Cidadania no céu e na
terra a partir de Alexander Massmann
A coleção teologia
pública (Öffentliche Theologie) da editora alemã Evangelische Verlagsanstalt de
Leipzig, editada pelos destacados teólogos Heinrich Bedford-Strohm: e Wolfgang
Huber conta com um número que relaciona Karl Barth, cidadania e ética: a obra
de Alexander Massmann, intitulada Bürgerrecht im Himmel und auf Erden:
Karl Barths Ethik (Cidadania no céu e na terra: a ética de Karl
Barth, neste texto utiliza-se como referência a versão inglesa). A tese é de
que a ética barthiana resulta na compreensão da responsabilidade pública da
igreja levando a uma percepção politicamente ativa de justiça (MASSMANN, 2015,
p. xlii).
Nessa direção,
Massmann compreende que a ética barthiana, trata das formas práticas em que o
evangelho é afirmado de forma concreta, tal relação busca um “[...] labor ético
que permite uma transformação que seja crítica, criativa e construtiva”
(MASSMANN, 2015, p. xli). Ademais, “[...] como a relevância do evangelho não
pode ser separada de formas externas de vida, a igreja encara o desafio de como
formas particulares de correspondência prática ao evangelho podem ser advogadas
diante de um público mais amplo”. Contudo, essa relevância não deve ser
confundida com qualquer forma de monopolização do espaço público, nem mesmo
moral ou espiritual. De modo radical, a atuação pública da igreja cristã tem a
ver com a graça. “A principal razão para o novo ethos cristão, contudo, pode
ser descrita como gratidão” (MASSMANN, 2015, p. xlii).
Além destes
aspectos, a abordagem de Massmann reforça a compreensão de que a teologia barthiana
parte de uma perspectiva trinitária dentro da qual a cristologia desempenha um
papel decisivo, sendo que a ética cristã estaria voltada à conformação a Cristo
e sua cruz. Nessa direção, diante do que chama de “discipulado cruciforme” (“cruciform
discipleship”), e da noção de que é na humilhação que o filho de Deus é
ainda mais exaltado (MASSMANN, 2015, p. xlviii), se percebem dois movimentos
que, de certa forma, sumarizam o método teológico barthiano, a saber, analogia
fidei e dialética. A primeira estabelece sua base na precedência da
fé e do evangelho; a segunda é demonstrada na tensão paradoxal entre humilhação
e exaltação. Ambas chaves, contudo, retornam ao mesmo ponto de partida, a
saber, a compreensão da revelação por meio do que se reconhece como Palavra
de Deus, em sua base escriturística e, mais profundamente, em Jesus
Cristo. Também a ética tem a ver com este Cristo crucificado, na medida em que
a teologia da cruz instrui a prática do sacrifício e do arrependimento
(MASSMANN, 2015, p. 4). Elementos que, na vida pública, tem a ver com a
constante reflexão do humano sobre sua condição sob o pecado, bem como com sua
atuação em favor de outrem.
Massmann
desenvolve um caminho em que afirma repetidas vezes a precedência do evangelho,
elemento que conclui de sua análise de Evangelho e Lei e que
utiliza como chave hermenêutica em sua leitura da KD. De forma sintética,
portanto, compreende que a ação moral “empresta uma moldura prática à forma
como cristãos/ãs articulam seu engajamento com o evangelho. De fato, isto é o
que constitui a obrigação moral” (MASSMANN, 2015, p. 439). Tal compreensão da
ética, indica Massmann, poderia receber a crítica de ser excessivamente
eclesial e com pouca compatibilidade pública diante de um contexto pluralista.
Contudo, sua ênfase na justiça social, na responsabilidade pública da igreja, e
na tradução empírica do evangelho permitem a construção de pontes com o debate
público (MASSMANN, 2015, p. 446). Dessa forma, não apenas o evangelho aponta
para a ética, mas também as próprias questões vividas no espaço público podem
ser consideradas parábolas do Reino, na medida em que apontam
para a misericórdia de Deus em Jesus Cristo (MASSMANN, 2015, p. 447).
Assim, a criação
(KD III) enquanto base externa da aliança (KD II) torna-se espaço das
possibilidades contingentes que operam para o melhoramento da vida de forma
criativa por meio de ações responsáveis (MASSMANN, 2015, p. 459). Com efeito, a
ética barthiana encontra uma base marcadamente eclesiológica, isto é, falar de
teologia pública a partir de Barth, em última análise, é falar sobre a igreja
no espaço público, fato corroborado por suas célebres obras O cristão
na sociedade e Comunidade cristã e comunidade civil.
Massmann destaca a
constante atenção dedicada por Barth à relação responsável que a igreja deve
ter com o Estado civil e com a justiça social. “O aspecto da justiça social
recebe clara expressão na KD II/1”. Atenção especial deve ser dedicada aos
social e economicamente pobres, as viúvas e aos órfãos. Isto é, Barth recorre à
tradição bíblica que pode ser encontrada em textos legais, narrativos, cúlticos
e proféticos. Além de estar em consonância com a preocupação de Jesus com
aqueles e aquelas que vivem à margem da sociedade. O mesmo acento na justiça
social é também encontrado nas primeiras comunidades cristãs. “Tal dimensão
econômica e social da ação cristã reflete a prioridade do evangelho em relação
à lei, na medida em que a ação social corresponde à libertação por Deus [...]”
(MASSMANN, 2015, p. 468-469). De tal forma, pensa-se a igreja enquanto
comprometida com o estabelecimento de uma democracia constitucional, fomentando
justiça social e atuando na sociedade civil (MASSMANN, 2015, p. 471). Também o
papel da economia para a paz e justiça social são pensadas por Barth, em
especial a partir de suas elaborações sobre reconciliação e ética, sendo que a
questão econômica pode ser ambígua, cabe também aí a luta pela clarificação dos
efeitos políticos das escolhas econômicas (MASSMANN, 2015, p. 472-474).
A precedência do evangelho
indica também que toda a ação realizada provém de uma outra ação já feita, isto
é, para o/a cristão/ã a obra de Deus em Jesus Cristo já está realizada, diante
do que resta aguardar seu Senhor. Contudo, esta espera deve ser ativa. “A
realização de Deus em Cristo providencia orientação e motivação para uma ação
sóbria” (MASSMANN, 2015, p. 474).
O viés
pneumatológico barthiano tem a ver também com esta disposição do/a cristão/ã e
de sua comunidade de atuarem concretamente na vida pública. “Como o Espírito é
o Espírito de Cristo, cristãos/ãs justificados/as não são deixados com apenas
um ideal vago de amor, mas estarão ao lado daqueles que sistematicamente são
excluídos da sociedade”. Em virtude disso, “cristãos/ãs participarão das
dimensões estruturais da justiça legal e social”. A justificação operada por
Cristo na ressurreição, neste contexto, “constitui uma parte da
responsabilidade cristã por condições justas na sociedade, o que Barth
compreende tanto em termos de justiça social quanto de uma democracia
constitucional” (MASSMANN, 2015, p. 479).
A obra do
Espírito, portanto, envolve a igreja como um todo em relação com a sociedade,
no que pode ser compreendido como salvação em sua dimensão social. Aspecto
especialmente desenvolvido em O Espírito Santo e a edificação da
comunidade cristã (The Holy Spirit and the Upbuilding of the
Christian Community KD IV/2 §67). Além disso, o Espírito Santo aponta
para uma ação ampla de Deus no mundo sempre convidando e empoderando a
humanidade (MASSMANN, 2015, p. 479-480).
Em resumo, a
proposta de Massmann, a saber, de uma cidadania no céu e na terra,
conjuga a relação entre evangelho e ética. Isto é, compreende que existem
profundas implicações éticas na teologia barthiana. Contudo, sua ética nunca
está desligada do evangelho e, portanto, da ação de Jesus Cristo. Em virtude
disso, pensa que a igreja deve atuar no espaço público movida por algumas
convicções básicas de sua tradição teológica, em especial: o ministério de
Jesus que acontece em relação com marginalizados/as e excluídos/as de seu
contexto; e a atuação do Espírito Santo que atualiza as relações entre
evangelho e ética empoderando cristãos/ãs a agirem na sociedade. Com efeito,
Massmann pensa uma íntima relação entre cristologia, pneumatologia e
eclesiologia em que cristãos e cristãs são chamados a encarnarem a realidade em
que vivem de forma transformadora. Esta dimensão profética da tradição cristã,
rememorada por Massmann na opção pela ação junto ao pobre, a viúva, o órfão,
aos marginalizados/as e excluídos/as econômica e socialmente, é aspecto
constituinte de uma fala teológica que, presente no meio acadêmico, não seja
apenas tradução de conceitos teológicos, mas também apelo crítico em relação às
estruturas de poder instituídas no espaço público. O bem comum, em especial o
bem daqueles e daquelas que mais sofrem constitui-se aspecto decisivo na
construção de uma teologia pública coerente com a tradição bíblica e com a
ética barthiana.
Considerações
finais
Os estudos sobre
Karl Barth e teologia pública rareiam, possuem esparsa divisão temporal e não compartilham de uma
mesma conceituação de teologia pública. Contudo, há continuidades na forma com
que tratam de Barth. É ponto pacífico que se parta da atuação pública do
teólogo de Basileia, ao que se destaca sua reação ao nazismo e seu envolvimento
com a Bekennende Kirche (Igreja Confessante). Rasmusson, de
forma hábil, soma a esta biografia pública de Barth sua reação ao liberalismo
teológico que esteve relacionado com o apoio à política de guerra alemã já no contexto
da Primeira Grande Guerra, bem como a decepção de Barth com professores que
haviam sido importantes em sua formação e com quem mantinha uma relação de
amizade e às vezes até familiar, como no caso de Martin Rade.
É em virtude deste
contexto que Rasmusson destaca na teologia barthiana, seu forte cristocentrismo
e precedência da fé. Aspectos retomados por Thiemann como elementos importantes
para a teologia contemporânea, uma vez que determinariam onde estaria o
critério decisório na relação entre fé cristã e racionalidade moderna. Também
Massmann lê o complexo barthiano a partir da precedência do evangelho.
O acento na centralidade de Jesus Cristo para o fazer teológico está presente
de igual modo em Weaver que, ao pensar o contexto de pluralismos, entende que a
teologia cristã poderia usufruir desta fundamentação barthiana para o diálogo
inter-religioso.
Assim como
Rasmusson, Laubscher parte da noção barthiana de leitura da realidade como ela
é em Jesus Cristo. Assim, por ser a base da existência é que tudo o que existe
tem a ver com Cristo. Com isso, para Laubscher, a vida pública é aspecto
inerente ao pensamento teológico. Na esteira de Laubscher, Senokoane e
Kritzinger refletem sobre a realidade sul-africana, propondo uma releitura de
Barth como um clássico, mais especificamente as Tambacher Rede, e
destacam as noções de Cristo em nós e de comunidade cristã
aberta a todas as pessoas.
Além dos aspectos
barthianos, cabe também apontar para a pluralidade de compreensão dos autores
sobre teologia pública. Laubscher e os autores Senokoane e Kritzinger pensam o
público como o contexto sul-africano, tratando da relação entre teologia e
sociedade/política. Thiemann pensa o público como a relação entre teologia e
cultura. Weaver, por sua vez, tematiza a questão do pluralismo cultural e do
diálogo inter-religioso como assuntos de teologia pública. Rasmusson, investiga
a teologia de guerra alemã, principalmente representada pelos Deutsche
Christen, como uma teologia pública – diante dessas formas de elaboração teológica
cabe indicar uma perspectiva de contínua criticidade e auto-criticidade da
teologia (cf. ZEFERINO, 2020). A elaboração de Massmann, por sua vez, aloca a
teologia barthiana na relação com a cidadania por meio da recuperação de sua
ética enquanto engajada com as questões do espaço público por estar embasada no
evangelho.
A diversidade do
que se compreende por teologia pública nesses trabalhos corrobora a percepção
de uma polissemia terminológica, mesmo assim, ao se considerar as relações
entre teologia e espaço público e a necessidade de tradução da tradição cristã
para dentro dos debates da sociedade, nota-se na teologia barthiana, como
perspectiva confessional que vivida em sua profundidade se doa ao pensamento
público sobre o humano, a possibilidade de construção de uma teologia pública.
Uma antropologia barthiana como aquela ensejada pela ideia de um Cristo
em nós resulta numa encarnação na realidade humana de tal modo que o
próximo não seja invisibilizado. Além disso, a tarefa contínua de crítica e
auto-crítica teológica aliada a um senso histórico de luta contra as injustiças
também são elementos presentes na teologia de Karl Barth que podem ajudar a
pensar a condição humana nas bases de uma teologia pública.
[1] O texto aqui apresentado é uma versão revisada de material oriundo
de nosso tese doutoral intitulada Karl Barth e teologia pública: contribuições ao discurso
teológico público na relação entre clássicos teológicos e res publica no horizonte da teologia da cidadania (ZEFERINO, 2018).
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https://revistas.pucsp.br/index.php/culturateo/article/view/51826/41035
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