sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Crônicas de uma vida XIX - Peraltices II

        Escoriações generalizadas. Gozado essa coisa de infância. De quando em vez, a gente se quebra. Mas graças a Deus, não foi desta vez.

        Boçal. Resolvi me dependurar nessas casinholas típicas das eras iniciais da eletricidade, em casas de alvenaria, que consistiam numa armação de concreto, chumbada na própria parede da casa, com acabamento de uma armação e portinhola de madeira embutidas.

       Dentro ficava o relógio de luz, aqueles modelos antigos enormes, como a também antiga chave de faca de contato para fechamento de corrente elétrica através dos fuzíveis de porcelana, aqueles mesmos, de rosca, a mesma das lâmpadas incandescentes. Sua alma era um pinguinho prateado de solda dentro o qual, ao romper, desarmava o circuito, deixando todo mundo no breu, mas salvando a situação, cumprindo o seu papel.

      Meu avô que, às vezes, costumava demorar nos reparos menos urgentes, demorou a colocar o vidro na portinhola com trinquinho de correr. Provavelmente pelo preço do vidro. Por isso havia quem improvisava, colocando um pedaço de compensado, imitação da lâmina de vidro.

    Pela abertura sem vidro da portinhola, coisa de criança sem senso, eu enchi de frutinhas de café, isso mesmo, loucura da hora, arrancadas dali mesmo, do pezinho bem à beira do jardim da frente, que ainda tinha uma ameixeira na qual subi algumas vezes a colher essa outra frutinha amarelinha. Lá em cima mesmo degustava seu gosto meio azedinho, sua consistência meio durinha, para deitar fora o caroço amarronzado e liso.

          Para que encher de café o bendito espaço de dentro da caixa de concreto do padrão, como chamam aqui o medidor de luz? Não me perguntem. Nem sei se estava escolhendo as já vermelhinhas para, depois, reaproveitá-las. Nem sei. Dependurei-me, apoiando-me na moldura de madeira e portinhola nela ajustada pelo trinco, mas sem o vidro, exatamente deixando espaço e sobra de rebordo onde me apoiei.

 De onde me esborrachei. Evidentemente, Cid Mauro, mesmo com seus, vá lá, 5/6 anos, não havia como a moldura, apenas aparentemente encaixada, sustentar seu peso. Decobri após arrebentar-me no chão. Tenho claros, na memória, todos os movimentos.

       Qual juvenil-aranha forçava, para trás, o corpo, enquanto me aferrava com as duas mãos na moldura. Minha ideia (de gerico, como se dizia na época) era ver com estes olhos a ruma de frutinhas de café justo dentro da caixa do relógio. Para debruçar-me por cima e pôr dentro a carranca, tinha que, praticamente, num rapel ao inverso, forçar-me para trás, na parede, com os pés, fazendo gancho de apoio com os dedos das mãos justo na moldura.

      Essa pressão toda me arremessou com força ao chão, atuavam vários vetores, entre eles, meu próprio peso, com mais a força que fazia para subir, empreender uma curva de apoio sobre mim mesmo, como se fosse me sentar no ar, tendo pés na parede e mãos na moldura como único apoio. Estatelei-me.

       E, como já disse, avós, tias e mães têm 6o sentido ou, sei lá, a terceira visão, como naqueles livros do tio Nelson. No exato momento em que arremessei-me ao chão, milagrosamente, em mais esta vez, sem fraturar coluna, crânio ou qualquer outro osso, apenas mordendo a língua, de puro susto, gosto de sangue na boca, nesse exato momento, dava-me conta do trauma e avistava minha avó na porta da casa. Logo deduziu, pelo impacto e trajetória da queda, o que eu tentara fazer.

       Também a moldura, como prova do delito, estava ainda em minhas mãos. Só faltava à vó descobrir o agravante do crime ecológico, sem nenhuma culpa teriam as frutinhas de café. Dor por todo o corpo. Água com açúcar para o menino. Gargarejo para cicatrizar as marcas das mordidas. Marisa França Costa fazendo gozações, de modo a despertar o menino de sua modorra e desânimo.

       A prima Eliana, com a mesma cara debochada de sempre, também veio ajudar, quer dizer, ver se eu me animava, saindo daquele torpor pós-traumático. Não sei se tirei um sono, ali mesmo, na cama e quarto do Labrego, o último à esquerda, colado à cozinha, próximo ao velho filtro na junção das paredes. Acho que houve orações, por causa de uma suposta reunião de senhoras por lá. Houve igreja à noite. Pedido de colo, ora, como explorei esse recurso, descendo-subindo-descendo a Mena Barreto em suas ondulações.

       Chegamos ao ponto do Cascadura-Nilópolis, do outro lado da linha, na época, defronte ao Colégio Filgueiras, modelos ainda no tempo de seu colorido prata e azul claro, a viação com nome de Santa, N. Sra. da Penha. Cócegas de Marisa, cutucadas, gemidos, risos e choro simulados. Ela era incansável em suas gozações. Divertidíssima, no vocabulário de meu pai. E dava a sua risada sacudida, fazendo todos à volta escangalharem-se de rir e ela, cínica que só, soltava uma lufada de ar, como a se fazer de desprezível, mediante suposto qualquer argumento contrário. Muito divertidissimamente cínica essa Marisa. 

       No meu caso, as cutucadas, no colo das duas, ela e Dorcas, no interior do ônibus, também serviu de fisioterapia. Num retorno à casa da avó, posteriormente, comentários sobre o desatino, remediado está o conserto da casinha do relógio, dura reprimenda se eram verdes as frutinhas.  Bem dizia Adolpho Bloch: criança diz, no meu caso, apronta cada uma!

       Marisa preencheu nossas vidas. Tinha sua maneira especial de viver. Alegrando todos a sua volta. Jaíra, ela e quatro irmãs, filhas de Adelaide, apelido Bili, ela e sua irmã Neusa faziam lindíssimos duetos em Nilópolis nos anos idos de 1960, pois Jaíra lembra, em nossos encontros atuais no Rio, que não podiam cantar olhando para Marisa: era certeza e garantia de desconcentração. E riso seguro. Toda reverência do culto ia por terra (ou riso).

       Imitava muitos e qualquer um. Ainda na área da música, fazia deboche do estilo de outras das cantoras líricas da igreja, que não minha mãe, que aprendia canto com Terezinha, uma professora com casa bem ali, grudadinha no túnel por debaixo da linha do trem, no Encantado. Certa vez, enquanto minha mãe ali treinava, não resisti a um desses chocolates recheados da antiga Kibon: repousado nas teclas do piano, insistentemente olhava para mim, pedindo socorro. Não pude, para vergonha de minha mãe, deixar de comê-lo. Mais uma "coisa de criança", segundo análise da professora de canto que, aliás, também ensinava canto lírico a Marisa.

       Marisa, quando andava com Dorcas e Cid, nos fuscas que teve, o que dá toda uma história à parte, divertia muito o casal. Que os ativistas não saibam porque, sendo mulata, filha de pai nigérrimo e mãe alvíssima, imitava também racistas achincalhando, indiscriminadamente, quaisquer negros ou brancos barbeiros ao volante que ameaçassem meu pai. Ora, para Cid dirigindo, todos representavam ameaça.

       Deixou-nos de súbito. Ela e seu irmão Mario, este pai do menino que, em Cascadura, Dorcas amparou ao nascer, foram-se do mesmo jeito: infarto repentino. Eram gente muito boa. Mario mais na dele, caladão, sujeito tranquilo, gênio parecido com de sua mãe, Marisa mais expansiva, termo este que Cid usava com frequência.

        A chamada de Deus foi mais urgente para os dois. Tranquilidade e paz definitiva ao Mario e, com relação a sua irmã Marisa, tornar o céu (muito) mais divertido. De súbito e com urgência, assim quis o Altíssimo. E vai Marisa divertir a congregação celestial, com mais o riso contido de Mário, abanando a cabeça de leve, como a reprovar, em secreto, as irreverências da irmã.

Coleção típica do tio Nelson:
avós, tias e mães têm essa visão

Subia no pé e colhia essas ameixas
 no jardim cuidado por Tula e Eunice

Era mais ou menos essa a carroceria
dos ônibus da N. Sra. da Penha

Antigo fusível e chave
tipo faca

Antigo relógio de luz

Pé de café, segundo meus primos,
ainda até hoje preservado 
pelo novo dono

Barraquinha Kibon
modernizada

Barraquinha de sorvetes
anos 60 

Um desses chocolates
me seduziu

Casa atual onde, nos anos 60,
residia a professora de canto

Novo templo da Congregacional
de Nilópolis, pertinho do antigo

Antigo templo da
Congregacional de Nilópolis

Bem próximo a essa esquina
moravam Bili, José e suas
cinco meninas

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Crônicas de uma vida XVIII - Peraltices I

        A casa da avó ficava na esquina de Dr. Rufino com Osvaldo Cruz. Aos poucos o vô Tula, nickname do Baldomero Leal de Araujo, foi construindo. Dorcas, segunda dos 8 filhos que se criaram, acompanhou passo a passo essas etapas.

      Conta que no nascimento da caçula, Leila, quando ela já namorava meu pai, as janelas ainda tinham pranchas de madeira que as guarnecessem. E mesmo assim era casa de total hospitalidade.

       Antônio, meu avô paterno, veio de Itaocara para tratamento médico na capital daqueles dias. Hospedou-se em casa de minha avó Eunice, viu-me apenas recém-nascido e ali mesmo faleceu.

      Todos os genros de minha avó, numa etapa de sua vida, hospedaram-se naquela casa. Meu pai, quando solteiro, ainda recebeu ajuda de meu avô para construírem no Éden, não o jardim, mas o bairro de São João de Meriti, a casa do casal, casados em 29/05/1954.

        Baldomero, este o filho mais velho, ocupou a outra metade da casa, sim, meu avô dividiu-a ao meio. Essa parte foi oferecida antes a minha mãe, que não escolheu essa modalidade de inquilinato, opção de Merinho e Zila, os que por mais tempo e com a privacidade dessa parede-meio ocuparam a outra metade.

       Aprontei muito com Rúbio, meu primo, caçula com Rute, filhos desse casal, na casa de minha avó. A única vez na vida que vi meu avô se envolver com pirraça de neto, foi comigo. Eu e Rubinho, apelido, colecionávamos folhetos de propaganda política, na época de confecção ainda amadora, impresso o rosto do candidato, com tinta preta, em papéis multicores.

       Eu e meu primo chamávamos dinheiro e juntávamos blocos e mais blocos, muito novinhos os folhetos, em grande quantidade, amarelos, azuis, verdes, rosas, brancos, enfim, dividíamos entre nós. Certa hora, Rubinho apropriou-se de uma quantidade muito maior do que a minha, denunciei, fiz queixa, importunei minha avó, quis intervenção, ela avaliou por menos, pirracei. Muito. Minha reivindicação era que havia uma injustiça, alguma coisa tinha de ser feita e o meio pelo qual eu me manifestava era por uma brutal pirraça.

       Esperneava no chão, batia as duas pernas, abalava para os dois lados a cabeça, com o que restara dos folhetos que sobraram nas mãos, bem ali, na cozinha velha, antiga que, exatamente por que a casa estava dividida ao meio, era apertadinha.

      Tula estava na sua oficina. Era uma parte secreta da casa, lugar exclusivo de acesso pelo Tula. Talvez quando seu cunhado Nelson o visitasse, que não era frequente, esse irmão de minha avó morava em Bangu, mais ainda internado nesse bairro, os dois eram eletricistas do mundo das válvulas. Ora, só os(as) netos(as) mais velhos(as) se lembram dessa bat-caverna.

        Instituto Univesal, cuja propaganda vinha no verso das últimas capas das revistas em quadrinhos da EBAL - Editora Brasil América, formava pelos correios, isso mesmo, EAD, escola a distância anos 40 a 70, enviava testes e materiais para formar diversos profissionais, no caso de Tula e Nelson, eletricistas.

      Em plena, no clímax da pirraça, Tula que, sei lá no que mexia, só sei que armou com suas pernas um arco por cima do menino que esperneava no chão, brandiu os dois braços, é claro que nunca usaria as ferramentas que tinha nas mãos, mas lembro uma delas ser uma perna de três, na outra, provavelmente um serrote ou até um martelo, para clamar: "Cala a boca, menino!".

       ..... ..... na hora.... Engoli o choro sem lágrimas e a pirraça junto. Lembro-me de sua carranca enfática, de suas costas largas, das mãos enormes, numa delas faltando o indicador, retirando-se de volta à sua oficina-refúgio. Afastou-se curvo para seu recanto e recato, meio que arrastando as chinelas, que era seu jeito.

       A vó Eunice veio dizer "viu, viu", a título de advertência. Eu, olhos arregalados, mais pelo inusitado do fato, que era a intervenção raríssima do avô nesses assuntos, do que propriamente a cena presenciada, aquilatei, também por influência da fala da avó, o grau da crise que eu provocara.

      Mas Rúbio não era fácil (também). Lembro de nosso malabarismo, muito evidentemente sem nossa comum avó saber, andando os dois, ora, avaliem bem, por cima do muro da frente da casa. E transitávamos por cima do muro, pulávamos o espaço do portão, criança tem mesmo titica de galinha na cabeça, eu e Rúbio, Rúbio e eu, foi quando. Houve una hora em que fiquei só eu. Meu primo, vá lá por que cargas d'água, havia descido. Certa hora parei e ele, com o par de olhos muito azuis que tem, até hoje, pai de duas lindas meninas que já lhe deram netos, irmãs de dois temporões gêmeos lindíssimos que Deus deu ao casal (aliás, antes de nossa avó falecer, aos 96 anos, foi trisavó do bisneto desse meu primo). Com esses olhos e um sorriso Coringa, Rúbio me grampeou com as garras de sua mão meu pé. De cima do muro, não acreditei. Antes que eu esboçasse reação, pelo menos gritasse um nãããããooooo, eu já estava caído, atravessado na vala negra, aquela mesma que levava os barquinhos de papel que nossa tia Leila confeccionava, nos dias que as chuvas de verão a faziam transbordar e tornar, pelo menos, barrenta a água fétida.

       Ele puxou com vontade e ímpeto o meu pé, despencou-me daquela altura, pelo menos, na época, rua sem calçamento, quase 2 m, caí sem fala e sem fala fiquei, por causa do impacto. Providência divina, não fiquei "carcunda", que era como mencionávamos esse tipo de deficiência, outro milagre foi eu ver o rosto de Leila, vindo ver, lá de cima, debruçada no muro, o desastre ocorrido. Acho que por intuição veio ver, talvez porque Rúbio deve ter aparecido sozinho, disfarçando, lá nos fundos. Ou porque quando criança do nosso tipo fica mesmo meio largada pra lá, podes crer, vai dar.... titica.... Socorreu-me, nem foram tantas as escoriações, as torções musculares, acho, nenhum ferimento de sangue, argh, talvez porque chovesse, a terra estava fofa e havia anjos de prontidão. Talvez.    

        É claro que aqui nenhum demérito ao meu primo. O que vai escrito aqui são reminiscências da infância, para ele e para mim, aliás, para todos os primos e primas dessa família gratificantes. Por isso somos amigos e amigas até hoje, Rúbio e todos nós. Em 2007 estivemos toda a família e mais minha mãe na casa dele em Paraty. Momentos inesquecíveis.

        Grato a Deus. Grato a Rúbio. Todos, primos e primas, sejamos gratos pela dádiva que foram e ainda são nossos pais, avós, tios e tias e filhos e filhas, bens maiores, continuidade na terra da presença viva desses heróis que nos precederam e nos educaram. Viva!




Rádio a válvula, 
especialidade do Tula








domingo, 18 de novembro de 2018

Crônicas de uma vida XVII - Nilópolis

        O que Japeri tinha de remoto e distante, Nilópolis, estação do mesmo ramal ferroviário, tinha de próximo e familiar. Naquela época, deixando, em 1961, o Rio de Janeiro de ser o DF - Distrito Federal, a bifurcação em Deodoro, nessa direção, levava o Estado da Guanabara até Anchieta.

      Olinda já pertencia a Nilópolis começando, portanto, o antigo Estado do Rio, capital Niterói. E, nessa rota, chegava-se a Nova Iguaçu, passava-se por Comendador Soares, Austim, Engo Pedreira, etc e etc, até chegar a Japeri.

       Nilópolis associava igreja e casa da avó, um paraíso aqui na terra. Era muita palhaçada juntos. O tio Onésimo, ora, era época da explosão mundial de Elvis Presley, o que fazia o Labrego, era esse seu apelido, demorar-se fração de hora a ajeitar o topete na mesma moda internacional. E tome Gumex no cabelo. Já o fixador do meu pai era o Quina Petróleo San-Dar, uma mistura não homogênea de um líquido amarelo, embaixo, vermelho, acima que, sacudidos, misturavam-se, postos à mão, melados os cabelos, com cheiro de brilhantina enchendo o amhiente.

       Muitos mosquitos, à noite, isso fazia com que a bomba de Flitz fosse muito útil, na pulverização de uma nuvem que, pelo menos por uma meia hora, surtia seu efeito. Se não era ela, entrava em cena o Durma-Bem, marca daqueles espirais que, como outros produtos, entre eles Gilette, Durex, a fita adesiva, K7, a fita de gravações dos anos 70, marcas que passaram a designar o produto em questão.

      Eu costumava chorar, à noite, com saudades dos pais. Então tias e tios revezavam-se nas palhaçadas, Miriam, a Cabrita, Gislaine, Girafa, posto por Onésimo, porque ela havia cortado muito curto o cabelo (meu pai a chamava de Fininha), Leila, a russa que, mais próxima de mim na idade, inventava variados modos de diversão. Principalmente barquinhos de papel, para os dias de chuva de verão e sarjetas da rua sem calçamento, na verdade a vala negra mesmo, próximas às casas, levando o brinquedo de enxurrada.

      Tia Nice, não, porque era mais enfezada. Eu chamava todos pelo nome mas, quando dizia "Eunice", só pra contrariar, como diz o pagode, ela redarguia: "Como é que é?", e isso muito séria. Eu emendava "tia Nice". Ah, bom, ela encerrava. Por isso, seu apelido era Madrasta (não podia ser outro). Certa vez, ora, todos acordavam tarde. Se eu estava lá, queria-os cedo na pândega, como dizia o saudoso Moisés, sobrinho da avó Eunice.

      Então, nesse dia, ali sentado no chão da sala, bem em frente à porta do quarto de tia Nice, que ainda dormia, achei de descobrir-lhe os pés, para fazer cócegas. Ela também descobriu, agora a cabeça, mirou-me o olhar, de cima para baixo, para dizer "tisk", quer dizer, só um muxoxo e a cara amarrada bastaram. E as histórias? Cid, na sesta após almoço, acostumou-me de ouvi-las. Então eu pedia a qualquer um que as contasse. Até Gislaine, meio sem jeito, tentava. E não adiantava se enrolar: eu insistia, e nada de dormir. Para não dizer que não, tia Nice me acompanhou no Servidores, na época de recuperação do atropelamento. Era braba só por fora, uma espécie de defesa.

        Falavam a língua do "m", que consistia emendar com esse fonema a mesma vogal da sílaba anterior. "Falar a língua do 'm'", seria: Fa-ma - lar-mar a-ma lín-mim gua-ma do-mo e-me me-me, isso falado numa velocidade que uma criança, no caso eu, ficaria confusa.

      Mascar chiclete, que não era a toda hora, porque o dinheiro custava ser ganho, era proibido para mim, pelo menos pouco recomendável porque, como já expliquei, toda a família sabia: Cid Mauro é educado pelos livros, como meu pai postulava. Quando acontecia, tinha que aproveitar bem o gosto, porque comprado fiado e anotado no caderninho, na venda do seu Morais, bem ao lado.

      Por isso muitas vezes a turma da casa me enganava, mastigando só a língua, havendo ou não havendo goma de mascar, ping-pong, a mais vendida, tinha também o famoso chiclete de caixinha, quando se comprava, tinha que especificar. Este era meio sem graça, o outro era melhor, inclusive pelas bolas que estouravam. Um deles era marca Ploc exatamente por causa dessas bolas, horror para professoras em sala de aula e custosas para crianças de minha idade, na época, aprender a espoucar. Quando enormes, espoucavam fora da boca e grudavam na cara suja, pelo lado de fora, bota de novo pra dentro, um nojo.

       Para não ficar só nas artes de casa da avó, na igreja, certa noite de culto de Santa Ceia, uma vez encerrada a programação da noite, alguém (lendas urbanas de novo me acusam, mas os cúmplices da época farão justiça) teve a brilhante ideia de, apagadas as luzes do templo e, cuidadosamente, encostadas as portas laterais, proceder a uma curiosidade de todas as crianças de minha idade naquela época: que gosto tinham o pão e vinho da ceia?

         Pulamos a janela, eu e um grupo misto de crianças, entre meninos e meninas daquela geração, hoje todos em torno dos 60, mais ou menos 2 anos, para a margem de acerto. Não sei quem teve a ideia, não sei quantos e quantas pularam, mas sei que, na pressa e medo do flagrante, na hora de tomar seu cálice, alguém (ora, quem foi?) desenhou na toalha uma risca carmesim, entornando (derramando, termo daqui) o calicezinho.

       Era aquela mesa imensa, sobre um tablado, abaixo do púlpito de alvenaria trabalhada num requinte de massa lisa e tinta a óleo, reluzente, com gradis de ferro que decoravam as aberturas de ventilação. Toalha alvíssima maior ainda, bandejas de meio metro de diâmetro, duas sobrepostas, com as sobras de cálices cheios e os quatro pratos de pães, de vidro grosso decorado.

       Foi uma revoada de menino, como dizem aqui no Acre, fundindo neste vocábulo os dois gêneros. Nem mais importava se pela portal lateral esquerda, de quem olhava para o púlpito, porque era a mais remota, por ser mais rente e de corredor mais estreito, colado ao muro do vizinho. Recompus bandejas, toalhinha menor que a cobria, saí por último, traidores, diante de meu aperto todos me abandonaram.

       Puro bullying anos 60, se já existisse o termo como designação, ao dar a volta pela mesma rota dos outros, medindo a lado e outro se alguém me observava, dei com um par de pernas maiores que o meu tamanho, já avaliando ou tendo certeza do aprontado. Ora, adultos, sempre intrometidos. E já me colocavam como primeiro suspeito. Luzes do templo se acendendo, mães colocadas a par do ocorrido, convocadas que foram, nem sei que extra foi esse que prendeu os adultos mais tempo após o culto, dando chance à nossa criatividade.

        Entrou tudo na conta da idade, pouca demais para enquadramento em qualquer lei de responsabilidade. O máximo, já dissemos, eram os beliscões. Nesse grupo, estavam os que, junto comigo, para quebrar a monotonia do culto, sentávamo-nos embaixo dessa já referida mesa da ceia, sobre o tablado que a sustinha, desta vez em pleno programa da noite (de ceia), meio escondidos por detrás dessa toalha imensa, em forma de "V", no caimento dos quatro cantos da  mesa, ficávamos bem de frente à assistência do culto, papeando e, de vez em quando, pelos claros do rendado da bainha da toalha, acompanhando o pessoal. Até que uma ou duas mães, para não dar na vista, viesse(m) buscar o(s) seu(s), ensejando a mesma atitude para outras ou, por si, dispersando o grupo. Beliscões, disfarçadamente, assim como conversas ao pé do ouvido seguiam-se como cena seguinte.

       Ora, adultos, não entendiam o quanto isso foi gostoso, sem ainda saber que, do tamanho nosso, dá uma vontade danada de repetir.

Eterno Gumex


Brilhantina
de meu pai
   
Fita K7, depois
chamada cassete

Fita adesiva, conhecida
pelo nome de marca durex

Chiclete de caixinha, sem
graça: não fazia bola

O mais tradicional: ainda
havia um com papel vermelho,
azul e branco, parecendo a
 bandeira dos EUA.


Interruptor típico
das noites na casa da avó


Este tipo

Espiral, nome genérico,
todos eram chamados
Durma-bem, marca


De meia hora a
45 min sem mosquitos,
carapanã aqui no Acre

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Crônicas de uma vida XVI - Japeri

        Desde que me entendo por gente, isso significa dizer até onde minha memória alcança, subia no púlpito da Batista de Japeri, onde meu pai foi pastor, do ano em que nasci, 1957, até finais de 1962, quase 6 anos no total.

        Então, visitávamos Inês e Gilda, isso quando Dorcas, em esporádicos domingos, agendava visitar a igreja do esposo. Daí as histórias, como aquela já contada algures sobre a baldeação, na estação de Japeri, para um trem de bitola curta, para ir à fazenda do diácono Osvaldo, negro consagrado, líder e um excelente crente, de boa fama naqueles tempos e naquelas localidades.

       Demorou muito o conserto da velha locomotiva que, se a memória não me prega peças, ainda era daquelas a vapor. Pois bem. Conta também uma lenda urbana (há várias delas, a meu respeito) que treinei uns leitõezinhos, na casa da irmã Inês, a nadar, experimentalmente pondo-os num poço, é flor do chão. D. Inês resgatou-os, mal (muito) menor, evidentemente, e reputação salva também.

    Almoços memoráveis. Naquele tempo, Cid ainda não estava sob o império da Macrobiótica, nela iniciado pelo Nelson Lima Matos, irmão de minha avó materna Eunice. Então, ele se esbaldava nos torresmos de d. Inez, bistecas e pernis de porco, ou nas galinhadas de d. Gilda. Café à vontade, toras de goiabada cascão, ou não, importava que fosse algum doce. Poderia ser de laranja da terra, mamão, enfim. Adiante, ele teria de abandonar todo esse ritual.

  Depois, era a sesta. Lençóis branquíssimos, cheirinho de limpos, mesmo com sabão português da UFE (cheiro característico, também em sua fabricação, empesteando o ar nas cercanias do Caju, na Av. Brasil). Por mim, até dormiria, se não houvesse o que aprontar com a petizada, algum culto à tarde, Dorcas me punha entre ela e a parede. Limpeza ao extremo, minha mãe lembrava certa vez que d. Inês usou a bacia de roupas, retirando-a do tanque, deixando as peças de lado e se pondo a lavar o macarrão do almoço. Diga se não era absolutamente limpo.    

   Nesses usuais deslocamentos a congregações distantes, principalmente numa época em que ter ruas com calçamento, no caso, paralelepípedos de granito, era muito raro, amassávamos lama, como meu pai gostava de dizer. Sempre ouvi Dorcas, referindo-se a essas oportunidades, mencionar meu despojamento e adaptabilidade a qualquer contratempo e total intimidade e identificação com a garotada do pedaço.

       Certa vez encontrei um dos filhos de d. Gilda, com certeza, no prédio do antigo Ministério da Guerra, ali bem próximo à Central do Brasil. Eu era assinante da BIBLIEX - Biblioteca do Exército. Certamente era ele, do qual não me lembro o nome, mas os traços da fisionomia remeteram-me ao passado, instantaneamente. Mas não conferi, no dia, a patente daquele oficial fardado. Em 2007 quando, com meu sogro e sogra, no retorno de uma ida a Pati do Alferes, passamos por Japeri, visitamos d. Inês e seu esposo, alguns dos filhos, um deles comerciante, confirmei essa história do filho militar de d. Gilda.

      Além disso, a igreja em Japeri nos tijolos e reboco, proporcionava, na parede por detrás do púlpito, o espetáculo da competição entre lagartixas, disputando insetos e, eventualmente, perdendo a ponta da cauda por uma mordida mal calculada de uma companheira bem (mal) intencionada. Eu divisava essa competição, com ameaça de refrega, quando havia perdas de pontas de caudas.

      As viagens nos trens modelo 1930, os vagões mais velhos existentes, eram demoradas e cansativas. Naquela época, 13 era o Deodoro, parador, que fazia a ligação entre este terminal e a Cetral do Brasil, no Centro da Cidade. Cascadura, onde residíamos, e Madureira, estação seguinte, além do Engenho de Dentro eram aquelas que permitiam a chamada baldeação, mudança do parador para os diretos, ou vice-versa: o 33, Japeri/Paracambi, ou o 42, Santa Cruz/Matadouro.

       Até Deodoro, os diretos paravam nas três estações acima mencionadas e, daí, subdividiam-se os ramais da Baixada Fluminense, interior do Rio, a partir de Anchieta, ou zona oeste do Estado da Guanabara, até Santa Cruz. Então, paravam estação a estação, até o fim da linha. Vidros quebrados por pedradas, horas parados caso, por exemplo, uma rês de algum rebanho fosse atropelada na ferrovia, visto que, na época, era usual trechos muito longos sem muros laterais. Aí, uma ruma de gente destrinchava o gado, para aproveitar a carne grátis. Também muitos ambulantes, vendedo de tudo, incluído o chouriço, requentado numa lata de 20 l, com braseiro pelo meio: Dorcas nunca deixou o menino satisfazer essa curiosidade de paladar. Como comiam, com muito gosto, quem comprava! E dependendo da afluência de gente, sem lugar para sentar, havendo uma pane elétrica ou qualquer outra, defeitos agrupados no termo "avaria", estacionávamos na linha. Às vezes, horas a fio.

       Sinal fechado era o de menos. As portas eram forçadas e muitos pingentes, designação da época, andavam dependurados e, eventualmente, um ou outro caía na linha. E as pedradas? Era um princípio físico: velocidade do arremesso do pedregulho na mesma direção e sentido contrário ao fluxo do movimento da composição, termo da época para designar quatro + quatro vagões, dois deles motrizes, um em cada extremidade. Resultado catapultado e brutal: as pedras marcavam a lataria, rachavam o para-brisas dianteiro, quebravam as janelas e, de quando em vez, acertavam os passageiros. Nunca fomos vítimas, mas presenciamos quem foi. Bancos de madeira, encostados lateralmente ou, nesses modelos mais antigos, alguns para dois lugares, transversalmente postados. Aliás, gozado, essa disposição de assento mais antiga está presente nos modelos atuais que, além de bem conservados, estão munidos de ar condicionado. A quantidade de ambulantes é a mesma. Porém, mais limpos e refrigerados de, vez por outra, dar frio.

        Quantas vezes Cid retornou, fosse da estação de Cascadura ou Madureira, por causa de avarias, "o trem está avariado", dizia-se, acompanhando a gente a nossa igreja ou assistindo ao culto em outra co-irmã, por perto. Pela distância de Japeri, num tempo em que não existia, ainda, a Via Dutra, hoje caminho natural para aquelas bandas, caso a viagem não se completasse (ou não se arrastasse) a manhã toda, impossível tentar à tarde: caso se insistisse, só se chegaria à noite, e olhe lá, como dizia o Cid.

       Daquela vez da avaria no trem de bitola estreita, que nos levaria ao sítio do bom diácono, pelejamos, como dizia meu pai, manhã inteira, ali mesmo no pátio da estação de Japeri, até que fosse sanado o problema. 

        Chegando lá manejei, pela primeira vez, um pilão, percorri o descampado da fazenda até o limite extremo de uma cerca que subia uma ribanceira, flagrado por não me lembro quem, mas a audácia seria subir, avançando os limites dos moirões e do arame farpado: o sujeito leu na minha hesitação o desplante. Denunciou-me, novamente, desnecessariamente.

       Na reunião à tarde, congregação super lotada, fiquei de fora, como é costume da criancada, aprontando. Foi quando deparamos uma mulher imensa, tenho-a, ainda hoje, na memória, que tinha a fama, na redondeza, de assustar pirralhos. Os colegas se adiantaram, cumprindo sua rotina de se afastar, tratando-se dela e eu, perigosamente, fiquei por último, para avizinhar-me ao máximo, mirar seu rosto, reconhecendo aparência e perfil para, só então, cumprir com os demais o mesmo ritual de afastamento, só que nutrindo curiosidade e, pelo que pude constatar, nesta vaga lembrança, na minha mente de criança eu nutri simpatia e piedade.

      Depois, relatei tudo isso a meu pai, procurando saber deles que tipo de mulher seria aquela. E os naturais da redondeza pouco acrescentaram de explicação, apenas dizendo tratar-se de uma andarilha lesa, como dizemos aqui. Ou será que sua indigência, daquele modo, tinha uma razão definida? Mistérios desses causos de infância.
BIBLIEX no prédio do antigo
Ministério da Guerra, Centro do
Rio de Janeiro, próximo à
 Central do Brasil

Modelo de trens da
década de 60/70

Estes já são da década
de 30/40. Estação do
Engenho de Dentro

Terminal de Japeri,
anos 80/90

Pátio de Japeri,
 provavelmente,
década 70/80

Locomotivas dos anos
70/80. Mas acho que
fomos à congregação
numa Maria Fumaça

Interior dos vagões modernos,
bancos nos dois sentidos,
como nos da década de 30/40.

Antiga UFE - União Fabril
Exportadora, a fábrica do
sabão português, abaixo


Prédio desativado, na
 Av. Brasil, 
infelizmente demolido
no meado deste ano


quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Crônicas de uma vida XV - Encantos de criança

       Desta vez o culto na Congregacional de Nilópolis seguia seu curso dominical. Assaltei a carteira de Dorcas por razão incontida. Algo que me fascinava.

      Domingos de junho, caminhávamos a pé, como por qualquer outro domingo, subindo o morro da Dr. Rufino. Era o caminho natural até à igreja. Ora, fazíamos essa rota desde os tempos em que tínhamos que subir ziguezagueando os sulcos abertos pela enxurrada, assim como contornando as poças de água.

      Ou poderíamos seguir direto pela Osvaldo Cruz, dobrar à esquerda lá adiante na Av. Carmela Dutra, altura da antiga cancela, caminhar até à famosa praça, contexto das conquistas amorosas, tanto de Cid, quanto de Dante Santos, e subir a Mena Barreto.

      De qualquer modo, meus olhos de criança não se cansavam de apreciar e, a cada oportunidade, eu retardava os passos, "Vamos, Cid Mauro, anda, anda (aqui, seria cuida, cuida), menino: já estamos atrasados!", para ver aquelas barraquinhas de venda de fogos de artifício, improvisadas numa forma artesanal já tradicional, no portão das casas. Era um meio muito usual de alguns faturarem algum e facilitar a queima de fogos (e dinheiro) por parte de outros. 

        Por cima da parte retangular, a forma clássica de um telhadinho de imitação, em forma de triângulo equilátero, encimando um caixote invertido, com prateleirinhas onde, olha, gente, ficavam expostos, naquela dobradura padrão o produto à venda:

       Balões japoneses, bombinhas (traque, aqui no Acre), cabeções de nego (aqui, bomba), mas desses eu não sonhava comprar, era para maiores de 14 anos, estrelinhas, estalinhos, cobrinhas, barbantinho cheiroso (ou peido alemão, no nome popular), este meio sem graça, só usado para perturbar professores e alunos em sala de aula.

         E já ia me esquecendo do buscapé. Era, para mim, um tipo mais remoto que, nessa faixa de idade, era para adultos soltarem. A minha imaginação percorria cada modelo desses fogos de artifício, pré-selecionando aqueles de menos perigo, inocentes para a nossa idade. Fascinavam-me! E os balões? Já mencionada a permanente carestia, Cid, de vez em quando, comprava balões nessa época. Ao recebê-lo em Cascadura (onde fiquei até os 10 anos, em 1967), chegado do IBGE, pelo trem da Central, eu sempre perguntava a ele: "Trouxe alguma coisa pra mim?".

       Desde quitutes, como as rosquinhas amanteigadas (nunca encontrei outras com aquele mesmo gosto da infância!) que comprava por ali, nos meandros, ruelas, becos e ruas do Centro da Cidade, como a ela nos referíamos (caminhos secretos que só meu pai conhecia, a essa altura da vida trilhando havia 30 anos, desde 1934, essas rotas), quando ele procurava seus produtos da Macrobiótica. Lembrava-se do pedido do filho, então trazia, entre outros, biscoitos de polvilho, que poderia ser o famoso e tradicional Globo, vendido até na Geral e Arquibancada do Maracanã ou os balões japoneses, papel seda, dobradinhos, bucha cuidadosamente sobreposta, ah, aquele cheirinho característico de material inflamável, feito de cera e parafina. Quando íamos, eventualmente, ao Servidores (hospital HSE) para consultas e, se fosse o Cid, invariavelmente, pegaríamos o trem da Central, pedia a ele (assim como também ensinei a Dorcas esse atalho) passar numa lojinha bem ali, por detrás do antigo Ministério da Guerra, rua transversal à Senador Pompeu, onde havia fogos, de modo geral mas, especial e especificamente, balões japoneses à minha espera. Dependia, às vezes, do grau de enfermidade e prostração do garoto, para que desse certo o feitiço do desvio de rota para a compra dos balões: com Cid, o pai, dava mais certo, tiro e queda.

      Voltando às barraquinhas, todas, gente, muito lindo!, iluminadas por uma lanterna sanfonada, multicor, com uma vela dentro, dependurada, chamariz da freguesia, especialmente gente da minha idade, assim como engenhosa forma de iluminar as mercadorias. Num tempo de recente aposentadoria para a chamada "luz de galeria" (ou seria "luz de cabine"), de lâmpadas incandescentes ainda amareladas, que presenciei em visitas a recantos da baixada como Éden, Belford Roxo, Japeri, Andrade Araújo, entre outros, a iluminação urbana ainda menos potente, de eventuais postes, com aquela característica bandeja ondulada e arredondada invertida, no meio encaixado o bocal, com uma lâmpada enorme, talvez 200 w, essa luz difusa conferia chance de um charme indecifrável àquelas lanterninhas juninas.

     Pois foi exatamente, na casa ao lado, vejam bem se não era, para usar mal um termo, uma tentação de absoluta inocência para um menino, colocarem uma dessas barraquinhas ao lado da Congregacional de Nilópolis, grudada, grudadíssima ao muro, limites extremos, num domingo de São João, São Pedro, não importa o santo, todos evangélicos, tudo no contexto. Eu notei mais esta barraquinha. Guardei comigo esse segredo, oh, tentação que não me abandonou e, por ela, armei a treta.

     Enquanto cantavam, oravam, nem sei, assaltei a carteira de Dorcas e, coisa raríssima, encontrei, desta vez, diferente daquela vermelhinha do ilícito da merendeira, uma nota amarelinha, não menos valiosa porque, se aquela fora de 5, esta era de 1 mil. Saí pela porta lateral. Ora, para Dorcas não notar, muito provavelmente o que distraía, ou melhor, concentrava a atenção (dos adultos, é claro) deveria ser uma oração.

      Escapuli pela plataforma frontal ao parapeito do muro, parte direita de quem olha da rua o velho templo, desci as escadas, dobrei à esquerda, pus-me de pé, defronte da barraquinha, não sei bem o que escolhi, acho que uma caixa de estalinhos, puxei a nota do bolso, muito provavelmente, de novo, um shorts de linho branco, confeccionado por Dorcas de sobras das camisas de Cid, para pagamento. 

      A moça fingiu que aceitou, não dava para, matematicamente, talvez nem calcular ou providenciar troco para uma fração de centavos em milhares, mais precisamente, 1 mil. O produto adquirido era para moedas, quem sabe a nota de 5 cruzeiros. Eu me distrai por ali mesmo, na calçada, sem dar muita atenção ao movimento da vizinha que, pelo montante do dinheiro e feitio da nota, notou que o menino estava fortuito, indigente, por conta própria escapando da vigilância da mãe, proveniente da igreja de crente ali ao lado.

        Que mulher inteligente! Quanta (desnecessária) dedução! Alguém alertado veio me buscar, entregaram-me a Dorcas, a delação surtiu efeito, nem sei bem se foi ela mesma, a mãe, que veio me buscar. A nota foi devolvida, não, a moça não se importava com o produto, que ou nem se pagasse depois. Também não me lembro se houve beliscão, lembrem, punição intermediária entre uma bronca no jeito, dum lado, ou uns tapas bem dados lá nos fundos da igreja, às vezes no banheiro, no outro extremo. Aos costumes.

       Desnecessária, absolutamente desnecessária a delação. Tudo poderia ter sido muito bem contornado de outra forma. O culto seguiu seu curso. O produto adquirido foi guardado. O menino que estava na calçada com uma nota de miles para comprar centavos era o Cid Mauro, para variar, alguém deve ter notificado Dorcas. O sermão (para usar um termo do contexto) de sempre, doutrinação, uma ou outra ameaça e recomendações, vida que segue. Até a próxima arte, ainda desse tempo de primeira infância, em Nilópolis.

Desta casa na esquina,
subíamos esse morro
da Dr. Rufino

Não encontrei na net nenhuma foto,
mas alguém desenhou este esboço

Balão japonês
em plena performance

Estalinhos

Bombinhas (no Rio), 
traques (no Acre)

Cabeção de nego (no Rio),
bombinha (no Acre)


Luminária e prato das
lâmpadas enormes de 200 w


Dinheiro grande, ordem 
de milhar, para adquirir
o que moedinhas podiam comprar

Nota de 5 cruzeiros
também mencionada
(que por falar nisto,
estampa o Barão do Rio Branco)

Pura coincidência, duas conduções do
Cid, meu pai, que também me iniciou
nelas: o bonde de Cascadura e o trem
da Central do Brasil.

Rua Visc. da Gávea (sentido
Mal. Floriano): esses relevos
no muro marcam a antiga entrada da
lojinha onde os balões me esperavam

A mesma rua, agora no sentido
Senador Pompeu: rota do Hospital
dos Servidores, na década de 60, e
ida e volta ao Seminário, na
Alexandre Mackenzie, 
quase 20 anos depois.

Geral do Maracanã. Ah, sim, também
pura coincidência esse camisa 10...

Um dos agrados do Cid ao filho,
também vendidos no Maracanã

Mais ou menos assim: nem forma,
nem jeito, nem gosto, nem cheiro 
dos amanteigados anos 60...

Praça cúmplice dos romances de duas
filhas da avó Eunice: um com Cid, meu
pai, e o outro com Dante Santos, o gozador da hora.

Numa outra tomada, a praça
Paulo de Frontin, cena dos
romances das décadas 50/60,
quando Nilópolis tinha, mais 
ou menos, esta cara abaixo: