terça-feira, 3 de setembro de 2024

Estudos sobre Karl Barth e teologia pública - Studies on Karl Barth and public theology - Final

 

Cidadania no céu e na terra a partir de Alexander Massmann

A coleção teologia pública (Öffentliche Theologie) da editora alemã Evangelische Verlagsanstalt de Leipzig, editada pelos destacados teólogos Heinrich Bedford-Strohm: e Wolfgang Huber conta com um número que relaciona Karl Barth, cidadania e ética: a obra de Alexander Massmann, intitulada Bürgerrecht im Himmel und auf Erden: Karl Barths Ethik (Cidadania no céu e na terra: a ética de Karl Barth, neste texto utiliza-se como referência a versão inglesa). A tese é de que a ética barthiana resulta na compreensão da responsabilidade pública da igreja levando a uma percepção politicamente ativa de justiça (MASSMANN, 2015, p. xlii).

Nessa direção, Massmann compreende que a ética barthiana, trata das formas práticas em que o evangelho é afirmado de forma concreta, tal relação busca um “[...] labor ético que permite uma transformação que seja crítica, criativa e construtiva” (MASSMANN, 2015, p. xli). Ademais, “[...] como a relevância do evangelho não pode ser separada de formas externas de vida, a igreja encara o desafio de como formas particulares de correspondência prática ao evangelho podem ser advogadas diante de um público mais amplo”. Contudo, essa relevância não deve ser confundida com qualquer forma de monopolização do espaço público, nem mesmo moral ou espiritual. De modo radical, a atuação pública da igreja cristã tem a ver com a graça. “A principal razão para o novo ethos cristão, contudo, pode ser descrita como gratidão” (MASSMANN, 2015, p. xlii). 

Além destes aspectos, a abordagem de Massmann reforça a compreensão de que a teologia barthiana parte de uma perspectiva trinitária dentro da qual a cristologia desempenha um papel decisivo, sendo que a ética cristã estaria voltada à conformação a Cristo e sua cruz. Nessa direção, diante do que chama de “discipulado cruciforme” (“cruciform discipleship”), e da noção de que é na humilhação que o filho de Deus é ainda mais exaltado (MASSMANN, 2015, p. xlviii), se percebem dois movimentos que, de certa forma, sumarizam o método teológico barthiano, a saber, analogia fidei e dialética. A primeira estabelece sua base na precedência da fé e do evangelho; a segunda é demonstrada na tensão paradoxal entre humilhação e exaltação. Ambas chaves, contudo, retornam ao mesmo ponto de partida, a saber, a compreensão da revelação por meio do que se reconhece como Palavra de Deus, em sua base escriturística e, mais profundamente, em Jesus Cristo. Também a ética tem a ver com este Cristo crucificado, na medida em que a teologia da cruz instrui a prática do sacrifício e do arrependimento (MASSMANN, 2015, p. 4). Elementos que, na vida pública, tem a ver com a constante reflexão do humano sobre sua condição sob o pecado, bem como com sua atuação em favor de outrem.

Massmann desenvolve um caminho em que afirma repetidas vezes a precedência do evangelho, elemento que conclui de sua análise de Evangelho e Lei e que utiliza como chave hermenêutica em sua leitura da KD. De forma sintética, portanto, compreende que a ação moral “empresta uma moldura prática à forma como cristãos/ãs articulam seu engajamento com o evangelho. De fato, isto é o que constitui a obrigação moral” (MASSMANN, 2015, p. 439). Tal compreensão da ética, indica Massmann, poderia receber a crítica de ser excessivamente eclesial e com pouca compatibilidade pública diante de um contexto pluralista. Contudo, sua ênfase na justiça social, na responsabilidade pública da igreja, e na tradução empírica do evangelho permitem a construção de pontes com o debate público (MASSMANN, 2015, p. 446). Dessa forma, não apenas o evangelho aponta para a ética, mas também as próprias questões vividas no espaço público podem ser consideradas parábolas do Reino, na medida em que apontam para a misericórdia de Deus em Jesus Cristo (MASSMANN, 2015, p. 447).

Assim, a criação (KD III) enquanto base externa da aliança (KD II) torna-se espaço das possibilidades contingentes que operam para o melhoramento da vida de forma criativa por meio de ações responsáveis (MASSMANN, 2015, p. 459). Com efeito, a ética barthiana encontra uma base marcadamente eclesiológica, isto é, falar de teologia pública a partir de Barth, em última análise, é falar sobre a igreja no espaço público, fato corroborado por suas célebres obras O cristão na sociedade e Comunidade cristã e comunidade civil.

Massmann destaca a constante atenção dedicada por Barth à relação responsável que a igreja deve ter com o Estado civil e com a justiça social. “O aspecto da justiça social recebe clara expressão na KD II/1”. Atenção especial deve ser dedicada aos social e economicamente pobres, as viúvas e aos órfãos. Isto é, Barth recorre à tradição bíblica que pode ser encontrada em textos legais, narrativos, cúlticos e proféticos. Além de estar em consonância com a preocupação de Jesus com aqueles e aquelas que vivem à margem da sociedade. O mesmo acento na justiça social é também encontrado nas primeiras comunidades cristãs. “Tal dimensão econômica e social da ação cristã reflete a prioridade do evangelho em relação à lei, na medida em que a ação social corresponde à libertação por Deus [...]” (MASSMANN, 2015, p. 468-469). De tal forma, pensa-se a igreja enquanto comprometida com o estabelecimento de uma democracia constitucional, fomentando justiça social e atuando na sociedade civil (MASSMANN, 2015, p. 471). Também o papel da economia para a paz e justiça social são pensadas por Barth, em especial a partir de suas elaborações sobre reconciliação e ética, sendo que a questão econômica pode ser ambígua, cabe também aí a luta pela clarificação dos efeitos políticos das escolhas econômicas (MASSMANN, 2015, p. 472-474).

A precedência do evangelho indica também que toda a ação realizada provém de uma outra ação já feita, isto é, para o/a cristão/ã a obra de Deus em Jesus Cristo já está realizada, diante do que resta aguardar seu Senhor. Contudo, esta espera deve ser ativa. “A realização de Deus em Cristo providencia orientação e motivação para uma ação sóbria” (MASSMANN, 2015, p. 474).

O viés pneumatológico barthiano tem a ver também com esta disposição do/a cristão/ã e de sua comunidade de atuarem concretamente na vida pública. “Como o Espírito é o Espírito de Cristo, cristãos/ãs justificados/as não são deixados com apenas um ideal vago de amor, mas estarão ao lado daqueles que sistematicamente são excluídos da sociedade”. Em virtude disso, “cristãos/ãs participarão das dimensões estruturais da justiça legal e social”. A justificação operada por Cristo na ressurreição, neste contexto, “constitui uma parte da responsabilidade cristã por condições justas na sociedade, o que Barth compreende tanto em termos de justiça social quanto de uma democracia constitucional” (MASSMANN, 2015, p. 479). 

A obra do Espírito, portanto, envolve a igreja como um todo em relação com a sociedade, no que pode ser compreendido como salvação em sua dimensão social. Aspecto especialmente desenvolvido em O Espírito Santo e a edificação da comunidade cristã (The Holy Spirit and the Upbuilding of the Christian Community KD IV/2 §67). Além disso, o Espírito Santo aponta para uma ação ampla de Deus no mundo sempre convidando e empoderando a humanidade (MASSMANN, 2015, p. 479-480).

Em resumo, a proposta de Massmann, a saber, de uma cidadania no céu e na terra, conjuga a relação entre evangelho e ética. Isto é, compreende que existem profundas implicações éticas na teologia barthiana. Contudo, sua ética nunca está desligada do evangelho e, portanto, da ação de Jesus Cristo. Em virtude disso, pensa que a igreja deve atuar no espaço público movida por algumas convicções básicas de sua tradição teológica, em especial: o ministério de Jesus que acontece em relação com marginalizados/as e excluídos/as de seu contexto; e a atuação do Espírito Santo que atualiza as relações entre evangelho e ética empoderando cristãos/ãs a agirem na sociedade. Com efeito, Massmann pensa uma íntima relação entre cristologia, pneumatologia e eclesiologia em que cristãos e cristãs são chamados a encarnarem a realidade em que vivem de forma transformadora. Esta dimensão profética da tradição cristã, rememorada por Massmann na opção pela ação junto ao pobre, a viúva, o órfão, aos marginalizados/as e excluídos/as econômica e socialmente, é aspecto constituinte de uma fala teológica que, presente no meio acadêmico, não seja apenas tradução de conceitos teológicos, mas também apelo crítico em relação às estruturas de poder instituídas no espaço público. O bem comum, em especial o bem daqueles e daquelas que mais sofrem constitui-se aspecto decisivo na construção de uma teologia pública coerente com a tradição bíblica e com a ética barthiana.

Considerações finais 

Os estudos sobre Karl Barth e teologia pública rareiam, possuem esparsa divisão temporal e não compartilham de uma mesma conceituação de teologia pública. Contudo, há continuidades na forma com que tratam de Barth. É ponto pacífico que se parta da atuação pública do teólogo de Basileia, ao que se destaca sua reação ao nazismo e seu envolvimento com a Bekennende Kirche (Igreja Confessante). Rasmusson, de forma hábil, soma a esta biografia pública de Barth sua reação ao liberalismo teológico que esteve relacionado com o apoio à política de guerra alemã já no contexto da Primeira Grande Guerra, bem como a decepção de Barth com professores que haviam sido importantes em sua formação e com quem mantinha uma relação de amizade e às vezes até familiar, como no caso de Martin Rade.

É em virtude deste contexto que Rasmusson destaca na teologia barthiana, seu forte cristocentrismo e precedência da fé. Aspectos retomados por Thiemann como elementos importantes para a teologia contemporânea, uma vez que determinariam onde estaria o critério decisório na relação entre fé cristã e racionalidade moderna. Também Massmann lê o complexo barthiano a partir da precedência do evangelho. O acento na centralidade de Jesus Cristo para o fazer teológico está presente de igual modo em Weaver que, ao pensar o contexto de pluralismos, entende que a teologia cristã poderia usufruir desta fundamentação barthiana para o diálogo inter-religioso. 

Assim como Rasmusson, Laubscher parte da noção barthiana de leitura da realidade como ela é em Jesus Cristo. Assim, por ser a base da existência é que tudo o que existe tem a ver com Cristo. Com isso, para Laubscher, a vida pública é aspecto inerente ao pensamento teológico. Na esteira de Laubscher, Senokoane e Kritzinger refletem sobre a realidade sul-africana, propondo uma releitura de Barth como um clássico, mais especificamente as Tambacher Rede, e destacam as noções de Cristo em nós e de comunidade cristã aberta a todas as pessoas.

Além dos aspectos barthianos, cabe também apontar para a pluralidade de compreensão dos autores sobre teologia pública. Laubscher e os autores Senokoane e Kritzinger pensam o público como o contexto sul-africano, tratando da relação entre teologia e sociedade/política. Thiemann pensa o público como a relação entre teologia e cultura. Weaver, por sua vez, tematiza a questão do pluralismo cultural e do diálogo inter-religioso como assuntos de teologia pública. Rasmusson, investiga a teologia de guerra alemã, principalmente representada pelos Deutsche Christen, como uma teologia pública – diante dessas formas de elaboração teológica cabe indicar uma perspectiva de contínua criticidade e auto-criticidade da teologia (cf. ZEFERINO, 2020). A elaboração de Massmann, por sua vez, aloca a teologia barthiana na relação com a cidadania por meio da recuperação de sua ética enquanto engajada com as questões do espaço público por estar embasada no evangelho.

A diversidade do que se compreende por teologia pública nesses trabalhos corrobora a percepção de uma polissemia terminológica, mesmo assim, ao se considerar as relações entre teologia e espaço público e a necessidade de tradução da tradição cristã para dentro dos debates da sociedade, nota-se na teologia barthiana, como perspectiva confessional que vivida em sua profundidade se doa ao pensamento público sobre o humano, a possibilidade de construção de uma teologia pública. Uma antropologia barthiana como aquela ensejada pela ideia de um Cristo em nós resulta numa encarnação na realidade humana de tal modo que o próximo não seja invisibilizado. Além disso, a tarefa contínua de crítica e auto-crítica teológica aliada a um senso histórico de luta contra as injustiças também são elementos presentes na teologia de Karl Barth que podem ajudar a pensar a condição humana nas bases de uma teologia pública.

[1] O texto aqui apresentado é uma versão revisada de material oriundo de nosso tese doutoral intitulada Karl Barth e teologia pública: contribuições ao discurso teológico público na relação entre clássicos teológicos e res publica no horizonte da teologia da cidadania (ZEFERINO, 2018).

Referências

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ZEFERINO, J. Karl Barth e teologia pública: contribuições ao discurso teológico público na relação entre clássicos teológicos e res publica no horizonte da teologia da cidadania. Tese (Doutorado em Teologia). Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Curitiba, 2018.

https://revistas.pucsp.br/index.php/culturateo/article/view/51826/41035

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