Resumo: Karl Barth (1886-1968) foi um dos mais
destacados teólogos do século XX. Sua vasta obra tem sido revisitada por
diversos olhares. A teologia pública, nomenclatura que começa a ser utilizada
em meados da década de 1970, e ainda em desenvolvimento, oferece espaço para
uma releitura de complexos teológicos de outrora. No Brasil, as relações entre
teologia e espaço público, bem como a demanda por um discurso público da
teologia no âmbito acadêmico, são características que marcam as pesquisas
recentes na área. Neste texto, por meio de uma análise bibliográfica,
analisam-se diferentes propostas de relação entre Karl Barth e teologia
pública, o que resulta na percepção tanto de uma pluralidade de formas de
desenvolver essa conexão, quanto de compreensões sobre aquilo que se denomina
de teologia pública. Abordar a relevante atuação histórica do teólogo de
Basileia, lê-lo como um clássico, ou ainda a emergência de uma tradução pública
de elementos ligados à sua base cristocêntrica são modos de atualização do
legado teológico barthiano.
Palavras-chave: Teologia Pública. Teologia
Política. Karl Barth. Ética teológica.
Abstract: Karl Barth (1886-1968) was one of the
main theologians in the 20th century. His vast works have been revisited by
various places. Public theology, terminology that started to be used in the
1970’s, and still in progress, offers space for a new reading of yesteryear
theological approaches. In Brazil, the connections between theology and public
space, as well as the demand for a publica theological discourse in the
university are some characteristics that mark recent researches in this study
field. The present text, through a bibliographical analysis, explores different
ways to relate Karl Barth and public theology, resulting in the understanding
that there is a plurality of manners to develop that relationship, and that the
works vary on their comprehension of public theology. To investigate Barth’s
relevant historical actions, reading him as a classic, and the emergency to
translate his Christocentric approach in a public language are some ways to
update Barth’s theological legacy.
Keywords: Public Theology. Political Theology.
Karl Barth. Theological Ethics.
Introdução [1]
Um olhar da atualidade para o período de Karl Barth (1886-1968) pode
resultar na percepção desse importante pensador cristão como um teólogo público
ou teólogo político, tanto por sua elaboração teológica quanto por sua atuação
pública. Sem pretender estabelecer anacronismos, o que se tem em mente é que a
vida e a teologia de Barth podem servir de impulso para se pensar uma teologia
pública na atualidade. Efetivamente, esta relação já foi desenvolvida por
outros autores. Rasmusson (2005) se ocupa do pensamento de Barth à luz de seu
contexto histórico, em específico sua reação ao que chama de teologia de guerra
alemã como uma teologia pública. Thiemann (1991), também considerando aspectos
históricos, pensa a relação entre fé cristã e racionalidade moderna. Weaver
(1998) propõe uma teologia pública que, simultaneamente, possa dar um
testemunho missionário a não cristãos e esteja aberta para receber de não
cristãos um testemunho acerca do que entende como parábolas do reino.
O texto de Laubscher (2007) trata da relevância de Barth enquanto teólogo
público para o processo de redemocratização pós-Apartheid na África do Sul,
intento também realizado por Senokoane e Kritzinger (2007). Alexander Massmann
(2011, 2015), alocado no âmbito das discussões sobre ética barthiana, com
ênfase no aspecto da precedência do evangelho conjuga ética e
atuação política. Após a análise destes textos elabora-se uma síntese, à guisa
de conclusão, acerca do estado da discussão no que tange a relação entre Karl
Barth e teologia pública.
A teologia de
guerra alemã como teologia pública: os estudos de Rasmusson
O teólogo sistemático sueco, Arne Rasmusson, trata do pensamento de Karl
Barth em relação com os movimentos teológicos do início do século XX. Ao
comentar acerca da impressão gerada em Barth dos eventos de 1914, em especial
que teólogos tenham apoiado a política belicista germânica, Rasmusson destaca
que “[...] se alguém ler o que ele [Barth] escreveu naquele tempo, se perceberá
que o que ele achou mais ultrajante foi a forma como teólogos usaram Deus para
suportar a política de guerra” (RASMUSSON, 2005, p. 512). Nesse contexto,
Rasmusson destaca o pensamento de Troeltsch que chega a enxergar o exército
alemão como ferramenta de Deus na história, afora o nacionalismo suportado com
princípios de fé e a ideia da nação alemã compreendida como encarnação do
Espírito (Hegel) na história (RASMUSSON, 2005, p. 512). Compreende Rasmusson,
portanto, que é a este tipo de liberalismo que Barth se oporia e procuraria
desenvolver uma alternativa (RASMUSSON, 2005, p. 513). Também o apoio à
teologia de guerra alemã de Adolf von Harnack, mas principalmente o de Wilhelm
Hermann tiveram grande impacto em Barth (RASMUSSON, 2005, p. 514). O
nacionalismo era compreendido por Troeltsch como princípio para a ética, e para
Herrmann ele teria precedência em relação ao cristianismo. “O evangelho
original não tem nada a ver com o mundo da política, ele é sobre Deus e a alma
e sobre um reino escatológico”. Desta forma, “ao invés do reino veio a igreja e
seu compromisso com a realidade mundial. Na modernidade, este compromisso é uma
coisa do passado e cristianismo se tornou um aspecto da vida íntima pessoal”
(RASMUSSON, 2005, p. 516). Sobre esses autores, Rasmusson afirma o seguinte:
Ademais, teólogos como Hermann e Troeltsch foram responsáveis por este
estado das coisas enquanto fortemente suportaram e desenvolveram estas visões e
trabalharam contra qualquer forma de igreja e teologia que poderia ser uma
fonte de oposição. Teólogos, neste período, desempenharam um importante papel
na discussão pública. Faziam o tipo de teologia pública de influência que hoje
sonham os teólogos (RASMUSSON, 2005, p. 517).
É neste contexto, portanto, que deve ser avaliada a reação de Barth ao
liberalismo teológico. Assim, “a teologia de Barth depois de 1914 é sua
tentativa de compreender-se fora desta desastrosa compreensão de cristianismo”
(RASMUSSON, 2005, p. 517). Em última análise, a principal diferença entre Barth
e aqueles teólogos são seus pontos de partida para compreender a realidade, enquanto o primeiro pensa
a realidade a partir da cristologia, os outros a pensam em chave política
(RASMUSSON, 2005, p. 521). Em sua conclusão Rasmusson afirma:
Este debate acerca da natureza da teologia e da teologia pública
continua hoje. A maioria das autodenominadas teologias públicas, inclusive
algumas barthianas, continuam de alguma forma a teologia representada por
Troeltsch, Herrmann e Rade. O ponto de partida implícito ou explícito para eles
é uma dada imaginação sócio-cultural, uma narrativa assumida que define a
natureza das realidades social e política e providencia descrições e possíveis
soluções a problemas. Teologia pública se torna um projeto de mediação,
mediando teologia cristã e esta imaginação sócio-cultural (geralmente descrita
apenas como “realidade”). Quando se questiona como a teologia pode contribuir
na discussão política e social esta imaginação sócio-cultural é assumida. A
responsabilidade é vista como ser responsável pela realidade assim descrita
(RASMUSSON, 2005, p. 521).
Por fim, Rasmusson compreende que talvez a resposta barthiana não seja
decisiva, mas certamente ajudou a pensar a questão. Contudo, para ele, não são
os assim chamados teólogos públicos que auxiliam no processo de leitura da
atual realidade, “[...] mas pessoas que, da forma mais ampla possível, começam por uma
teologia trinitária eclesialmente baseada [...] que Barth auxiliou a renovar” (RASMUSSON, 2005, p. 522).
Certamente a contribuição de Rasmusson ajuda a compreender melhor as
razões do radical cristocentrismo barthiano, mas isto não quer dizer que a
alternativa encontrada por Barth para a tensão entre teologia e espaço público
seja a única possível, como o próprio Rasmusson reconhece. A via eclesial
proposta por ele tampouco parece ser a única via possível ou sequer a mais
adequada. O liberalismo protestante que reduziu a fé cristã a dado privado,
contudo, também se mostra inapropriada aqui. Vale dizer, que ainda menos
adequada seria uma teologia de caráter belicista que legitima o que quer que
seja a partir de uma narrativa como o nacionalismo. A fé cristã representada na
proposta cristocêntrica barthiana, pode ser desenvolvida por outras vias. Os
elementos cristocêntricos e trinitários assumidos por Barth podem ser
traduzidos em linguagem pública, doando-se ao pensamento acerca da condição
humana na atualidade.
A relação entre teologia e cultura a partir de
Thiemann
É interessante que o teólogo norte-americano e luterano, Thiemann, em
sua obra sobre a construção de uma teologia pública, intitula o capítulo
dedicado a Barth da seguinte maneira: Karl Barth and the task of
constructing a public theology (Karl Barth e a tarefa de construir
uma teologia pública) o que imediatamente remete o leitor à versão inglesa
da Kirchliche Dogmatik (Dogmática Eclesial = KD) em que os
editores traduzem na KD II e III a ética como tarefa (task) da teologia.
Thiemann se dedica a examinar a teologia barthiana diante do seu
contexto histórico, pensando algumas contribuições à teologia contemporânea
(THIEMANN, 1991, p. 75). Indica o autor que “para Barth, a fala adequada sobre
Deus e a ação política apropriada andam de mãos dadas. Pois, Barth desenvolveu
as implicações teológicas de sua visão de revelação em maior detalhamento do
que as implicações políticas” (THIEMANN, 1991, p. 82-83). Isto já demonstra o
viés de argumentação barthiano da precedência da fé. O que é corroborado,
segundo Thiemann, pela rejeição barthiana de um “[...] pacto eterno entre a fé
cristã e a cultura moderna”. O que Barth baseia em seu conceito de revelação
(THIEMANN, 1991, p. 83). Thiemann toma em alta conta a noção de revelação do
teólogo suíço. “[...] Barth não concebe a revelação primariamente como processo
pelo qual conhecemos a Deus. Para Barth, revelação denota o conteúdo de nosso
conhecimento de Deus” (THIEMANN, 1991, p. 84). Aqui aparece o primeiro
ponto humano do desenvolvimento barthiano apresentado por
Thiemann, a saber, a revelação enquanto compreensão humana de Deus.
Adiante, Thiemann argumenta que “para Barth, a categoria da revelação
não pode ser separada da identidade de Deus, pois a revelação não é nada além
do que o ser Deus em forma verbal [...] isto é, o ser interno-trinitário de
Deus tornado disponível em palavra e história”. Mais, “se Deus é identificado
apenas por meio da revelação, então a teologia deve começar pela reflexão
acerca da identidade de Deus, em cristianismo isto significa começar com a
doutrina da Trindade” (THIEMANN, 1991, p. 84). Desta forma, há uma proposição
de que a porta de entrada para a fala humana sobre Deus seja a doutrina da
Trindade. Nota-se cada vez mais que o espaço humano no fazer teológico corre
risco de diluição na medida em que se compreende que, em Barth, “[...] a
revelação de Deus provê a única base possível para um discurso adequado sobre
Deus, pois Deus se tornou disponível a nós em sua una Palavra, Jesus Cristo,
nós agora podemos empreender uma interpretação desta revelação” (THIEMANN,
1991, p. 85). Isto é, há uma ação humana na compreensão da revelação, mas está
totalmente subordinada às doutrinas trinitária e cristológica. Assim, “a
teologia é, para Barth, atividade hermenêutica na qual o teólogo, no contexto
da comunidade cristã, busca dar [...] uma fiel redescrição da narrativa
bíblica. Teologia é atividade humana por meio da qual a revelação de Deus se
manifesta em discurso humano” (THIEMANN, 1991, p. 86). Nesse sentido, a
teologia deveria se conformar àquilo que é possível conhecer de Deus, não sendo
outra coisa senão intento tutelado de lá para cá. (THIEMANN, 1991,
p. 86-87).
A revelação se dá, de acordo com Thiemann, no encontro da
auto-interpretação de Deus e na interpretação humana de Deus à luz da tradição bíblica.
Apesar dessa decisiva postura de cima para baixo do complexo
barthiano, o contexto hermenêutico é salvaguardado. “Para Barth, a teologia é
tarefa hermenêutica que começa com um texto que precisa ser interpretado no
contexto de uma tradição viva” (THIEMANN, 1991, p. 88). O elemento humano,
mesmo que em segundo plano, não deixa de estar presente, e pode ser resgatado
numa atualização do pensamento barthiano. Thiemann desenvolve que “ao escolher
a humanidade de Jesus, Deus providenciou um acesso sacramental e, em virtude
disso, indireto à realidade divina”. Entretanto, “[...] mesmo essa presença
sacramental não pode ser conhecida diretamente, pois Deus é conhecido em Jesus
Cristo apenas por meio do testemunho da narrativa bíblica” (THIEMANN, 1991, p.
87). Este acesso não direto à realidade divina merece destaque: “Mas este
conhecimento é sempre indireto e, em virtude disso, a teologia deve sempre
fiar-se nos demasiadamente humanos traços de imaginação, intelecto, e sabedoria
enquanto labutamos para oferecer uma fiel representação da revelação de Deus em
Jesus Cristo” (THIEMANN, 1991, p. 87). Isto é, não se pode negligenciar o
humano na interpretação daquilo que se chama de divino. Assim, “precisamente
porque o conhecimento de Deus é indireto que se abre um espaço que pode apenas
ser preenchido pelo ato imaginativo do teólogo” (THIEMANN, 1991, p. 88). De
forma sintética, afirma Thiemann:
É esta visão da teologia que, creio eu, torna Karl Barth uma figura tão
importante para a tarefa contemporânea da teologia. Sua visão do teólogo como
alguém que responde fielmente à graça reconciliadora de Deus, sua concepção da
teologia como fé em busca de compreensão, sua rejeição de qualquer forma de
pacto eterno: estas são as qualidades que estabelecem a contínua relevância da
teologia de Barth. As razões para a continuada relevância de Barth são perenes
e contemporâneas (THIEMANN, 1991, p. 89).
Thiemann sustenta a relevância de Barth para a atualidade ao compreender
que as teologias contemporâneas partem do pacto eterno (eternal covenant)
entre fé cristã e razão moderna. Também aos que julgam existir um elemento
religioso inerente ao humano compartilhariam desta noção de pacto eterno. Para
ele, é necessário que haja uma precedência da graça de Deus (THIEMANN, 1991, p.
89-91). Para Thiemann, mesmo com Barth, se pode notar que o método teológico
não representa uma dicotomia entre cultura e fé cristã. O evangelho, isto sim,
oferece uma chave de leitura da cultura (THIEMANN, 1991, p. 92).
O então Professor de Harvard, Ronald Thiemann, apresenta um Barth
confessional e eclesial, cuja compreensão de teologia não é outra coisa senão
intento à luz da realidade divina que permite ao humano alguma interpretação
dela. Tanto a noção de realidade divina quanto a de humano são lidas em chave
cristocêntrica, a ponto de que se questione que humano é esse, uma vez que a
via de contato pensada está totalmente dependente da noção da humanidade de
Cristo. Apesar disso, a partir da proposta de Thiemann, mesmo que em direção
diversa, destacam-se três elementos que podem servir para ajudar a pensar um
desenvolvimento teológico público: 1. A revelação como compreensão humana
(THIEMANN, 1991, p. 84); 2. A teologia como hermenêutica (THIEMANN, 1991, p.
87-88); 3. A imaginação humana como elemento fundamental para o discurso sobre
Deus (THIEMANN, 1991, p. 87-88). Estes três pontos levam a pensar um fazer
teológico que parte de um corte antropológico; ocupa-se das tradições
teológicas escritas (textos sagrados) e não escritas; além de perceber que discurso
teológico é sempre discurso criativo e imaginativo.
https://revistas.pucsp.br/index.php/culturateo/article/view/51826/41035
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