década de 60, e
ida e volta ao Seminário, na
Alexandre Mackenzie, 
quase 20 anos depois.

Geral do Maracanã. Ah, sim, também
pura coincidência esse camisa 10...

Um dos agrados do Cid ao filho,
também vendidos no Maracanã

Mais ou menos assim: nem forma,
nem jeito, nem gosto, nem cheiro 
dos amanteigados anos 60...

Praça cúmplice dos romances de duas
filhas da avó Eunice: um com Cid, meu
pai, e o outro com Dante Santos, o gozador da hora.

Numa outra tomada, a praça
Paulo de Frontin, cena dos
romances das décadas 50/60,
quando Nilópolis tinha, mais 
ou menos, esta cara abaixo:

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