terça-feira, 3 de setembro de 2024

Estudos sobre Karl Barth e teologia pública - Studies on Karl Barth and public theology - 2

 

Pluralismo e diálogo inter-religioso como temas de teologia pública com base em Weaver 

Allain Weaver, teólogo menonita, concentra-se na relação entre cristãos/ãs e não cristãos/ãs em um contexto de pluralismos. O autor se propõe a tratar a ideia de parábolas do reino, presente na KD IV,3.1, em relação com o diálogo inter-religioso, uma vez que se mostra cético à uma teologia pluralista em princípio e pretende verificar em Barth a possibilidade de se desenvolver uma teologia que esteja apta a receber impulsos não cristãos, mesmo sendo exclusivista. Novamente destaca-se o pano de fundo cristocêntrico de Barth. 

A este respeito, desenvolve Weaver – “Enquanto o reino de Deus é Jesus Cristo, as palavras humanas podem, pela graça de Deus, revelar o reino. ‘A una verdadeira Palavra de Deus torna estas outras palavras verdadeiras’, explica Barth”. Contudo, estas palavras são sempre provisórias (WEAVER, 1998, p. 425). A ideia de parábolas do reino presentes na esfera secular, assegura, para Barth, que não se coloquem limites à livre graça de Deus (WEAVER, 1998, p. 426). A verdade presente nessas parábolas, por sua vez, é julgada pelo fato de apontarem ou não para Jesus Cristo (WEAVER, 1998, p. 430). Além disso, também são pensadas à luz de confissões e dogmas da igreja. “[...] nesta esfera alguma novidade é possível. Parábolas seculares podem alargar e preencher dogmas existentes na igreja e podem até mesmo provocar uma revisão dogmática” (WEAVER, 1998, p. 431-432). Além disso, o fato de provocarem bons frutos ou não também é critério para a assimilação ou não destas parábolas. Ademais, “para que sejam parábolas do reino, elas devem ser ambos, conforto e correção para a igreja”. Desta forma, “a igreja, em outras palavras, será simultaneamente desafiada pelas parábolas seculares a arrepender-se de pecados passados e a viver de acordo com seu chamado e será confirmada nele, i.e., em sua submissão a seu Senhor, Jesus Cristo” (WEAVER, 1998, p. 432). Estas palavras, em Barth, porém, servem em momentos específicos, particulares, não se transformando em normas gerais para a igreja (WEAVER, 1998, p. 433).

Diante deste quadro, Weaver argumenta que “[...] uma teologia barthiana das religiões insistiria na humildade dos cristãos engajados em conversas com não cristãos, além de uma disposição a empregarem rigorosa autocrítica à luz da Palavra de Deus” (WEAVER, 1998, p. 434). Além disso, se poderia reconhecer que palavras e ações de não cristãos podem ser compreendidas como aspectos da Palavra de Deus. “Que o próprio Barth não tem feito esta aplicação não deveria impedir que teólogos o façam hoje” (WEAVER, 1998, p. 435).

Quanto ao diálogo entre as religiões em vistas de uma atuação pública na sociedade, Weaver prevê um caminho mais plausível, a saber, que as diferentes religiões busquem em suas tradições impulsos para esta atuação ética (WEAVER, 1998, p. 438). Para ele, a teologia pública advinda de sua análise de Barth, cotejando também aspectos da teologia de Yoder, seria “uma que testemunhasse ao mundo por meio de sua existência corporativa enquanto simultaneamente recebesse palavras críticas do mundo e (às vezes), nesta base, modificasse a forma de testemunho” (WEAVER, 1998, p. 439). Para Weaver, “uma abertura às parábolas seculares requer da igreja a renúncia de orgulho e autossuficiência; em resumo, ela requer não-resistência” (WEAVER, 1998, p. 439-440).

Weaver, ao receber as elaborações barthianas no contexto do diálogo inter-religioso se mostra bastante cético às tentativas de se encontrar um centro comum entre as religiões que não as diferencie em seus específicos, uma vez que parte da ideia barthiana da afirmação de Jesus Cristo como aquela grande diferença que identifica a fé cristã. Sua argumentação, contudo, leva a um centro comum cristão. Com efeito, o viés cristocêntrico barthiano não parece o mais adequado para o diálogo entre as religiões, uma vez que, como o próprio Weaver relembra, trata da abolição da ideia de religião por ser tentativa humana de chegar a Deus, pois em Barth, o movimento primeiro é sempre de lá pra cá. O viés da impossibilidade de se esgotar o mistério daquilo que historicamente foi chamado de Deus parece mais apropriado ao contexto do diálogo entre as religiões, aspecto que também está presente em Barth (ZEFERINO, 2016, p. 187-193). Lê-se Barth com e contra ele mesmo, uma vez que seu cristocentrismo, apesar de bem sustentado e inclusive necessário em virtude de seu contexto histórico, sufoca sua teologia a ponto de não permitir espaço para que circule o ar movimentado que ele mesmo argumenta ser a força que move o pensamento teológico (BARTH, 2007, p. 37-38). Não seria o Cristo dogmatista (cf. GEFFRÉ, 1989) um empecilho prático ao seguimento mistagógico do Jesus narrado pelos evangelhos? Apesar de preocupar-se com o rechaço do triunfalismo cristão, Weaver parece, desde Barth, pautar-se em um triunfalismo epistemológico ao invés de soteriológico.

Uma relação entre o pensamento barthiano e o contexto sul-africano: a contribuição de Laubscher

A abordagem de Martin Laubscher, desde o contexto sul-africano, investiga as possibilidades de leitura de Barth com base na realidade pós-apartheid. Sua análise se ocupa com o recorte temporal de 1945 a 1956 do corpus barthiano. Além disso, o autor sul-africano também destaca a vida pública de Barth com seu envolvimento político, seja no contexto da Segunda Grande Guerra, seja nos debates acerca da tensão entre Leste e Oeste (LAUBSCHER, 2007, p. 1555), como pontos de referência para pensar Barth como um teólogo público.

Na relação entre o que chama de âmbitos espiritual e secular, Laubscher compreende que não há uma separação radical entre eles, pelo contrário, Barth os veria sob o senhorio de Jesus Cristo, sendo que o primeiro deveria atuar para dentro do segundo. Com isso, o marcado cristocentrismo barthiano é tomado por Laubscher como base para a relação da igreja com o mundo público. Laubscher percebe que, em Barth, “[...] há uma íntima e próxima ligação entre o público e a teologia. De fato, partindo da definida intenção pública que sua teologia possui, qualquer opção forçada entre ambos seria falsa” (LAUBSCHER, 2007, p. 1556). Entretanto, justamente em virtude de seu ponto de partida cristocêntrico, pontua Laubscher, em Barth é importante que se distinga que a precedência está na centralidade de Cristo (LAUBSCHER, 2007, p. 1557). Assim, Laubscher compreende que o pensamento de Barth é teologia pública, mas sendo tanto teologia como pública em virtude da centralidade de Jesus Cristo. O autor segue a argumentação da seguinte maneira:

Desde seu ponto de partida teológico – como a realidade é em Cristo – ele não pode outra coisa senão estar interessado na vida pública. Mais, a intenção da moldura teológica de Barth não é de uma teologia “para” a vida pública, mas, antes, trata-se de pensamento que “é” teologia pública. Barth não quer reduzir ou manipular a teologia “para” interesse público, mas vê a teologia como sendo inerentemente pública. Portanto, ele também claramente argumenta [...] pela necessidade de que cristãos deveriam participar da vida pública de forma inconsciente e anônima [...]. A partir do momento que alguém não é anônimo e inconsciente na vida pública, este alguém vê que o interesse e a participação públicas se tornam um fim em si mesmos e que o teólogo torna-se mais direcionado pelas questões públicas do que pela teologia na e em direção a vida pública. Em suma, para Barth a marca teológica é primordial e definitiva, apenas depois, a marca pública (LAUBSCHER, 2007, p. 1558).

Com efeito, Laubscher identifica o pano de fundo cristocêntrico em Barth. Isto é corroborado por vários outros autores e é uma das marcas mais definitivas e reconhecidas no pensamento barthiano. Verificá-la como base para uma teologia pública em Barth, contudo, é aspecto bem detectado pelo teólogo sul-africano. Não poderia ser de outra maneira, o complexo barthiano é cristocêntrico, evangélico e eclesial. Sua teologia pública não poderia ser diferente. Parte de Deus para só depois enxergar o mundo. O que pode se questionar é justamente a plausibilidade e adequabilidade deste ponto de partida diante dos distintos públicos da teologia (cf. TRACY, 2006).

Barth como um clássico em Senokoane e Kritzinger

Senokoane e Kritzinger, desde o contexto sul-africano, pensam as palestras de Barth em Tambach, publicadas em 1919, que em português são encontradas sob o título O cristão na sociedade (BARTH, 2006, p. 19-46). Pela fluidez do texto, e por compreenderem que o estilo dialético utilizado por Barth neste texto é similar àquele utilizado pelo teólogo suíço ao refletir sobre Mozart, os autores a comparam com um movimento musical. O texto de Barth, para eles, reflete uma forma de teologia que pensa a vida pública (SENOKOANE & KRITZINGER, 2007, p. 1691-1693).

Cabe frisar que os autores se ocupam da leitura de Barth entendendo-o como um clássico, resultado de evento sediado na África do Sul intitulado Reading Karl Barth in South Africa Today, como parte integrante de um projeto maior, a saber, Reading the classics (SENOKOANE & KRITZINGER, 2007, p. 1693-1694). O folheto de divulgação deste evento, citam os autores, afirma: “As ideias de certos teólogos permanecem relevantes e desafiadoras, décadas e às vezes até séculos após suas mortes. Tais teólogos gradualmente se tornam conhecidos como ‘clássicos’ que são relidos e recontextualizados diante de situações sempre novas” (Reading the classics apud SENOKOANE & KRITZINGER, 2007, p. 1694).

Os autores se propõem a fazer um remix, isto sendo entendido como a atualização de uma expressão artística, simultaneamente resguardando a integridade da obra anterior, como contextualizando-a a novos espaços. Assim, eles buscam “remixar a palestra de Barth em Tambach para a África do Sul atual de boa-fé, enquanto sério exercício de recontextualização, explorando sua utilidade enquanto uma teologia pública contemporânea” (SENOKOANE & KRITZINGER, 2007, p. 1694).

Os teólogos sul-africanos compreendem teologia pública em sentido amplo, isto é, enquanto intento interdisciplinar que pensa os aspectos públicos na direção do bem comum (SENOKOANE & KRITZINGER, 2007, p. 1695). É neste sentido que eles leem Barth e o relacionam com o contexto sul-africano em quatro pontos:

1. A partir da noção barthiana de Cristo em nós, que para eles tem a ver com um Deus que se faz presente na história, compreendem que há esperança também para o contexto sul-africano, e esta esperança está baseada na própria pessoa de Jesus Cristo. Assim, cristãos são chamados a participar do movimento de Deus na sociedade (SENOKOANE & KRITZINGER, 2007, p. 1697-1698).

2. A noção de Cristo em nós baseia a visão de uma comunidade cristã aberta à todas as pessoas. Atestam, assim, “a necessidade de se desenvolver uma nova cultura congregacional, na qual a igreja se torna a igreja que vive enquanto a comunidade do abrangente reino de Deus”. Ademais, “uma teologia pública, portanto, não começa por comunicados de imprensa ou pela crítica às autoridades por suas falhas, mas pelas congregações locais que experienciam a real presença do ‘Cristo em nós’ se tornando ‘edifícios abertos por todos os lados’” (SENOKOANE & KRITZINGER, 2007, p. 1699).

3. O terceiro ponto tem a ver com a compreensão/entendimento que os cristãos e a teologia devem ter do contexto no qual estão inseridos. “Barth enfatiza que ‘os cristãos na sociedade’ precisam entender a sociedade a seu redor” (SENOKOANE & KRITZINGER, 2007, p. 1700). Esta forma de compreensão contextual, para eles, não se trata de “um conhecimento abstrato, mas uma inclusão engajada e comprometida de pessoas e situações”, além de “[...] fomentar ações para transformação desta realidade no vindouro reino de Deus de paz e justiça” (SENOKOANE & KRITZINGER, 2007, p. 1705).

4. Senokoane e Kritzinger também enfocam a noção de perdão que, para Barth, estaria carregada de uma força de transformação para a sociedade (SENOKOANE & KRITZINGER, 2007, p. 1707).

                Os autores se dedicam a ver como que uma teologia pública de base barthiana pode lidar com temas candentes da sociedade como a questão da pobreza. Este desenvolvimento teológico, mesmo não tendo sido tratado por Barth em Tambach, merece atenção e carece de interdisciplinaridade em virtude da complexidade da questão. Mas compreender o contexto não é o suficiente, cabe “[...] fazer parte do Não de Deus ao mal, sofrimento e opressão na sociedade”. Isto é, trata-se de pensar uma teologia que promova um engajamento concreto na vida pública no horizonte da transformação desta realidade (SENOKOANE & KRITZINGER, 2007, p. 1712).

Também Senokoane e Kritzinger destacam a centralidade cristológica na obra barthiana, desta vez por meio da noção de Cristo em nós. Contudo, o viés ético de sua abordagem visibiliza uma cristologia mais dinâmica. Além disso, a proposta de se ler Barth como um clássico, ensejada pelos teólogos sul-africanos, mostra como que as teologias que se entendem como públicas hoje, podem haurir de desenvolvimentos teológicos de outros contextos, seja por pontos de contato entre distintas situações, seja pela perenidade de determinadas alegações.

https://revistas.pucsp.br/index.php/culturateo/article/view/51826/41035

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