terça-feira, 15 de março de 2016

Mal traçadas linhas 14



      Nu

            Adão jamais poderia imaginar que a desculpa esfarrapada com a qual tentava, no Jardim, emparedar Deus revelava sua verdade. Ele disse que se escondera, porque estava nu. Tentativa tola de ocultar-se por entre as árvores, como se fosse possível fugir de Deus. Pode continuar tentando, ridícula tentativa fugir de Deus.

          Nesse caso, desta vez pareceu, mesmo, coisa de homem, essa suprema covardia. E deve ter sugerido a Eva essa fuga que, cúmplices e parceiros na suprema burrice da queda, empreenderam. Ora, se a sugestão de comer do fruto foi de Eva, a sugestão de empreender fuga e esconderem-se foi, certamente, de Adão.

         Em dois sentidos o casal estava nu: (1) frente a frente com a vergonha de ver e constatar a si mesmos incapazes, diante de Deus, de agir certo, segundo o padrão e a vontade original do Criador: nudez de si mesmo para Deus, nudez aos olhos do homem; (2) verdadeiro sentido de nudez, que é quando Deus faz o homem enxergar-se, sem máscara, a fim de que perceba a extensão de sua condição e até onde vai o abismo moral na direção do qual caminha: nudez aos olhos e com os olhos de Deus, nudez a partir do ponto de vista de Deus.

           Caiu a sua máscara. Caiu a minha máscara. Confissão de pecado é quando a gente se vê nu, quando cai, definitivamente, a nossa máscara. A partir desse ponto, caminha-se na direção da conversão. Deus foi procurar o casal primordial no intuito de lhes propor conversão, ou seja, retorno a Deus. Não sabemos se cada um dos dois atendeu a esse chamado. Detecta-se, no texto bíblico, uma tendência de sinceridade maior da parte da mulher, logo após esse primeiro diálogo, quando ela diz, num jogo aberto, “a serpente me enganou e eu comi”.

           Suprema franqueza da mulher. Talvez esteja aí o nascimento da covardia. Toda a vez que um homem se insurge contra uma mulher, usando a força, é porque perdeu. Perdeu, mermão: perdeu. Adão deve ter olhado de soslaio para Eva, murmurado contra ela, contra si mesmo e contra Deus: “desgraçada”, por causa da sinceridade dela. Enganou-se Adão: era o primeiro sinal da graça de Deus.

   Paulo Apóstolo esclarece que somente a tristeza segundo Deus produz arrependimento. E que somente com arrependimento ocorre salvação. Desgraçada, sim, desesperadora, sim, é a condição do homem. Homem e mulher são incapazes, até, de se enxergar, de autoavaliar sua condição. Nem capazes de se entristecer eles são. A primeira discussão do casal após a queda, sua primeira discordância - até porque fugir, os dois concordaram em fazer - foi quando Adão disse a Eva (a Escritura não registra, mas esse diálogo deve ter ocorrido): poxa, Eva: tinha que ser sincera, tinha? Que língua, a sua. Data daí a fama de fofoqueira da mulher (quanta injustiça!).

         A máscara caiu. A minha máscara caiu há muito tempo. A sua máscara caiu? Você consegue enxergar a sua nudez? Deus já abriu teus olhos? Você já parou de fugir de Deus? Ou continua como o homem original, pensando que pode se esconder entre as árvores do jardim? Ridículo. Mais ridículo ainda que a sua falta de fé, é a sua tentativa de fuga. Vai se cansar, e não vai conseguir se esconder de Deus.

      
       Paulo Apóstolo, ele novamente, chama-nos de “homem natural”. Homens/mulheres que fogem de Deus são chamados naturais, sabe por quê? Porque a fuga é natural. Porque enxergar-se a si mesmo trata-se de se ver como se é, como se tornou o ser humano, um arremedo de gente. E homem/mulher têm medo dessa visão. Por isso, fogem. Você tem dúvida disto, de que o homem é, existencialmente, um arremedo, uma mancha? Se tem dúvida, é porque está em fuga. Se decidir não mais fugir, vai ter um encontro consigo mesmo, somente possível diante de Deus, que vai te fazer enxergar-se. Caiu a tua máscara. Saia ao encontro de Cristo carregando contigo a vergonha da tua nudez.

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