segunda-feira, 6 de junho de 2016
Artigos soltos 9
Traição da palavra.
Palavra é versão. Sem desespero, por favor. Embora a linguagem seja o traço distintivo e diferenciador para os racionais e, muito embora, os racionais, eventual e frequentemente ajam como irracionais, há limite para a palavra.
Palavra trai porque, de imediato proferida, já é versão. Deixou em seu lugar o que descreve e trouxe consigo a versão. E mais: quem produziu a palavra viu, de um modo, que pensou ter transmitido, carreado na forma que deu ao texto, porém quem lê (ou quem ouve), lerá diferente e outra versão surgirá: a versão não mais do autor, porém a versão do leitor.
Já temos aí três possibilidades: o que, em si, foi veiculado por meio da linguagem, carreado pela linguagem como conteúdo, a versão do autor e a versão do leitor. O texto, portanto, será o que o autor pensou ter visto e a versão do leitor o que este pensou ter lido ou, definitivamente, a leitura que fez.
Não há como fugir dessa leitura de mundo. Sem desesperos, porque temos chegado, como humanidade, até aqui, sem saber, nitidamente, aonde vamos, mas já somos esse monumento que aí está. Seja, portanto, descrito.
Porém, pelo menos, entendamos e sejamos humildes em função dessa mera relatividade. Nos corredores do HFCF presenciei uma aula. Já é um exercício de humildade ouvir, com proveito, aulas. E o professor ensinou duas coisas fundamentais nesse mesmo inesquecível dia:
A primeira, não há limites para as perguntas. Pergunte sempre. E, quando achar que tem todas as respostas, alerte-se, porque emburreceu - coitado do burro, um dos mais inteligentes entre os equinos -, presumiu-se ou ensoberbeceu-se.
A segunda, nunca seja apressado. Embora vivamos no tempo on line, whatsapp, instagram, cadencie sua vida e seu senso de observação. O professor era um cirurgião modelo, experiente e famoso, no contexto de outros mais famosos ainda, e ministrava aula a acadêmicos de medicina.
' Taí ' um bom exemplo de como a palavra trai: o aprendizado, pesquisa, ensino e transmissão de uma ciência tão complexa como a medicina. Seu objetivo último: a partir da compreensão das funções dos organismos vivos, mantê-los funcionando de modo perfeito, contra qualquer bad fuction interna ou malefícios externos invasivos.
Precisão da palavra. Exatidão da palavra. No mundo das ciências exatas, diagnósticos e prescrições, a palavra não trai. Apenas quando não mais é possível devolver ao corpo sua estabilidade. Então, tudo o que já se sabe não mais adianta. Fecha-se o livro, desliga-se a luz e fecha-se a porta.
Não é que a palavra, de novo, traiu. É que tudo o que já foi dito até ali ou tudo o que se sabe, tornou-se inútil. Não resolveu aquele drama específico. Saiamos, de novo, ao encalço da palavra, sendo humildes diante do objeto em si, nunca deixando de fazer as perguntas acertadas e muita, mas muita paciência, cadência e senso de observação.
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