terça-feira, 30 de outubro de 2018

Crônicas de uma vida IV - Brincadeiras solitárias (nem tanto)

         Muitas vezes, filho único que sou, brincava solitário mesmo. Incluídas as de super-herói. Haja fantasia!

      Mas outras vezes, com brinquedos mesmo, sempre muito baratos, por ser filho de funcionário público do IBGE, nível médio, e de professora primária contratada.

     O salário dele chegava mensal, mas o dela, no acumulado de julho e, depois, só no fim do ano. Os carrinhos eram aqueles mesmo de "matéria plástica", assim designada a novidade da época, hoje tão comum, a ponto de comprometer o meio ambiente.

      Havia um simulacro de carro de bombeiros, uma Kombi, enfim, outros mais que fugiram à memória. Improvisava-se. Por exemplo, cortar a lateral e encher de pedras e/ou areia, de modo a torná-los bólidos de alta velocidade, puxados que eram por barbantes, em curvas alucinantes, com rodas derrapantes, sem eventuais capotagens.

      O corredor virava autódromo. Ou dentro entravam soldadinhos, também de matéria plástica, cuidadosamente retocados em cores, detalhadamente caracterizados como índios e soldados, sempre em luta. Os filmes, de novo na TV preto e branca, eram de faroeste, abordando essa temática que, só mais tarde, entenderíamos como covardia de colonos contra nações indígenas.

       Faltava, ainda, ler o clássico Bury my Heart at Wounded Knee, "Enterrem meu coração na curva do rio", que adquiri pelo Círculo do Livro,  mas é outra história. Nessa época anterior, colecionávamos soldadinhos e indiozinhos eternos litigantes, cultura norte-americana importada.

      Certo dia 24 de dezembro, que bem pode ser de 1965, fui com Cid Gonçalves de Oliveira, meu pai, ao Tem Tudo de Madureira. Ali havia uma das Lojas Helal. Havia chovido muito, véspera de Natal, perto das 22h, o conselho dos pais era deixar para depois, provavelmente não haveria tempo de caminhar a pé por aquele caminho mesmo da primeira infância, só que agora em direção ao Tem Tudo já construído.

      O coração de criança via nisso um risco de perder o tão sonhado Fort Apache, da já mencionada temática. Alberto, o vizinho, já havia ganhado a Batalha de Tuiuti. Acidentes geográficos representados em mini-moitas verdinhas, cabanas, canhõezinhos,  arvorezinhas, soldadinhos caracterizados em seus uniformes, meus olhos brilhavam.

      Mesmo sabedor que o pedido de adiamento talvez também estivesse relacionado à carência econômica do casal, esse tipo de brinquedo era pedido antigo e o preço um pouco acima da média, por intuição eu pensava, mesmo solapando esse drama fiscal de consciência, tem de ser agora. Convenci o Cid, era mais fácil, seu gênio de roceiro combinava mais com os sonhos de uma criança, a esposa dele era mais calculista.

     Saímos à rua. Eu pela não dele. Calçamento de paralelepípedos de granito. Diferente daqui, quando tijolos substituem a falta absoluta desse material. Solo molhado da chuva recém estancada, quase argumento último de Dorcas para nos reter, seguimos até o fim da Mendes de Aguiar, dobramos à esquerda, na Maria Lopes e chegamos à loja.

      Fim de festa. Caixas e papéis inúmeros, agitação ainda premente, mas claramente indicando fim de estoque. Subimos o lance de escadas que davam para a calçada, logo perguntamos ao funcionário pelo brinquedo. Não. Acabara. Ainda era possível ver uma caixa do produto. Vazia. Ele mostrou. A saída era muita. Alberto mesmo já havia ganhado um num Natal passado. Mais abastados economicamente.

       Mas ele puxou lá de cima uma caixa última, que já que a coqueluche era o Fort Apache, nem ligavam para esse, que era chamado Caravana. Em meio aos índios, assim caracterizados, não soldados de farda azul e preta, mas cowboys multicoloridos em suas roupas, calças largas, camisas em punho, sempre de rifles e revólveres à mão, poses diversas.

     E carrocinhas, ou carroções, como nos filmes, duas delas cobertas de imitação de lonas, uma descoberta. Alguns cactus, imitando vegetação desértica. Numa das carroças, duas almofadinhas, parecendo aqueles patuás, como víveres, dois caixotes, escritos por fora rifles e dinamite, esse anterior com miniaturas de imitação dentro.

     Cavaleiros em seus cavalos, fossem cawboys ou índios, juntas de cavalos que puxavam as carroças, enfim, prêmio de consolação, na falta absoluta do tão sonhado Fort Apache. Talvez não tão intenso o brilho nos olhos, a amurada do Forte, originalmente de madeira, na época, a casinha dentro, as guaritas encaixadas nas quatro esquinas, o lote de soldadinhos com farda e outro com os índios dos EUA eram a grande moda e pedida da hora.

     Mas era esse ou nenhum e adiar entregava tudo às incertezas financeiras dos próximos anos. Não. Estava bom. Estava ótimo. E até se configurou um dado positivo: a Caravana era mais barata. Chegei a casa super feliz. Quer dizer, por um lado feliz, por outro meio frustrado. Armei, pela primeira vez, sobre a mesa enorme da sala, de madeira escura, móveis herdados por negociação feita com Dr. Mario de França Costa e d. Santinha, apelido de Maria José, sua esposa. Existem até hoje (os móveis).

       Com a Caravana, brinquei muito no chão de tacos de madeira, em Cascadura e no cimento do corredor lá fora, até 1967. Trouxe para o Méier, nesse ano, continuando a brincar no sinteco do ap da Magalhães Couto. Lincoln e Lyndon, com quem muito brinquei, herdaram, com mais outros soldadinhos e indiozinhos que adicionei à coleção, a partir do saldo de vendas avulsas da Lobras - Lojas Brasileiras. Tia Nice, mãe desses primos, quando eles alcançaram a adolescência, doou o que restou da Caravana às crianças do AEPG - Abrigo Evangélico da Pedra de Guaratiba.

      Aqui em casa restou um pele-vermelha que, estrategicamente, engatinha empunhando um rifle e uma pedra. Certamente quererá acertar um cowboy distraído e desavisado.

Batalha de Tuiuti


Atijolamento de rua em Rio Branco:
Conjunto Joafra
Pele vermelha restante,
recordação desses tempos


O cobiçado Forte Apache
da garotada dos anos 1960

Variação cultural, 
desta vez destacando os indígenas

Este feiticeiro também
fazia parte de meu plantel




Shopping do Méier, vendo-se
as Lojas Brasileiras - LOBRAS

Local da Loja Helal
do Tem Tudo, nos anos 1960

Plantel completo: diversos desses modelos
compunham os soldadinhos/cowboys
de meu plantel



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