terça-feira, 30 de outubro de 2018

Crônicas de uma vida V - O carro de bombeiros

         Não me lembro se foi presente de Cid, meu pai, ou de um dos amigos dele. Era perito em fazer e manter amizades.

       Foi um requintadíssimo carro de bombeiros. Feito de madeira, tinha o truck e, rebocada, a carroceria com a escada Magirus.

      Nesta parte, pinos de encaixe para os soldados, que eram de madeira torneada, dois deles com o fire helmet, tradicional chapéu de bombeiros americano, com uma aba atrás.

      Detalhe: havia, ainda, além da escada Magirus de madeira trabalhada, um carretel de madeira preta, no qual se enrolava a réplica de mangueira que, de modo realista era vazada, por dentro, permitindo simular um esguicho de água.

      A escada era o mais especial detalhe. Funcionava! Deslizava, por dentro da escada suporte, com beiral de madeira artesanalmente trabalhada e envernizada, a escada de dentro.

      Duas pequenas manivelinhas no suporte giratório permitiam, a primeira, erguer todo o conjunto no ângulo simulando ação e, a outra, permitia alcançar tamanho máximo, pelo deslizamento da parte interna.

      E os pneus? Também igual aos verdadeiros, tinham relevo, como se fossem para tração, semelhantes aos de tratores de verdade. Eram de borracha negra e escamoteáveis, isto é, encaixavam/desencaixavam da jansen (como chamam aro, aqui no Acre) de madeira.

       Roda simples, pneus da frente, duplas, como em caminhões de verdade, no truck desencaixável, todas escamoteáveis. Como brinquei com aquele caminhão!

      Certa vez a viúva portuguesa, Maria Luíza, tomava conta de mim. Provavelmente Dorcas circulava por seus contratos, fosse Nilópolis, Éden, Belford Roxo ou Nova Iguaçu. Deixava-me, nessa fase, aos cuidados de d. Maria Luíza.

       Levei comigo o caminhão escada Magirus. Numa dessas horas, com permissão dela, desloquei-me até a casa do Luís Carlos, aquelas geminadas, da entrada da rua, próximas à vila, com certeza para combinar com ele uns compromissos lúdicos.

      Retornei à casa da portuguesa amiga de Dorcas, companheira de tricô e receitas apetitosas, como o grão de bico com bacalhau, especialidade dela. Houve visitas na casa da portuguesa. E também houve tentativa de demonstrar o engenho da escada Magirus obviamente deslizante em meu carro de bombeiros.

       Deu ruim. Ocorria que, o barbantinho, que fazia descer/subir a mais delicada escada interna, enroscava-se e, quando ocorria, nada adiantava continuar girando a manivelinha no sentido horário porque, inopinadamente, a escada não subia, retornava, subia, retornava.

      Quando cheguei e fui advertido, por pergunta, do por que ocorria a bad function, uma vez tendo eu deduzido, ora vejam só, que besta, mexeram sem minha autorização no meu carro de bombeiros, gente, pela primeira vez na vida vi aflorar o velho homem.

      Para os de pouca intimidade com termos bíblicos, "velho homem" é o demônio íntimo de cada um. O meu desembestou-se, sabe-se lá de que modo até ali reprimido, literalmente, numa linguagem infantil, mas dura e calculadamente ofensiva, amaldiçoei a casa. Ora, remexerem sem minha autorização!

      Ficávamos nessa varandinha dos fundos, um puxadinho lateral, de telhavam, com mesinha e cadeiras, onde ali mesmo havíamos prazerosamente lanchado. Quando as nuvens tenebrosas baixaram, coroando com teimosia e pirraça toda a aleivosia de palavras, culminei tomando o caminhão e, contrariando a inquilina de Matilde, rumei para a casa do Luís Carlos.

      Certamente contrariando d. Maria Luíza. Mas fui. Ora, Cid Mauro, dizia ela com sotaque luso, "a sinhôra sua mãi num vai gostaire". Teimei. Fui. Desabalado. Eram já para lá das 17h e tanto, quase anoitecido totalmente. Lembro, porque eu me distraía com meu amigo na área dos fundos. Não foi nada difícil reparar o dano da cordinha encrencada. Logo com habilidade resolvi.

       Essa foi a lógica da minha má criação. Garoto malcrioso, como se dizia. E já estava corrigido o problema. Fácil assim. O caminhão estava, portanto, lá no meado da área. Distraí-me noutra ocupação com Luís Carlos.

      Havia uma escada imensa, de verdade, colada à parede que dava acesso ao telhado da casa vizinha. Estas, da frente, eram geminadas, mas as de trás eram no começo de uma vila. Não sei quem subiu, se alguém  da casa, mais provável, pelo adiantado da hora. Olhos esbugalhados e totalmente inoperante, assisti à queda da escada de, pelo menos, uns quatro metros e todo o peso dessas madeiras antigas sobre minha escada Magirus de frágil madeirinha artesanal envernizada.

      Impacto tão forte, que a vi equilibrar-se, oscilar qual pêndulo sobre o caminhão de madeira, carro de bombeiros vermelho, como câmera lenta, os pneus de borracha chegaram a amortecer o baque, também oscilando, deformando e reformando-se. Como era resistente a madeira do carro, como eram borracha rocha aqueles pneus.

      De qualquer modo, foi um milagre. Não partir ao meio a frágil estrutura da Magirus, mas somente estraçalhar o beiral trabalhado com arte, de lado e outro, foi lucro. Retiramos a escada. Devolvemos ao nível, devida inclinação, mais cuidadosamente aprumada do que o adulto que subiu houvera feito.

     Recolhi o carro em parte esbagaçado. Humilhado, associando, na mente de criança, minha desfeita ao castigo obtido, fui avistar-me com a vizinha e minha mãe, muito provavelmente àquela hora, justo por chegar. Não me lembro os detalhes desse encontro.

     Mas a fé de criança, o senso de arrependimento, a confissão e o perdão materializaram-se num reparo miraculoso. Até hoje lembro a fisionomia do sujeito que examinou, à porta da casa de Cascadura, sobre a tábua de passar roupa que Dorcas ali punha, para aproveitar a aragem que entrava. O caminhão estivera cuidadosamente guardado e então, por ocasião do artífice de ocasião, lá em casa para resolver outros caraminguás, expúnhamos à sua avaliação.

      Era um carpinteiro. Com que carga de esperança fui buscar o brinquedo. Com que tamanha alegria constatei a possibilidade do reparo. Examinou as duas escadas preservadas, com beiral totalmente esmigalhado. Esse camarada restaurou melhor como nunca. Só faltou envernizar, que ele recomendou fazer posteriormente. Nunca feito. Mais tarde tudo foi esclarecido.

       Confissão a Dorcas, mediação junto à vizinha, vergonha definitiva. Tudo acertado. Por um tempo, fiquei cabreiro, sem saber até onde a minha barra estava limpa. Dora, a filha, me falha a memória quando interveio, se agora, no desenlace, ou se na constatação do defeito que provocaram no manuseio, ao demonstrar o mecanismo às visitas.

      Como brinquei com esse carro de bombeiros. E foi didático, na demonstração dos danos do velho homem, esse demônio íntimo, que nunca é infantil, o ácido de veneno que espalha e quanto, pela graça de Deus, profusamente derramada, se faz restauração. Simbólico esse brinquedo.

A família Cândido, a filha Dora Elsa 
e d. Maria Luíza, amiga de d. Maninha,
esta esposa de "dotoire" Cid

A frente do truck parecia com esta;
os bombeiros de madeira, com estes,
sendo os meus coloridos


Bem próximo do modelo, 
mas o meu era totalmente colorido,
com truck e carroceria escamoteáveis,
e pneus adaptáveis de borracha

Estilo do capacete, aba de plástico presa
ao "fire helmet" de madeira, adaptável 
a um pino na cabeça do boneco de madeira

Escada Magirus

Parecidos, os meus eram afilados
e esguios, com calças azuis, 
fardas vermelhas e capacetes
escamoteáveis, por pinos, nas cabeças



Vila ao lado da casa do Luís Carlos

Casas geminadas: numa delas residia o Luís Carlos

Base da escada: no modelo
de meu tempo era de madeira,
com a manivelinhas para deslize
da parte interna sobre a parte fixa

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