quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Crônicas de uma vida VI - José Mauro, primeiro amigo

        Zé Mauro. Na verdade, José. Começavam aí as coincidências. Também tinha Mauro no nome. Enquanto o meu era Cid, o dele era José.

       As outras eram estudar na mesma Escola Paraná, mesma turma, nascido no mesmo mês e ano, morar numa vila do outro lado da mesma rua.

      Galegozinho, pelos 8/9 anos, eu fazia aniversário 6 de maio, ele 14. Acho até que, se não me falha a memória, certa vez comemoramos juntos. Tinha olhos claros, não sei se tons de azul, cabelo raiado de loiro finíssimos, com franja indomável, irrequieta na testa.

      Esse conjunto com mais um sorriso cínico, daqueles que se desenham no rosto inteiro, até fecham os olhos quando se insinuam, fazia de José Mauro o amigo que Dorcas não queria para mim.

      Não ande com esse menino. Não gosto do jeito dele. Mas não havia jeito. Pelo menos, por ano ou ano e meio, todos os dias letivos de 1966/1967 fomos juntos ladeando o curso da larga Av. Ernani Cardoso, do outro lado da calçada do famoso e, infelizmente, hoje fechado Colégio Arte e Instrução, sugestivo nome.

     Da Mendes de Aguiar à esquina de Padre Manso com a avenida, onde ficava nossa escola. Comecei nela em 1963. Ano antes da gloriosa, em março de 1964. Não sei por que cargas d'água, como dizia meu pai, Dorcas tentou encaixar-me na Escola Rugendas.

      Ficava ali atrás, enfurnada por detrás da Paraná. Novíssima, recém  inaugurada, provavelmente para casos como esse meu, absorver alunos dessas mais antigas unidades. Nada. Não me adaptei. Pede pra sair. Pedi. Implorei. Pátio amplo e novíssimo, carteiras novinhas em folha, quadros-negros bem negros, enfim, nada me seduzia.

      Voltei ao macarrão ora com salsicha, ora com sardinha em lata da merenda escolar no mais acanhadinho refeitório da Paraná, ali quase encostado na Faculdade Souza Marques, do outro lado da rua, onde Dorcas, na década de 1940, completou seu ginásio, com ajuda do tio Nelson Matos, que trabalhava na Central do Brasil, irmão da mãe dela.

       E ao lado do 5o RecMec, Regimento de Cavalaria Mecanizada, do exército, ainda mentalidade da 2a guerra mundial, de 1939-1945. Mais tarde, no Vietnam, aprendemos pelo filme Apocalipse Now que cavalaria, como a 82a aerotransportada, seria munida de helicópteros.

       Certa vez, para surpresa da turma, soldados nos levaram ao quartel ao lado para andarmos dentro de um daqueles blindados anos 40. Suprema realização! Percorremos os espaços internos do quartel, onde atualmente foi construído um Supermercado Guanabara imenso, dentro do blindado, ouvindo atentos todas as explicações, fascinados.

      José  Mauro, segundo as sombrias premonições de Dorcas, realmente não foi uma companhia 100%, isso pelo rigor puritano da época. Ensinou-me uma coleção de palavrões, não proposital ou didaticamente, mas porque, como diz o Livro, "a boca fala do que está cheio o coração".

      Dorcas analisava que a família dele não tinha mesmo lá aquela estrutura requerida. Exageros, interpretei, e segui colado nele. Dorcas em Nilópolis, melhor (ou pior) percorrendo os colégios da Baixada Fluminense, assim designada na época, atrás dos contratos provisórios, como chamamos aqui no Acre.

      Cid, no IBGE, na Av. Presidente Wilson, ali pelo Castelo, centro do Rio, com uma passagem relâmpago pelo SNR - Serviço Nacional de Recenseamento, na Urca, os dois precisavam defender o seu. Eu ia e voltava sozinho, quer dizer, na companhia de Zé Mauro. Além dos palavrões censurados, as piadas indecentes e os rudimentos de (des)educação sexual: o que os pais dele faziam e ele comentava comigo, credo-em-cruz, os meus jamais. Jamais! Pensava eu.

     A Paraná foi onde, numa única vez na vida, num arroubo liberal de Dorcas dancei, em 1964/5, uma Quadrilha de São João. Anos anteriores, Dorcas iniciara o Curso Normal no Colégio Nilopolitano, próximo à estação de trens de Nilópolis. Levava-me ao Instituto Filgueiras, onde fazia meu Jardim de Infância, e seguia para seu Colégio.

       Uma vez terminado o curso, seu plano era ajudar Cid que, com salário muito curto, nada sobrava para o sonho da casa própria. Cid que  queria a esposa "para o lar". Mas Dorcas, mestra dos convencimentos, ganhou mais essa. Mas convencê-la que não poderia fazer carga com o menino, que o pusesse numa escola em Cascadura, ela cedeu. Cheguei a estudar numa escola em Nilópolis, ali pela Mirandela, 1a ou 2a série primária. E vindo para a Paraná, dei um pulo para a 3a.

     Zé Mauro chegou a visitar a Congregacional de Cascadura e estava comigo no dia do atropelamento na esquina Pe. Manso/Ernani Cardoso, em 27 de junho de 1967. Evidentemente visitou-me no Servidores do Estado, HSE, visitou-nos no Méier, em 1967/1968. A amizade foi interrompida, contra nossa vontade, porque a família se mudou para Éden, não o paraíso, mas um bairro de São João de Meriti, município vizinho a Nilópolis.

       Dorcas foi dar aulas num colégio na rua onde residiam. Numa extremidade da rua, a escola, na outra, a casa deles, já em direção a Pavuna. Lá encontrei mãe, irmãs menores e Paulo, o mais velho, tão cínico ou mais que o irmão, cabelos negríssimos e lisíssimos como os de Zé Mauro, dono de um riso sarcástico. Pouco brincamos juntos, nós três, pela mesma razão: certa defasagem na idade e ainda maior corrupção de costumes, pelo padrão Dorcas.

      Mas Paulo mesmo pouco se interessava. Sujeito de poucos amigos. Quanto a mim, tímido por natureza, essa aí foi a primeira influência, meio a contragosto de minha mãe. Padrão Dorcas de comportamento.

Eu, Paulo e José Mauro

Vila onde morava José Mauro

Colégio Arte e Instrução, 
tombamento em 27 de maio de 1980

Esquina Ernani Cardoso/Padre Manso,
fatídica em 27 de junho de 1967

Escola Municipal Paraná

Escola Municipal Paraná

Faculdade Souza Marques

Souza Marques, ginasial de Dorcas
na década de 1940

Local do antigo Rec Mec - 
Regimento de Cavalaria Mecanizada

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