domingo, 18 de novembro de 2018

Crônicas de uma vida XVII - Nilópolis

        O que Japeri tinha de remoto e distante, Nilópolis, estação do mesmo ramal ferroviário, tinha de próximo e familiar. Naquela época, deixando, em 1961, o Rio de Janeiro de ser o DF - Distrito Federal, a bifurcação em Deodoro, nessa direção, levava o Estado da Guanabara até Anchieta.

      Olinda já pertencia a Nilópolis começando, portanto, o antigo Estado do Rio, capital Niterói. E, nessa rota, chegava-se a Nova Iguaçu, passava-se por Comendador Soares, Austim, Engo Pedreira, etc e etc, até chegar a Japeri.

       Nilópolis associava igreja e casa da avó, um paraíso aqui na terra. Era muita palhaçada juntos. O tio Onésimo, ora, era época da explosão mundial de Elvis Presley, o que fazia o Labrego, era esse seu apelido, demorar-se fração de hora a ajeitar o topete na mesma moda internacional. E tome Gumex no cabelo. Já o fixador do meu pai era o Quina Petróleo San-Dar, uma mistura não homogênea de um líquido amarelo, embaixo, vermelho, acima que, sacudidos, misturavam-se, postos à mão, melados os cabelos, com cheiro de brilhantina enchendo o amhiente.

       Muitos mosquitos, à noite, isso fazia com que a bomba de Flitz fosse muito útil, na pulverização de uma nuvem que, pelo menos por uma meia hora, surtia seu efeito. Se não era ela, entrava em cena o Durma-Bem, marca daqueles espirais que, como outros produtos, entre eles Gilette, Durex, a fita adesiva, K7, a fita de gravações dos anos 70, marcas que passaram a designar o produto em questão.

      Eu costumava chorar, à noite, com saudades dos pais. Então tias e tios revezavam-se nas palhaçadas, Miriam, a Cabrita, Gislaine, Girafa, posto por Onésimo, porque ela havia cortado muito curto o cabelo (meu pai a chamava de Fininha), Leila, a russa que, mais próxima de mim na idade, inventava variados modos de diversão. Principalmente barquinhos de papel, para os dias de chuva de verão e sarjetas da rua sem calçamento, na verdade a vala negra mesmo, próximas às casas, levando o brinquedo de enxurrada.

      Tia Nice, não, porque era mais enfezada. Eu chamava todos pelo nome mas, quando dizia "Eunice", só pra contrariar, como diz o pagode, ela redarguia: "Como é que é?", e isso muito séria. Eu emendava "tia Nice". Ah, bom, ela encerrava. Por isso, seu apelido era Madrasta (não podia ser outro). Certa vez, ora, todos acordavam tarde. Se eu estava lá, queria-os cedo na pândega, como dizia o saudoso Moisés, sobrinho da avó Eunice.

      Então, nesse dia, ali sentado no chão da sala, bem em frente à porta do quarto de tia Nice, que ainda dormia, achei de descobrir-lhe os pés, para fazer cócegas. Ela também descobriu, agora a cabeça, mirou-me o olhar, de cima para baixo, para dizer "tisk", quer dizer, só um muxoxo e a cara amarrada bastaram. E as histórias? Cid, na sesta após almoço, acostumou-me de ouvi-las. Então eu pedia a qualquer um que as contasse. Até Gislaine, meio sem jeito, tentava. E não adiantava se enrolar: eu insistia, e nada de dormir. Para não dizer que não, tia Nice me acompanhou no Servidores, na época de recuperação do atropelamento. Era braba só por fora, uma espécie de defesa.

        Falavam a língua do "m", que consistia emendar com esse fonema a mesma vogal da sílaba anterior. "Falar a língua do 'm'", seria: Fa-ma - lar-mar a-ma lín-mim gua-ma do-mo e-me me-me, isso falado numa velocidade que uma criança, no caso eu, ficaria confusa.

      Mascar chiclete, que não era a toda hora, porque o dinheiro custava ser ganho, era proibido para mim, pelo menos pouco recomendável porque, como já expliquei, toda a família sabia: Cid Mauro é educado pelos livros, como meu pai postulava. Quando acontecia, tinha que aproveitar bem o gosto, porque comprado fiado e anotado no caderninho, na venda do seu Morais, bem ao lado.

      Por isso muitas vezes a turma da casa me enganava, mastigando só a língua, havendo ou não havendo goma de mascar, ping-pong, a mais vendida, tinha também o famoso chiclete de caixinha, quando se comprava, tinha que especificar. Este era meio sem graça, o outro era melhor, inclusive pelas bolas que estouravam. Um deles era marca Ploc exatamente por causa dessas bolas, horror para professoras em sala de aula e custosas para crianças de minha idade, na época, aprender a espoucar. Quando enormes, espoucavam fora da boca e grudavam na cara suja, pelo lado de fora, bota de novo pra dentro, um nojo.

       Para não ficar só nas artes de casa da avó, na igreja, certa noite de culto de Santa Ceia, uma vez encerrada a programação da noite, alguém (lendas urbanas de novo me acusam, mas os cúmplices da época farão justiça) teve a brilhante ideia de, apagadas as luzes do templo e, cuidadosamente, encostadas as portas laterais, proceder a uma curiosidade de todas as crianças de minha idade naquela época: que gosto tinham o pão e vinho da ceia?

         Pulamos a janela, eu e um grupo misto de crianças, entre meninos e meninas daquela geração, hoje todos em torno dos 60, mais ou menos 2 anos, para a margem de acerto. Não sei quem teve a ideia, não sei quantos e quantas pularam, mas sei que, na pressa e medo do flagrante, na hora de tomar seu cálice, alguém (ora, quem foi?) desenhou na toalha uma risca carmesim, entornando (derramando, termo daqui) o calicezinho.

       Era aquela mesa imensa, sobre um tablado, abaixo do púlpito de alvenaria trabalhada num requinte de massa lisa e tinta a óleo, reluzente, com gradis de ferro que decoravam as aberturas de ventilação. Toalha alvíssima maior ainda, bandejas de meio metro de diâmetro, duas sobrepostas, com as sobras de cálices cheios e os quatro pratos de pães, de vidro grosso decorado.

       Foi uma revoada de menino, como dizem aqui no Acre, fundindo neste vocábulo os dois gêneros. Nem mais importava se pela portal lateral esquerda, de quem olhava para o púlpito, porque era a mais remota, por ser mais rente e de corredor mais estreito, colado ao muro do vizinho. Recompus bandejas, toalhinha menor que a cobria, saí por último, traidores, diante de meu aperto todos me abandonaram.

       Puro bullying anos 60, se já existisse o termo como designação, ao dar a volta pela mesma rota dos outros, medindo a lado e outro se alguém me observava, dei com um par de pernas maiores que o meu tamanho, já avaliando ou tendo certeza do aprontado. Ora, adultos, sempre intrometidos. E já me colocavam como primeiro suspeito. Luzes do templo se acendendo, mães colocadas a par do ocorrido, convocadas que foram, nem sei que extra foi esse que prendeu os adultos mais tempo após o culto, dando chance à nossa criatividade.

        Entrou tudo na conta da idade, pouca demais para enquadramento em qualquer lei de responsabilidade. O máximo, já dissemos, eram os beliscões. Nesse grupo, estavam os que, junto comigo, para quebrar a monotonia do culto, sentávamo-nos embaixo dessa já referida mesa da ceia, sobre o tablado que a sustinha, desta vez em pleno programa da noite (de ceia), meio escondidos por detrás dessa toalha imensa, em forma de "V", no caimento dos quatro cantos da  mesa, ficávamos bem de frente à assistência do culto, papeando e, de vez em quando, pelos claros do rendado da bainha da toalha, acompanhando o pessoal. Até que uma ou duas mães, para não dar na vista, viesse(m) buscar o(s) seu(s), ensejando a mesma atitude para outras ou, por si, dispersando o grupo. Beliscões, disfarçadamente, assim como conversas ao pé do ouvido seguiam-se como cena seguinte.

       Ora, adultos, não entendiam o quanto isso foi gostoso, sem ainda saber que, do tamanho nosso, dá uma vontade danada de repetir.

Eterno Gumex


Brilhantina
de meu pai
   
Fita K7, depois
chamada cassete

Fita adesiva, conhecida
pelo nome de marca durex

Chiclete de caixinha, sem
graça: não fazia bola

O mais tradicional: ainda
havia um com papel vermelho,
azul e branco, parecendo a
 bandeira dos EUA.


Interruptor típico
das noites na casa da avó


Este tipo

Espiral, nome genérico,
todos eram chamados
Durma-bem, marca


De meia hora a
45 min sem mosquitos,
carapanã aqui no Acre

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