sábado, 26 de dezembro de 2015

Mal traçadas linhas 7



  De Natal
    
    Nos estertores finais do ano da graça de 2015, pediram que pregasse sobre Natal. Esse tipo de mensagem é recorrente. Se a gente não tomar cuidado, torna-se mesmo repetitivo.

    Então pensei em Mateus, na leitura que ele faz das Escrituras, e foi este o primeiro tópico da fala. Leitura das Escrituras produz mais Escritura. Baseado no que leu do Antigo Testamento, esse evangelista produziu Novo Testamento.

    Significa, de novo, dizer que sem leitura, prática e proclamação bíblica não se faz evangelho e nem Reino de Deus. Bíblia é comunicação de Deus com o homem. E a tríade leitura-assimilação-prática é o modo de entender o agir de Deus no e através do homem.

   Desprezo, descaso e ignorância da Bíblia, que têm sido a ênfase nos círculos evangelicais atuais, produz nada, produz arremedo de confissão evangélica. E os assim chamados evangélicos, nessa condição, tornam-se sal insípido, jogados às ruas e pisados pelos homens que, indiferentemente, passam adiante, os mesmos de sempre.

    Segundo tópico da leitura de Mateus, foi notar que se cumpriu a profecia de que Jesus nasceria em Belém, pequena demais. Definitivamente os homens detestam o que é pequeno demais. E evangélicos também, ultimamente, rejeitam o que é pequeno demais. Isso gera um conflito direto com a preferência de Deus, que escolhe o que não é, para reduzir a nada “o que é”.

     Portanto, o poder de Deus sempre se manifesta no que é pequeno, exatamente para reduzir a nada o que é presumido. Evangélicos foram também assimilados pela vaidade. Como dizia Salomão: tudo é vaidade. Não fala das coisas, em si, mas dos homens que desejam, para si mesmos, ostentação. E, para tal, usurpam para si o que é dom de Deus, considerando suas as mediações de Deus, manipuladas para que enriqueçam monetariamente adquirindo, então, mais ostentação ainda. Tornou-se um círculo vicioso.

    Em terceiro, Mateus cita a profecia de Isaías, que sugere a Acaz que peça a Deus um sinal. Nem precisava, porque Deus, em Sua misericórdia, sempre mostra Seus sinais. Então o rei Acaz acovardou-se.

     Fugir dos sinais de Deus revela-se covardia. Há muita gente covarde. O rei foi demagogo, fingiu-se politicamente correto e disse não pedirei a Deus um sinal. Quem crê, todos os que creem, é porque identificaram e creram em Deus pelos sinais concedidos.

     O principal foi a crucificação de Jesus. Aquela crucificação é o principal e definitivo sinal. Não há nenhum outro maior, todos os outros apontam para este.

   A leitura de Mateus sugere três coisas para este Natal, estertores finais do ano de 2015: (1) dependência das Escrituras como essencial no diálogo com Deus (e com os homens); (2) Deus lança mão do que é pequeno, para envergonhar o homem vaidoso e mestre de ostentação; (3) Deus, em Sua misericórdia, espalha sinais para que o homem possa divisar, enxergar, atentar para a relação de fé com Ele.

  Bom Natal. Muito Feliz Ano Novo.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Mal traçadas linhas 6



     Atualize-se

        “Atualiza a sua tela”. Assim falou o atendente, que precisava enviar e-mail de confirmação da passagem aérea, e me solicitava atualizar para que os novos dados aparecessem. Meu filho perguntou: por que não apertou a F5? Era só apertar essa tecla.

         Pois é, vez por outra esses elementos da nova tecnologia reservam certas analogias que a gente pode aplicar à vida prática. A gente precisa, mesmo, dessa repaginação, dessa atualização. E, muitas vezes, até tentamos, mesmo, porém errando de ênfase.

         Pensamos que atualizar é, por exemplo, assimilar modos e jeitos para, exatamente, não ficarmos desatualizados. Torna-se ridículo, então, um cara de quase 60, como eu, tentando falar, comportar-se e pensar como alguém, digamos, 40 anos mais jovem.

        A gente assiste a uma tentativa de repaginação da igreja evangélica em áreas diversas. Nesse esforço, é necessário saber o que se deve prescindir ou jogar fora, e o que se deve preservar. Na minha geração, a uns 35 anos atrás, o livro Cristianismo Equilibrado, de John Stott, foi muito útil, sugerindo bom senso nessa postura seletiva.

        Destacava que Jesus sabia manter tradições e refugar modismos, filtrando o que era descartável do que deveria ser permanente. Exemplo era a postura dele sobre a Lei de Moisés, quando ensinou a separar o conteúdo do que era circunstancial.

         Foi célebre, por exemplo, a cena da sinagoga, quando cobravam de Jesus que, no sábado, não curasse, uma estúpida interpretação da preservação de integridade do sabbath. O Mestre perguntou: “Posso fazer o bem no sábado, ou estou proibido de o fazer?” Inteligência, colocação do problema nos parâmetros certos e coragem para sustentar opinião própria. Agora, só falta aplicar isso à igreja de hoje.

          Atualize-se. O sacrifício de Cristo tem validade permanente. Aplica-se de modo contínuo, como oferta, tanto a quem dele não se tornou, ainda, participante, quanto a nós que, constantemente, necessitamos de sua mediação. A ação do Espírito Santo em nós, que mantém atualizada a mediação desse mesmo sacrifício, também é permanente.

         Por isso, é necessária essa repaginação constante de nossa vida. E não depende somente de nós porque, como diz o profeta Jeremias, nosso coração é desesperadamente corrupto e até a nós mesmos engana. Gostamos de repetir, também de Jeremias, aquele versículo que postula: “Maldito o homem que confia no homem”.

         Isso mesmo: somos nós mesmos o primeiro homem (ou mulher) de quem devemos desconfiar. Apertar a tecla F5 não depende somente de nossos arquivos cache internos. Vai ser necessária a assistência do Provedor do sistema. Atualizar-se, para tanto, depende, sim, da atuação do Espírito em nossa vida.

          Que, certamente, virá da busca de lucidez para os olhos, resultado de exercício de vida piedosa. Esta palavra grega, sem correspondente na língua portuguesa, define ações que, em conjunto, modelam a vida na relação com Deus. Devem envolver, certamente, tempo com a Bíblia, em coerência com o tripé meditar-cumprir-proclamar.

         Outra postura deve ser presença na igreja, em meio ao grupo, vida de comunhão. Com todos os defeitos, crises e críticas de que essa modalidade de ajuntamento se tornou alvo, não há outro lugar, como diz o Salmo 133, onde o Senhor 'ordene a Sua bênção e a vida para sempre'.

         Vida de oração. Tempo gasto de conversa íntima com Deus, dentro do que a Bíblia ensina ser oração, evitadas a hipocrisia, as vãs repetições, o discurso de vaidades, a manipulação de 'bênçãos' para consumo próprio, enfim, oração é a súplica autêntica pela contínua tentativa de pôr em prática o que a Bíblia ensina e o que a igreja sugere que seja vida piedosa.

          Passa por essas vias a atualização. Tecle essa tecla. F5. O Provedor vai nos mostrar que arquivos deletar, que arquivos manter, que novos arquivos agrupar.
        

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Mal traçadas linhas 5


  Dívida de amor

        Todos temos uma dívida de amor. Paulo Apóstolo na carta aos Romanos escreve ‘a ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto o amor com que vos ameis uns aos outros.’ O que ele quer dizer é que nunca fiquemos devendo nada a ninguém. Mas amor será, sempre, uma dívida atualizada. Por isso, afirmo aqui que todos temos uma dívida de amor.

        Que nunca é paga. Porque, por mais que amemos, melhor dizendo, que exerçamos o amor que aprendemos de Deus, ainda há o que amar. E amar todos, indiscriminadamente, sim, porque costumamos escolher quem amar. Pronto: isso já não é amor.

         Quando a Bíblia diz que amemos os inimigos – os declaradamente inimigos com mais aqueles que costumamos escolher para não amar, porque os classificamos como inimigos –, pois quando a Bíblia diz que os amemos é porque, depois de amar essa classe de gente, torna-se fácil amar qualquer um.

          Pois bem, primeira lição deste texto: aprenda amor com quem você mais escolheu desprezar, porque ficará fácil amar aqueles que você escolheu para o contexto de suas relações. Os fariseus também reclamavam das pessoas que Jesus escolheu para conviver mais de perto, porque as amava todas.

          João Apóstolo, leiamos lá, no capítulo 4 de sua 1ª carta, ensina o caminho que se deve percorrer para chegar ao amor. Primeiramente, ele coloca o amor como opção única, ou seja, não há outra: “filhinhos, amemo-nos uns aos outros”. Depois passa a enumerar: (1) o amor é de Deus; (2) ama quem é nascido de Deus, porque conhece a Deus; (3) o amor de Deus se manifestou na dádiva de Cristo ao mundo; (4) Ele nos amou primeiro, ou seja, de nossa parte, isoladamente, não existe amor; (5) o modelo de amor é de Deus, não qualquer que inventarmos.

          Alguém pode argumentar, ‘mas caramba, eu amo’. Sim, ama. Isso mesmo: essa coisa de amor é dádiva de Deus a nós. Somos imperfeitos nisso, sempre estaremos na página 1 da cartilha, mas é para exercer e aperfeiçoar continuamente e com todos, como já dissemos: primeiro os que, para nós, cheiram a ódio, inspiram desprezo e exalam o cheiro que atiça o nosso desdém.

          Por exemplo, quando Paulo Apóstolo diz que o marido deve amar a mulher como Jesus ama a igreja, figurada e analogicamente Sua esposa, tem de ser muito homem. Isso mesmo: para a Bíblia, quem é homem, é quem é capaz de amar como Cristo ama. Como pensamos ao contrário disto! Porque achamos que, para ser muito homem (ou muito mulher) outros atributos devem ser amealhados para formar nossa personalidade. Pura vaidade e erro de cálculo.

           Que tal, prioritariamente, amar? João Apóstolo conclui assim: “aquele que não ama, não conhece a Deus, porque Deus é amor.” Em meio a todas as nossas imperfeições, camuflado e escondido na névoa densa de nosso pecado e ausente onde ocorrem vãs pretensões, insinua-se o amor de Deus em nossas vidas. E você? Não se julga imperfeito(a)? Então, é um(a) louco(a).

           Não tem pecado? Então, como, de novo, diz João Apóstolo, agora no capítulo 1 (procure lá, na Bíblia), mais do que mentiroso, quem diz que não tem pecado chama Deus de mentiroso. Sabe por quê? Porque é Deus quem nos sonda, denuncia e revela a nós o nosso pecado.

            Quanto às nossas pretensões, como diz Salomão, tudo é vaidade e correr atrás do vento. Ele não está querendo, literalmente, dizer que tudo, que as coisas todas à volta são vaidade. O que ele quer dizer é que tudo, para nós, é pretexto para nos envaidecer. Estamos envaidecidos com o tipo de pessoa que somos? Ora, então vamos nos medir e avaliar pelo amor. Não há outro padrão de aferição.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Mal traçadas linhas 4



  De uma vez

           Ou “de uma vez por todas”. Há, em Portugal, um Dicionário de Expressões Idiomáticas (Edições João Sá da Costa, Lisboa, 1990), que define esta expressão como sinônima de “definitivamente, de vez”. Interessante é a posição da preposição “de”, visto que, por definição é “palavra gramatical, invariável, que liga dois elementos de uma frase, estabelecendo uma relação entre eles”.

           Neste caso, a preposição não está ligando palavras, mas indicando, por meio do numeral "uma", que a "vez" é única, é somente uma: de uma vez. Daí o dicionário dos patrícios portugueses, nossos irmãos, indicar “definitivamente, de vez”. Creio que aqui se trata de uma locução prepositiva.

            Interessante (II), também, quanto ao uso, neste caso, de uma conjunção na típica expressão acreana, frequentemente ouvida no Correspondente Difusora, na Rádio de mesmo nome. Este é um programa de recados urgentes, transmitido a pedido dos ouvintes, quando querem contatar parentes, amigos ou recados pelos caminhos da selva, rios, ramais e igarapés, na rota de acesso até suas casas: “como sem falta”. Creio que aqui se trata de uma locução conjuntiva.

            O destaque é que basta dizer “sem falta”, que ficará clara a urgência e pedido apelativo em último termo. Mas o acréscimo de “como” indica a modalidade solicitada de como o recado, a pedido, deve ser transmitido. Tudo isso para engrenar no texto que segue.

            De novo, a Bíblia tem algumas expressões, tipicamente relacionadas à sua mensagem principal, ligadas ao significado de “de uma vez, definitivamente, de vez”. Explico. O Livro aponta para a realidade de que, de uma vez por todas, Cristo ofereceu-se a Deus como vítima e sacrifício pelos pecados da humanidade, cada qual, individualmente visados.

          Hebreus, nome da carta anônima, apontada como uma das Epístolas Gerais do Novo Testamento, reiteradamente adverte de que Cristo é sacerdote que se oferece a Deus, de uma vez por todas, pelo pecado, não mais sendo necessário pagamento do preço dessa dívida, uma vez que alguém considere paga sua parcela de culpa diante de Deus. Definitivamente.

         Essa ideia gera alguns problemas diversos para alguns:

1. Os que argumentam que, de última hora, no afogadilho, alguém que se considera culpado, arrepende-se. Ou seja, foi canalha e cínico durante toda a sua existência, ou maioria dela e, diante do medo da morte, por exemplo, resolve tornar-se cristão. O erro aqui é desconhecer a natureza do que a Bíblia denomina “arrependimento”. Pois é resultado de um estado de espírito que, ao homem, não será possível nutrir, a não ser que uma “tristeza segundo Deus” o alcance. Paulo Apóstolo assim define, assim como diz que é “a bondade de Deus (e não a nossa) que nos conduz ao arrependimento.” Portanto, quando ele ocorre, pode enganar a mim ou a você, se não for autêntico, mas não engana Deus. E quem se arrepende não vira 'santinho' de hora para outra, mas reeduca-se, pois aceita em si que o Espírito Santo de Deus seja seu parceiro, na luta contra si mesmo.

2. Os que insistem em dizer que, para pecados, será necessário pagar a dívida acumulada. Sejam penalidades ou castigos ou que compensação, mas será necessário saldar a dívida e não será instantaneamente que isso ocorrerá. Como que demandasse uma obrigação de sofrimento, em troca, que punisse o pecado perpetrado. Aqui desconhecem, também e mais uma vez, a natureza do arrependimento bíblico, pois a Bíblia o associa à mudança de caráter, milagre de Deus, mesmo porque, sendo que o homem é essencialmente mal, permaneceria em qualquer condição pecador e nenhuma compensação humana poderia repor o contínuo desfalque e prejuízo da culpa. Nas línguas originais da Bíblia, o verbo hebraico shub, voltar, virar, mudar o curso, retomar, e o substantivo grego metanoia, mudança de mente, referem-se a voltar para Deus e ter, por Ele, mudada a mentalidade, a vida toda, uma nova criação, barah, no hebraico, a partir de Cristo como matriz.

3. Um diferencial específico para a Bíblia diz respeito ao conceito de graça de Deus, pela qual a compensação da culpa reside em Cristo, definitivamente, no ato de Sua entrega a Deus como sacrifício pelo pecado, ato contínuo no arrependimento individual de quem aceita para si essa entrega. De modo geral, as religiões apontam para uma compensação que diretamente incide sobre quem cometeu o mal. Na Bíblia, ela recai sobre Alguém em lugar de quem cometeu o mal. A polêmica reside aqui, nesta distinção, pela crença corrente de que ‘aqui se fez, aqui se paga’, ou que há uma lei, semelhante à 3ª lei de Newton, ‘a toda ação corresponde uma reação de igual intensidade’. Paramos por aqui. Exatamente aqui se distingue a religião, ou melhor, a proposta de fé da Bíblia.

           A toda e qualquer ação do homem não corresponde uma reação, porque para o mal não há remédio e nem compensação. Para a Bíblia, como diz Paulo Apóstolo, vence-se o mal com o bem. E, sumo bem, Deus fez recair sobre Cristo o mal de cada um.

          A questão sensível dessa polêmica é que pensamos, primeiro, na falta dos outros. E, é claro, quando a culpa é do vizinho, vingança nele. Mas, quando a falta é minha, peraí, tem um perdãozinho aí? Outra questão é a avaliação da proporção da falta: 'grandes' pecados, penalidade maior, 'pequenos' pecados, penalidade menor. Mas salta a pergunta: 'grande' ou 'pequeno' para quem, cara-pálida? Com que critério de avaliação?

          Uma das sentenças populares e transmitida, nos tempos da igreja primitiva, de cristão a cristão, com relação a Cristo, síntese da fé lá pelos idos do séc. I, era ‘que foi entregue por nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação.’ Em nossa compreensão nunca vamos entender duas coisas:


          Como (1) pode recair sobre Cristo o pecado de outrem e cada um e (2) de que modo pode servir esse ato de Deus como compensação, sem que esse próprio culpado receba em si a penalidade. Pois é, trata-se da graça de Deus. A Bíblia é o Livro que, por todas as suas bordas, transparece, transmite e transborda da graça de Deus.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Mal traçadas linhas 3



       Imitadores de Deus.
           
        Estou lendo, pasmem, História dos judeus, de Simon Schama, Companhia das Letras. Recomendo. Isso porque o autor conta, de modo inusitado, essa história tão decantada e recontada. Justo na capa ela já traz uma provocação, quando diz, logo abaixo desse título, À procura das palavras de 1000 a.C. a 1492.
         
      Interessante a leitura, porque ele define duas aproximações com relação ao texto bíblico do Antigo Testamento: aquela literalista, que deseja que todas as informações da Bíblia funcionem como GPS, e outra minimalista, na qual a Bíblia não presta para nenhuma informação histórica nela constante.
          
       Ele coloca os pés no chão, para isso apontando descobertas arqueológicas já neste século, as quais confirmam informações bíblicas bem antigas, tidas como meras suposições em seu texto, mas agora confirmadas para fora do texto bíblico. Mas esses detalhes se tornam secundários, diante de certas afirmações escandalosas.
         
       Uma delas, vou citar aqui, aquela de Paulo Apóstolo, quando diz que devemos ser imitadores de Deus. Ora, se não bastassem as suposições bíblicas a respeito da existência de Deus, tão instigante e sublimemente (nem para todos) assim definido, eventualmente até chamado Altíssimo, vem agora Paulo escrever uma dessas. Exagero. Ou não. É melhor encarar que essa foi mesma a intenção do Apóstolo e tentar entender o que quis dizer.
         
      Com essa tentativa, talvez fique comprovado que a intenção final do Livro é mesmo, como dito em texto anterior por este mesmo canal divulgado, que Deus deseja repartir conosco, por Sua graça, os atributos que definem Sua personalidade. Dito de outra forma, Deus deseja restaurar no homem/mulher a perda da característica original ‘criados a Sua imagem e semelhança’. Ora então, de um modo sublime, agora no linguajar de Pedro Apóstolo, na sua 2ª carta, nos tornarmos ‘coparticipantes da natureza divina’.
           
       Mas como privar desses atributos em nossa própria conduta, como marcas de nosso caráter e personalidade? Provavelmente a própria Bíblia nos dê algumas pistas.

1. Amor. Partindo da definição de Deus escrita por João Apóstolo, Deus é amor, pelo menos tentar começar por esse atributo. No caso, seríamos espelho do amor de Deus, ou seja, onde encontrar esse atributo, portanto? Ora, é só olhar para a vida dos (autênticos) crentes em Jesus, que tal estará expresso. João Apóstolo, em sua 1ª carta indica, passo a passo, a trilha, melhor dizer o Caminho para esse amor. Questão de identidade: se esse amor não for visto e constatado na vida do crente, desista de tentar demonstrar sua autenticidade (do amor e do crente em questão).

2. Caminho com ‘c’ maiúsculo indica Jesus. A pista indicada na carta de João Apóstolo mostra que não há como, pelo menos arranhar a virtude desse amor, a não ser por meio de Jesus Cristo: nele e por meio dele. Lembram-se do diálogo de Jesus e Pedro, à beira do Mar da Galiléia, por ocasião de uma entre as aparições de Jesus ressurreto? "Pedro, tu me amas?" Por isso digo 'arranhar': Pedro declarou-se, por si, insuficiente para o amor. Como chegar a essa autenticidade? A prova do próprio amor do Pai foi demonstrada em seu ápice na entrega de Cristo, diz Paulo Apóstolo aos Romanos. Daí que somente poderemos ver em nós tal virtude se formos, linguajar bíblico, ‘batizados em Cristo’. O que significa isso?

3. Significa dizer da total incapacidade humana para ter em si e pôr em prática esse amor, a não ser pela união a Cristo, de novo Paulo Apóstolo, batizados na morte de Cristo e ressuscitados com Cristo nessa ressurreição. Esse mesmo texto aos Romanos explica que, dessa forma, a parte criminosa que carregamos em nós é ferida de morte e que surge, regenerada em nós, uma nova natureza cuja matriz somente Cristo traz. Daí em diante, em esboço, traços de nova natureza se manifestam na medida desse amor. Cristo em nós, dizem as Escrituras, nós crucificados com Cristo, explora Paulo Apóstolo em sua argumentação, vivendo de fé em fé, no suprimento do Espírito Santo. No estado deplorável do ser humano, somente a ação conjunta da trindade para suprir nele algum traço de amor.

           Entre os apóstolos aqui citados, Paulo, João e Pedro, este último, talvez, entre os três, tenha explicitado até que ponto as Escrituras esperam que se cumpra em nós essa repartição, da parte de Deus, de Sua graça aos homens. Pedro Apóstolo enumera virtudes por meio das quais, segundo diz, nos tornamos ‘coparticipantes na natureza divina’.

          Já avaliou isso? Acho que Pedro sugeriu algo que nenhum dos outros dois aqui citados tenha tido coragem de explicitar. São afirmações como essas que indicam, para as Escrituras, o específico de sua proposta como Livro. Nessas afirmações encontramos o distintivo da Bíblia.

          Caso elas sejam encaradas como verdade e possibilidade, sim, o Livro terá sido levado em conta. E os homens que sugerem essas possibilidades terão mesmo falado em nome de Deus. Caso não sejam levadas em conta, não há, mesmo, razão para atribuir à Bíblia outro valor, senão o literário, seja lá em qual matiz se desejar defini-lo.  

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Mal traçadas linhas 2


                  Diferenças

                 Rápido. Surpreendeu-me a argumentação de uma pessoa de alto nível em um círculo acadêmico. Pelo menos três críticas ela fez ao protestantismo. Vou enumerá-las e dizer que rechaço duas delas e acato apenas uma.
             
          A primeira é que protestantes afirmam com extrema facilidade que estão cara a cara com Deus. Pareceu-me, no contexto de sua fala, que a mulher avaliava esta pretensão nossa de intimidade com o Altíssimo uma bravata, um atrevimento e, como aqui já indiquei, pura pretensão.
            
         A segunda crítica, e esta, particularmente, posso dizer que até me divertiu, foi a menção da graça de Deus. Sem pormenorizadamente entendê-la e até que é compreensível, pois o contexto da mulher não é evangelical, ela acusou os protestantes de utilizar essa graça para enriquecimento, sim, porém monetário. Isso mesmo: suprir-se do vil metal por meio da graça de Deus.
            
        Obviamente, ela focava as igrejas neopentecostais do alvorecer do século XXI, que faturam horrores repartindo bênçãos atribuídas a Deus e recolhendo em moeda corrente seu lucro. Não deixa de ser uma via de enriquecimento, porém a graça aqui indicada não é a autenticamente bíblica.
           
         A terceira crítica, que não veio explícita, como as outras duas, mas deduzi nas entrelinhas da argumentação, a mulher reclamou que, para os protestantes, Deus não tem mais nenhum mistério, que sabemos tudo dEle, somos especialistas no trato com o Altíssimo e, lícita ou ilicitamente, ‘despenseiros’ de Deus, talvez, mas não exatamente de Seus mistérios, como identifica Paulo Apóstolo, exatamente porque, segundo ela percebe, já sabemos ou soubemos tudo de Deus.
          
          Vamos às réplicas:
           
1. Ela tem razão de sua pura, límpida e extrema indignação. Realmente a Bíblia afirma que o sacrifício de Cristo nos põe, irremediavelmente, cara a cara com Deus. Mais que isso: em comunhão íntima com Deus. Quando judeus quiseram apedrejar Jesus, que lhes perguntou as razões dessa agressão, responderam que não era pelo que Jesus fez, mas pelo que dizia: ‘Eu e o Pai somos um’. E na oração sacerdotal Jesus pede ao Pai que tenhamos com Ele, Deus, a mesma comunhão que Jesus tem. Realmente a Bíblia confirma e os protestantes afirmam que, por meio de Jesus, a nossa comunhão é com o Pai, segundo escreveu João Apóstolo em sua 1ª carta. Ela vai continuar a indignar-se com essa pretensão: os autenticamente cristãos privam desse privilégio.
             
2. Quanto a reclamar que a graça de Deus enriquece, e ela até mencionou Weber e o protestantismo como alavanca histórica do capitalismo, caramba, que voo. Realmente a graça enriquece, porém não monetariamente. Ela resgata da pobreza humana, alguém tem dúvida disto? De que o homem é desesperadamente corrupto e corruptor? Não se iluda. Só não se enxerga isso por má fé. É por meio de Sua graça que Deus reparte ao homem seus atributos. Deus não estabelece nenhum impedimento e reparte a cada homem toda a Sua graça, e com ela todo o Seu amor, toda a Sua bondade, enfim. A graça enriquece porque reparte conosco os atributos do caráter de Deus, tornando possível a cura e resgate de nossa condição moral reprovável. A riqueza à qual se referiu a acadêmica é outra, não essa da graça genuína, infelizmente aquela a mais cobiçada pela humanidade.
        
3. Quanto a dizer que os protestantes supõe conhecer tudo a respeito de Deus, neste caso específico, dei razão àquela acadêmica. Torna-se vergonhoso que os protestantes, neste início de século, por meio de seu discurso e de sua ética, demonstrem não mais conhecer nada sobre Deus. Vale aqui lembrar as palavras de Paulo: “Importa que os homens nos considerem como ministros de Cristo e despenseiros dos mistérios de Deus”. Ao inverso, transparece aos outros que banalizamos Deus e fica parecendo que não há mais mistérios de Sua graça a serem revelados, que tudo foi desvendado e o reduzimos a um totalmente conhecido, um meu cumpadi, um ô, meu ou, ainda, um mermão. Pretensão nossa. Largamos de mão a Bíblia, sistematicamente desconhecendo seu conteúdo e, consequentemente, não agindo conforme sua orientação. Daí termos perdido a identidade de ministros de Cristo. Não mais sabemos repartir as riquezas do evangelho e não mais temos, como dizia John Stott, uma contracultura cristã para, por meio dela, marcar positivamente a sociedade (pós)moderna. Por isso somos, sistematicamente, engolidos em nossa superficialidade e pisados nas ruas, pelos homens, como sal insípido.

          Muito instrutivo o debate do qual participei. Ficou patente a opinião, análise e leitura que é feita a respeito dos protestantes, grupo do qual faço parte, assim reconhecido (o grupo e eu mesmo como um deles).

           Reclamar que Jesus nos coloca cara a cara com Deus, não procede, porque é isso mesmo: a nossa comunhão é com o Pai e o seu Filho Jesus Cristo. Que a graça de Deus enriquece monetariamente e que somos culpados pelos males do capitalismo, não tem graça, desculpem-me o trocadilho: graça de Deus é o favor dEle em repartir conosco os atributos de Seu caráter.

           Agora, apontar para a falha dos protestantes em ser ministros de Cristo e despenseiros dos mistérios de Deus, isso lá está correto. Paulo argumentou que isso é o que importa aos homens, ou seja, que assim nos reconheçam. Cada vez mais se torna flagrante, ao inverso, a distinção que Malaquias ressaltou, 450 anos antes de Cristo: não dá mais para ver a diferença entre o justo e o ímpio, entre o que serve e o que não serve a Deus.

        Falha nossa. Falta-nos habilitação para cumprir esse procedimento que Paulo sugere ser o padrão de autenticidade exigido para nós. Importa que os homens nos considerem ministros de Cristo e despenseiros dos mistérios de Deus.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Mal traçadas linhas 1


          Ora, milagres.
     
           Por minha própria conta e risco, inicio estas linhas que, por bem ou por mal, podem ser as primeiras ou últimas. Tratar-se-á, mesocliticamente falando, de uma série, obviamente, de mal traçadas linhas porque, pela própria, de novo, natureza desta provocação, deverão ser, pelo menos, mais de umas. Ou, quem sabe, estas serão as únicas.
       
      A temática destas primeiras mal traçadas segue após o título que vai estampado logo aí, abaixo:
             
       Falando sobre milagres na Bíblia

(ou, outra sugestão de título,) 

       Esse negócio de milagre, como a Bíblia descreve, aconteceu mesmo? 

     A razão de ser desta temática envolve a recente divulgação e discussão, na mídia, dos milagres, nem sei se devo escrever ‘milagres’, relacionados à novela recordiana (Rede Record) ou, quem sabe, à novela Universal “Os Dez Mandamentos”.
            
       O método a ser utilizado nestas primeiras e, talvez, últimas mal traçadas linhas será aquele, ou este, de 5 perguntas. Pretende-se, com elas, ilustrar a questão ou, quando muito, provocá-la. Vamos a elas:

1.     Deus existe?

      Evidentemente que, para uma parcela grande de pessoas, entre as quais eu me incluo, ele, desculpem-me, Ele existe. Pois bem, vamos adiante. 
2.     A Bíblia indica, pelo menos, mais ou menos, quem é esse Deus? 
      Bom, aqui, mesmo para aqueles que acreditam na Bíblia, entre os quais, mais uma vez, eu me incluo, não vai dar para dizer que a Bíblia fala tudo ou, devo grafar, Tudo sobre Ele. Vamos nos contentar com a seguinte afirmação: a Bíblia dá (várias) pistas seguras sobre Quem é Deus. 
3.     Entre o que a Bíblia fala sobre Deus, os milagres – bom, aqui vamos enquadrar, especificamente, aqueles indicados na novela Universal, quais sejam, os indicados pela história do livro de Êxodo – seriam possíveis de ser realizados por Deus? Perguntando de outra forma e, no caso, generalizando: 
        O Deus indicado na (ou pela) Bíblia seria capaz de realizar os milagres que a mesma Bíblia indica que Ele realizou (entre os quais, ressuscitar mortos, este, fundamental, para que possamos acreditar que Ele ressuscitou Cristo, que é o ponto fundamental do Cristianismo)? 
4.     Se Ele seria, ou é capaz de realizar esses milagres descritos na Bíblia ou, numa outra redação desta mesma pergunta argumentativa: Se o Deus que a Bíblia descreve realiza os milagres ali indicados ou se tem poder para realizá-los, por que tanta relutância em aceitá-los como possíveis (ou passíveis) de ter ocorrido?
        Vamos, por exemplo, admitir um desses milagres, este descrito no Gênesis, que foi (ou é, ainda) a Criação do Universo. Indico este, porque a própria Bíblia diz que este milagre, que por ele, o homem, qualquer homem (ou mulher, genericamente falando) tem condições de, deparando a Criação, crer que Deus existe. Por isso estou mencionando este milagre.
       Sim, evolução, Darwin diria. Não vamos, aqui, na economia destas mal traçadas linhas, pôr Deus X Darwin. Vamos supor que Deus disse “Haja luz” e que houve luz. Aí, essas partículas de luz, num desatino qualquer que, evidentemente, estava no programa da Providência (divina) entraram em choque (vide LHC - Large Hadron Collider), surgiu a matéria e, posteriormente, num dado tempo sideral, houve o Big Bang.
      Ainda assim a Bíblia diz que, por meio da criação, podem ser conhecidos (1) os atributos de Deus, (2) Seu poder e (3) Sua divindade. Por isso citei esse primeiro e primordial milagre: a Criação. Pois bem, vamos supor que Ele realizou pelo menos esse (caramba, se, pelo menos esse não atribuirmos a Ele, daqui a pouco não sobrará nada para Deus ter feito, nem mesmo na semana primordial inicial... Ha Ha Ha Ha...).
       Aí, também, meus camaradas, permitam-me dizer, nem vai ser preciso Deus existir...
           Bom, isto posto, ou seja, se, pelo menos, esse milagre Ele realizou, mesmo no contexto dos esclarecimentos darwinianos, a última pergunta: 

5.      Por que tanta relutância em admitir que o Deus que a Bíblia mais ou menos descreve seja capaz de realizar os milagres que ela própria, a Bíblia, descreve?
          Algumas hipóteses para tentar explicar essa relutância:
 1. A Bíblia é um livro ilustrativo, obra literária que deve, sim, ser apreciada ou entendida, porém por métodos e critérios diversos e diferenciados ou, por outra via, se vamos supor que Deus deve andar, por aí, desde a eternidade, aprontando e fazendo dos Seus milagres, não são exata e precisamente esses aí descritos no Livro;
 2. Não se encaixam em nossa mentalidade (pós)moderna essas descrições ou esses milagres assim descritos ou, em outras (mal traçadas) palavras, não dá para engolir essa(s) ou esse(s) milagre(s): a Idade Média e a Antiguidade já passaram, do Renascimento para cá o homem já emplacou sua maioridade. E nela, definitivamente, não cabem mais essas crendices;

3  E, exata e precipuamente, nessa virada de século, melhor, naquela virada de século, refiro-me à passagem do século XIX para o XX, fomos, incluídos nós, os protestantes, também resgatados dessa nossa infância na compreensão do Livro (refiro-me à Bíblia), quero dizer, milagres, sejam eles de que natureza sejam, incluídos aqueles tão prosaica e simbolicamente descritos nos Evangelhos, atribuídos a Jesus, já têm sua dimensão, interpretação e devidos esclarecimentos, bastando para isso recorrer aos manuais para que nenhuma dúvida ou má interpretação prevaleçam.

        Pronto. Finalizam, aqui, estas mal traçadas linhas. Caracterizam-se, também, por sua prolixidade, o que fica comprovado que, além de serem mal traçadas, são, demasiadamente, extensas. Vai aqui, embutido, o meu pedido de perdão.

            Bom, porém, mesmo assim, à guisa de esclarecimento, deve faltar, eu presumo, concluir dizendo que sim, eu acredito nos milagres assim como estão descritos na Bíblia. Pretendi, com estas mal traçadas, discutir razões por que há quem não creia.

            Para citar um último deles, daqueles considerados os mais absurdos, lembro aqui Jonas, o náufrago suicida, o profeta que sobreviveu nas profundezas abissais dos oceanos, por três dias, no ventre de um peixe. Argumento: o que se torna mais absurdo? Crer na possibilidade de Jonas ter respirado no ventre daquele peixe anônimo ou na possibilidade de que o defunto Jesus, que por tês dias esteve morto, ressuscitasse ao terceiro, na madrugada daquele domingo?

           Bem, para crer, para ser aprovado na infância da fé, não é prioritário crer na história de Jonas. Mas é prioritário crer na história de Jesus. E cá, entre nós, absurdo por absurdo, crer na possibilidade de ressuscitar um morto de três dias é muito mais exigente do que crer na possibilidade de Jonas ter respirado oxigênio ou hibernado no ventre do peixe.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Comunhão é mistura. É?


       Comunhão é mistura? Refiro-me, aqui, ao ponto central das Escrituras, expresso nas palavras de Jesus na chamada Oração Sacerdotal em João 17:21 "...a fim de que todos sejam um; e como és tu,  ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós".

       Digo mistura, porque a intenção de Deus, em relação aos que creem, aliás, esclarecendo o todos da citação acima, favor ler o contexto, esse todos refere-se a aqueles que vierem a crer em mim. Pois bem, essa comunidade de crentes, dos que creem em Jesus, ele mesmo pede ao Pai, nessa Sua oração, que se constituam (1) um entre si, (2) um com Ele, Jesus, (3) um com o Pai. E do mesmo modo, na mesma matriz de comunhão que há entre o Pai e o Filho Jesus Cristo.

      Isso é mistura. Comunhão é mistura. Se não, vejamos. Quando a Bíblia afirma que Deus, que o Verbo encarnou, linguagem ainda do Evangelho de João, no capítulo 1, que o Verbo se fez carne, isso significa dizer que Deus, aqui vale a pena consultar, no Evangelho de Lucas, a explicação do anjo a Maria como se daria, que Deus fecundou o óvulo da mulher, Maria, para que nascesse Seu Filho Jesus sem a concorrência humana. O menino não foi fecundado com sêmen humano, mas o óvulo de Maria foi fecundado diretamente por Deus.

      Leia-se em Lucas a explicação dada à mulher, quando ela mesma perguntou: Como será isto, pois não tenho relação com homem algum? Está evidente aqui a intenção de Lucas em demonstrar com clareza que Jesus não foi gerado por homem algum e Maria, virgem naquele momento, buscava por detalhes nas afirmações de Gabriel, o anjo que trazia o recado. Ele mesmo explicou: "Descerá sobre ti o Espírito Santo, e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra; por isso, também, o ente santo que há de nascer será chamado Filho de Deus." 

      Único na história da salvação, esse ato, qual seja, a encarnação do Verbo, o anúncio de como Deus se fez homem, definitivamente, define o modo e o ato como Deus se esvazia de sua deidade para se tornar homem. Identidade e atributos são mantidos, mas todas as características que fazem Deus ser Deus, ou seja, numa definição aproximada, conjunto de tudo o que torna Deus Deus, disso o Altíssimo se esvazia para se tornar homem. E, como homem, tornar-se inteiramente dependente de Deus, como o próprio Jesus afirma e está escrito no evangelho de João, o Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai; porque tudo o que este fizer, o Filho também semelhantemente o faz. Está claro? Aos filipenses, Paulo define a kénosis, ou seja, como e o que foi esse esvaziamento, outra definição aproximada, que é o "ato de se esvaziar de si mesmo, sem perder a própria identidade".

        Deus não deixou de ser Deus, tornou-se homem e, como homem, continuou sendo Deus. Quando me refiro a mistura, não estou dizendo que as duas naturezas se misturaram, a divina e a humana, pois Jesus não se valia de Sua divindade intrínseca para beneficiar-se dela, como Satanás, quando o tentou, queria que fizesse, tentado a transformar pedras em pães. Havia uma delimitação clara entre as duas naturezas, sim, mas, de uma vez por todas, Deus tornou-se homem e, nesse caso, a mistura se dá no fato de que a natureza humana, com todos os seus atributos, Deus experimentou-a em sua plenitude - exceto a condição de pecado, comum a todos os homens e mulheres - para que pudesse ter comunhão real com os que cressem. A condição humana de Deus não inclui a condição de pecador, constituindo-se numa exceção com relação à Pessoa do Filho de Deus, Jesus Cristo.

        O autor de Hebreus indica: Visto, pois, que os filhos têm participação comum de carne e sangue, destes também ele (Jesus), igualmente, participou, para que, por sua morte, destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo [...] Por isso mesmo, convinha que, em todas as coisas, se tornasse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas referentes a Deus e para fazer propiciação pelos pecados do povo. Pois, naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso para socorrer os que são tentados."  

            Alô, alô, puristas de plantão: não estou afirmando que em Jesus se misturam natureza divina e humana. Estou, sim, afirmando que, para misturar-se ao homem Deus fez-se homem. Na comunhão, como as Escrituras a definem, não ocorre perda da personalidade ou da individualidade. Ao contrário, ressaltam-se as duas. O obstáculo, no homem, à comunhão, seja com Deus, seja com seu semelhante, é o pecado. No problema detetado por Paulo na comunidade de Antioquia, quando Pedro, proveniente de Jerusalém, a visitou, era que esse, considerado pedra entre os apóstolos, segundo indicou Paulo, não procedeu segundo a verdade do evangelho. E o problema identificado era exatamente que Pedro não queria misturar-se aos gentios. Quando chegaram à comunidade seus compadres de Jerusalém, narra Paulo, ele decidiu separar-se e, numa escala ainda maior, apartar-se.

         Paulo enquadrou-o, denunciando sua flagrante postura antievangélica, assim como construiu a primorosa peça do texto da Epístola aos Gálatas anotando que, quando tentamos soerguer as barreias que Cristo demoliu, a nós mesmo nos constituímos transgressores, ou seja, Cristo demoliu barreiras e, se nós decidimos soerguê-las, estamos à parte da Obra de Jesus. Cristo, agora segundo diz Paulo aos Efésios, derrubou paredes de separação. Daí dizer que, para misturar-se ao homem, ser comum com o homem, privar da humanidade em todas as suas condições e de modo pleno, Deus se fez, em Jesus Cristo, homem.

          E Jesus, ao contrário de Pedro em sua visita à Antioquia, era um ser gregário. Certa vez, numa citação da implicância de fariseus e intérpretes da lei com João Batista, seus constantes rivais, Jesus argumentou o modo com o discriminavam. Disse como renegavam João Batista, o profeta antissocial, que morava onde não mora ninguém, fazia sua própria comida e tecia suas próprias vestes. E ainda quando vinham batizar-se, a seu convite, tratava os candidatos como raça de víboras, perguntando se a concorrência ao batismo era medo do inferno e denunciando que desejava, sim, ver neles fruto genuíno de arrependimento. Jesus perguntou o que queriam, pois não se satisfaziam com o antissocial, afirmando que era um possesso, e também não se satisfaziam com a postura de Jesus, um beberrão, amigo de prostitutas, publicanos corruptos e pecadores, como se fosse correto isolá-los e categorizar numa classe específica.

         Definitivamente, Jesus não aceitava e não praticava apartar-se do cheiro do povo, da convivência próxima e íntima, de privar com eles a mesma natureza e limitações, exceto a prática de pecado. E no círculo íntimo, entre os apóstolos mais chegados, certa vez, quando encontraram o Mestre conversando, a sós, na beira do poço de Jacó, em Sicar, na Samaria, com uma mulher de fama duvidosa, até mesmo eles, esses discípulos, tentaram esconder sua contrariedade. Mas Jesus, é claro, percebeu e interpelou-os: você não sabem nada de ceifa, não enxergam e não entendem que os campos estão brancos para a ceifa. Tratava-se de mulher, que, até hoje, ainda na tradição oriental, são discriminadas e, ainda por cima, uma samaritana, alvo prioritário de discriminação dos vizinhos judeus daquela época. Definitivamente, Jesus não sabia, na opinião daqueles apóstolos, resguardar a sua imagem.

         Pois bem, à luz desse entendimento, Jesus queima seu filme quando escolhe a escória humana para se envolver com ela. E quem é essa escória? Todos e cada um de nós, sem exceção. É bem verdade, como já dizia Salomão, no Eclesiastes, tudo é vaidade. E, na verdade, o que ele quer dizer é que as coisas, em si, não são vaidade. O que Salomão deseja esclarecer, e o faz, é que o ser humano se vale de qualquer coisa para se colocar acima do outro: condição social, raça, sobrenome, dinheiro, latitude, enfim, o ser humano, definitivamente, não se contenta em ser igual. E comunhão, definitivamente, é ser igual e o mesmo. Pronto. Está posta a contrariedade. Ser humano detesta ser considerado igual, ser colocado no mesmo nível. Paulo, aos Filipenses, diz que cada um deve considerar o outro superior a si mesmo. Se deve ocorrer, mesmo, grau de nivelamento, seja este sugerido pelo apóstolo.

         Porque ele (Jesus) é a nossa paz, o qual de ambos fez um; e, tendo derrubado a parede da separação que estava no meio, a inimizade, aboliu, na sua carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para que dos dois criasse, em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz, e reconciliasse ambos e só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade. E, vindo, evangelizou paz a vós outros que estáveis longe e paz também aos que estavam perto; porque, por ele, ambos temos acesso ao Pai em um Espírito." Paulo aos Efésios 2:14-18. ´

        Quando, porém, Cefas veio a Antioquia, resisti-lhe face a face, porque se tornara repreensível. Com efeito, antes de chegarem alguns da parte de Tiago, comia com os gentios; quando, porém, chegaram, afastou-se e, por fim, veio a apartar-se, temendo os da circuncisão. E também os demais judeus dissimularam com ele, a ponto de o próprio Barnabé ter-se deixado levar pela dissimulação deles. Quando, porém, vi que não procediam corretamente segundo a verdade do evangelho, disse a Cefas, na presença de todos: se, sendo tu judeu, vives como gentio e não como judeu, por que obrigas os gentios a viverem como judeus? [...] Porque, se torno a edificar aquilo que destruí, a mim mesmo me constituo transgressor." Paulo aos Gálatas 2:11-14 e 18.

        Em síntese, demonstram os textos, se Cristo derruba barreiras de relacionamento entre os homens, e fez isso tornando, para nós, possível o próprio relacionamento, sem barreiras, com Deus. E se me tornei cúmplice de Cristo, associando-me a Ele, batizado nEle pelo Espírito Santo, para ter comunhão com o Pai e, consequentemente, com os homens, eu mesmo aprendi, com Cristo, a destruir, a demolir barreiras. Se elas voltam a ser erguidas por mim, a mim mesmo me constituo transgressor. O problema da comunhão e sua rejeição é que se trata de mistura, de privar com o outro e do mesmo modo que o outro tudo, incluídas as mazelas que nos são comuns. Por isso Cristo se associou a nós, na mesma condição humana, exceto o pecado que Ele nunca experimentou e, por isso mesmo, pôde e pode nos livrar desse mal.

         Cristo realizou, tornou concreta e possível a nossa paz com Deus e, consequentemente e decorrente disso paz com os homens, paz entre os homens, paz que vai até os limites da comunhão, invade os limites da comunhão. Esse limites coexistem com os limites da santidade que Cristo, pelo seu sangue, conquistou para nós. Mas santidade não é, como Pedro tentou impor, segregação. Santidade também é mistura. Em nós age o Espírito Santo, habitando em nós, em comunhão conosco, auxiliando-nos na nossa luta contra nós mesmos, homem renovado em Cristo versus a carnalidade que tem a nossa assinatura e opções. Haroldo de Campos traduziu o Eclesiastes, dizendo que vaidade é névoa de nada. Bloqueie a sua vaidade, bloqueio a minha vaidade e, como ensinou Paulo aos Gálatas, deixemos Cristo viver em nós, estejamos crucificados com Cristo, vivamos por fé e, definitivamente, autenticidade de comunhão e o exercício dela vai nos tornar igreja autêntica.  


Comunhão é mistura. É?


       Comunhão é mistura? Refiro-me, aqui, ao ponto central das Escrituras, expresso nas palavras de Jesus na chamada Oração Sacerdotal em João 17:21 "...a fim de que todos sejam um; e como és tu,  ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós".

       Digo mistura, porque a intenção de Deus, em relação aos que creem, aliás, esclarecendo o todos da citação acima, favor ler o contexto, esse todos refere-se a aqueles que vierem a crer em mim. Pois bem, essa comunidade de crentes, dos que creem em Jesus, ele mesmo pede ao Pai, nessa Sua oração, que se constituam (1) um entre si, (2) um com Ele, Jesus, (3) um com o Pai. E do mesmo modo, na mesma matriz de comunhão que há entre o Pai e o Filho Jesus Cristo.

      Isso é mistura. Comunhão é mistura. Se não, vejamos. Quando a Bíblia afirma que Deus, que o Verbo encarnou, linguagem ainda do Evangelho de João, no capítulo 1, que o Verbo se fez carne, isso significa dizer que Deus, aqui vale a pena consultar, no Evangelho de Lucas, a explicação do anjo a Maria como se daria, que Deus fecundou o óvulo da mulher, Maria, para que nascesse Seu Filho Jesus sem a concorrência humana. O menino não foi fecundado com sêmen humano, mas o óvulo de Maria foi fecundado diretamente por Deus.

      Leia-se em Lucas a explicação dada à mulher, quando ela mesma perguntou: Como será isto, pois não tenho relação com homem algum? Está evidente aqui a intenção de Lucas em demonstrar com clareza que Jesus não foi gerado por homem algum e Maria, virgem naquele momento, buscava por detalhes nas afirmações de Gabriel, o anjo que trazia o recado. Ele mesmo explicou: "Descerá sobre ti o Espírito Santo, e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra; por isso, também, o ente santo que há de nascer será chamado Filho de Deus." 

      Único na história da salvação, esse ato, qual seja, a encarnação do Verbo, o anúncio de como Deus se fez homem, definitivamente, define o modo e o ato como Deus se esvazia de sua deidade para se tornar homem. Identidade e atributos são mantidos, mas todas as características que fazem Deus ser Deus, ou seja, numa definição aproximada, conjunto de tudo o que torna Deus Deus, disso o Altíssimo se esvazia para se tornar homem. E, como homem, tornar-se inteiramente dependente de Deus, como o próprio Jesus afirma e está escrito no evangelho de João, o Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai; porque tudo o que este fizer, o Filho também semelhantemente o faz. Está claro? Aos filipenses, Paulo define a kénosis, ou seja, como e o que foi esse esvaziamento, outra definição aproximada, que é o "ato de se esvaziar de si mesmo, sem perder a própria identidade".

        Deus não deixou de ser Deus, tornou-se homem e, como homem, continuou sendo Deus. Quando me refiro a mistura, não estou dizendo que as duas naturezas se misturaram, a divina e a humana, pois Jesus não se valia de Sua divindade intrínseca para beneficiar-se dela, como Satanás, quando o tentou, queria que fizesse, tentado a transformar pedras em pães. Havia uma delimitação clara entre as duas naturezas, sim, mas, de uma vez por todas, Deus tornou-se homem e, nesse caso, a mistura se dá no fato de que a natureza humana, com todos os seus atributos, Deus experimentou-a em sua plenitude, exceto a condição de pecado, comum a todos os homens e mulheres. Essa condição de pecador constitui-se numa exceção com relação à Pessoa do Filho de Deus, Jesus Cristo.

        O autor de Hebreus indica: Visto, pois, que os filhos têm participação comum de carne e sangue, destes também ele (Jesus), igualmente, participou, para que, por sua morte, destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo [...] Por isso mesmo, convinha que, em todas as coisas, se tornasse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas referentes a Deus e para fazer propiciação pelos pecados do povo. Pois, naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso para socorrer os que são tentados."  

            Alô, alô, puristas de plantão: não estou afirmando que em Jesus se misturam natureza divina e humana. Estou, sim, afirmando que, para misturar-se ao homem Deus fez-se homem. Na comunhão, como as Escrituras a definem, não ocorre perda da personalidade ou da individualidade. Ao contrário, ressaltam-se as duas. O obstáculo, no homem, à comunhão, seja com Deus, seja com seu semelhante, é o pecado. No problema detetado por Paulo na comunidade de Antioquia, quando Pedro, proveniente de Jerusalém, a visitou, era que esse, considerado pedra entre os apóstolos, segundo indicou Paulo, não procedeu segundo a verdade do evangelho. E o problema identificado era exatamente que Pedro não queria misturar-se aos gentios. Quando chegaram à comunidade seus compadres de Jerusalém, narra Paulo, ele decidiu separar-se e, numa escala ainda maior, apartar-se.

         Paulo enquadrou-o, denunciando sua flagrante postura antievangélica, assim como construiu a primorosa peça do texto da Epístola aos Gálatas anotando que, quando tentamos soerguer as barreias que Cristo demoliu, a nós mesmo nos constituímos transgressores, ou seja, Cristo demoliu barreiras e, se nós decidimos soerguê-las, estamos à parte da Obra de Jesus. Cristo, agora segundo diz Paulo aos Efésios, derrubou paredes de separação. Daí dizer que, para misturar-se ao homem, ser comum com o homem, privar da humanidade em todas as suas condições e de modo pleno, Deus se fez, em Jesus Cristo, homem.

          E Jesus, ao contrário de Pedro em sua visita à Antioquia, era um ser gregário. Certa vez, numa citação da implicância de fariseus e intérpretes da lei com João Batista, seus constantes rivais, Jesus argumentou o modo com o discriminavam. Disse como renegavam João Batista, o profeta antissocial, que morava onde não mora ninguém, fazia sua própria comida e tecia suas próprias vestes. E ainda quando vinham batizar-se, a seu convite, tratava os candidatos como raça de víboras, perguntando se a concorrência ao batismo era medo do inferno e denunciando que desejava, sim, ver neles fruto genuíno de arrependimento. Jesus perguntou o que queriam, pois não se satisfaziam com o antissocial, afirmando que era um possesso, e também não se satisfaziam com a postura de Jesus, um beberrão, amigo de prostitutas, publicanos corruptos e pecadores, como se fosse correto isolá-los e categorizar numa classe específica.

         Definitivamente, Jesus não aceitava e não praticava apartar-se do cheiro do povo, da convivência próxima e íntima, de privar com eles a mesma natureza e limitações, exceto a prática de pecado. E no círculo íntimo, entre os apóstolos mais chegados, certa vez, quando encontraram o Mestre conversando, a sós, na beira do poço de Jacó, em Samaria, com uma mulher de fama duvidosa, até mesmo eles, esses discípulos, tentaram esconder sua contrariedade. Mas Jesus, é claro, percebeu e interpelou-os: você não sabem nada de ceifa, não enxergam e não entendem que os campos estão brancos para a ceifa. Tratava-se de mulher, que, até hoje, ainda na tradição oriental, são discriminadas e, ainda por cima, uma samaritana, alvo prioritário de discriminação dos vizinhos judeus daquela época. Definitivamente, Jesus não sabia, na opinião daqueles apóstolos, resguardar a sua imagem.

         Pois bem, à luz desse entendimento, Jesus queima seu filme quando escolhe a escória humana para se envolver com ela. E quem é essa escória? Todos e cada um de nós, sem exceção. É bem verdade, como já dizia Salomão, no Eclesiastes, tudo é vaidade. E, na verdade, o que ele quer dizer é que as coisas, em si, não são vaidade. O que Salomão deseja esclarecer, e o faz, é que o ser humano se vale de qualquer coisa para se colocar acima do outro: condição social, raça, sobrenome, dinheiro, latitude, enfim, o ser humano, definitivamente, não se contenta em ser igual. E comunhão, definitivamente, é ser igual e o mesmo. Pronto. Está posta a contrariedade. Ser humano detesta ser considerado igual, ser colocado no mesmo nível. Paulo, aos Filipenses, diz que cada um deve considerar o outro superior a si mesmo. Se deve ocorrer, mesmo, grau de nivelamento, seja este sugerido pelo apóstolo.

         Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos fez um; e, tendo derrubado a parede da separação que estava no meio, a inimizade, aboliu, na sua carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para que dos dois criasse, em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz, e reconciliasse ambos e só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade. E, vindo, evangelizou paz a vós outros que estáveis longe e paz também aos que estavam perto; porque, por ele, ambos temos acesso ao Pai em um Espírito." Paulo aos Efésios 2:14-18. ´

        Quando, porém, Cefas veio a Antioquia, resisti-lhe face a face, porque se tornara repreensível. Com efeito, antes de chegarem alguns da parte de Tiago, comia com os gentios; quando, porém, chegaram, afastou-se e, por fim, veio a apartar-se, temendo os da circuncisão. E também os demais judeus dissimularam com ele, a ponto de o próprio Barnabé ter-se deixado levar pela dissimulação deles. Quando, porém, vi que não procediam corretamente segundo a verdade do evangelho, disse a Cefas, na presença de todos: se, sendo tu judeu, vives como gentio e não como judeu, por que obrigas os gentios a viverem como judeus? [...] Porque, se torno a edificar aquilo que destruí, a mim mesmo me constituo transgressor." Paulo aos Gálatas 2:11-14 e 18.

        Em síntese, demonstram os textos, se Cristo derruba barreiras de relacionamento entre os homens, e fez isso tornando, para nós, possível o próprio relacionamento, sem barreiras, com Deus. E se me tornei cúmplice de Cristo, associando-me a Ele, batizado nEle pelo Espírito Santo, para ter comunhão com o Pai e, consequentemente, com os homens, eu mesmo aprendi, com Cristo, a destruir, a demolir barreiras. Se elas voltam a ser erguidas por mim, a mim mesmo me constituo transgressor. O problema da comunhão e sua rejeição é que se trata de mistura, de privar com o outro e do mesmo modo que o outro tudo, incluídas as mazelas que nos são comuns. Por isso Cristo se associou a nós, na mesma condição humana, exceto o pecado que Ele nunca experimentou e, por isso mesmo, pôde e pode nos livrar desse mal.

         Cristo realizou, tornou concreta e possível a nossa paz com Deus e, consequentemente e decorrente disso paz com os homens, paz entre os homens, paz que vai até os limites da comunhão, invade os limites da comunhão. Esse limites coexistem com os limites da santidade que Cristo, pelo seu sangue, conquistou para nós. Mas santidade não é, como Pedro tentou impor, segregação. Santidade também é mistura. Em nós age o Espírito Santo, habitando em nós, em comunhão conosco, auxiliando-nos na nossa luta contra nós mesmos, homem renovado em Cristo versus a carnalidade que tem a nossa assinatura e opções. Haroldo de Campos traduziu o Eclesiastes, dizendo que vaidade é névoa de nada. Bloqueie a sua vaidade, bloqueio a minha vaidade e, como ensinou Paulo aos Gálatas, deixemos Cristo viver em nós, estejamos crucificados com Cristo, vivamos por fé e, definitivamente, autenticidade de comunhão e o exercício dela vai nos tornar igreja autêntica.  


quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Por quem sois ou basta a cada dia o seu (próprio) mal.


     Certas frases das Escrituras, caso chegassem a nossos dias como se fossem a única, sem nenhuma outra, entre as tradicionadas como saídas da (própria) boca de Jesus, fariam efeito, ou o mesmo efeito. Hoje acordei imaginando o efeito desta: "Basta a cada dia o seu mal", caso somente ela fosse suposta herança entre tudo o que é atribuído a Jesus como ipsissima verba.

     O sentido dessa frase deve estar ligado às seguintes circunspecções: a primeira delas é que, no dia de ontem, já ido, a ele couberam todos os males. Duas opções, pelo menos: o vosso pecado vos há de achar ou game over até o dia do Juízo Final. E faça o favor de atualizar sua agenda e desfazer os compromissos, porque nesse dia, compulsoriamente, estaremos todos juntos, diante do Telão e frente a frente com o Juiz.

     Segunda delas, é que para este dia que aqui começa estarão reservados seus próprios males, pelo menos até 12 h, que é meia-noite no falar regional daqui. Reflexões sobre a maldade, costumam ser sutis, porque cada um, ao analisar sua malícia, está afetado por elas e nunca será, totalmente, isento. Desse modo, será facílimo nos julgarmos melhor do que outrem. E, principalmente, se julgarmos a nós mesmos protestantes, herdeiros indiretos da Reforma, vamos nos julgar melhores do que os outros.

     Falha estúpida esta, porque a Escritura indica que somos indesculpáveis, quem quer que sejamos, visto que, no que julgamos outrem, a nós mesmos nos enganamos (e nos condenamos). E fazendo assim, argumenta Paulo na Carta aos Romanos, ignoramos, propositadamente, que foi a bondade de Deus, e não a nossa (própria), hipoteticamente, que nos conduziu ao arrependimento. Isto aqui, arrependimento, é o expediente que nos coloca frente a frente com Deus e, consequentemente, com o nosso pecado, não necessariamente nesta ordem.

     Terceira delas, entre as circunspecções: Por quem sois? Pelo sangue de Cristo. Alguém se julga suficiente para avaliar a abrangência deste significado? Ora, se Cristo decidiu, por Si, intervir e assumir a culpa por todo e cada homem/mulher, filigranas, no varejo e no atacado do meu, do seu e do pecado alheio, alhures e algures, impossível abarcar num mínimo de compreensão toda essa abrangência. Na contabilidade do próprio mal, cada um aprende a, uma vez vacinado para esse veneno, precaver-se contra o mesmo mal praticado, evitando reincidência, repetições, o mesmo videotape. 

       O pecado, de tão entranhado em nossa personalidade, constante de nossa própria assinatura, enfrentá-lo passa a ser tentativa de fuga. Repeti-lo, acaba por nos tornar hipócritas e dissimulados. Envergonhados, só nos resta admitir ou, vez por outra, negar. Nesse jogo de ocultação/revelação, dizem as Escrituras, trava-se um embate, nós versus  o Espírito, o Espírito versus nossa carnalidade. Talvez, o único trecho nas Escrituras que afirma que o Espírito milita. Milícia, diz um eventual dicionário, é "arte e prática da guerra" ou "a guerra propriamente dita". Talvez, de novo, a única passagem nas Escrituras que afirma que uma personalidade tão plácida como o Espírito se envolva numa, digamos, milícia.

         E ora bem, vejamos, o que no Rio de Janeiro chamam milícia. Mas pode acreditar que esse Espírito não usa as armas dessa milícia, esclarece o (próprio) Paulo: as armas da nossa milícia não são carnais, mas, poderosas em Deus, anulam sofismas. Dicionário eventual: Sofisma é argumento falso ou raciocínio viciado, usado intencionalmente para induzir o outro ao erro. Denomina-se sofisma formal se as premissas que o sustentam são válidas e se sua falsidade derivar do mau uso das regras de inferência lógica." Enfim, sofisma, seja no barato ou no requinte: costumamos praticar dos dois tipos.

          Basta o seu (próprio) mal. Quando o engendramos, e somos nós, unicamente, os humanos, que o engendramos, costumamos dissimular esse mesmo mal. Nem nós mesmos temos isenção e condições equilibradas para identificá-lo, assumi-lo e, definitivamente, debelar. Basta a cada dia. Esqueça o de ontem. Ou melhor, relembre, na medida em que essa lembrança possa ajudá-lo, quem sabe, a evitar sua repetição. E não adiantam truques de Alice ou trick-or-treat. Pecado é mal, com ele não se brinca, impregnou minha e tua existência e só Deus tem sua cura. E é pelo sangue, unicamente pelo sangue de Jesus. Por quem sois?

          

         

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Estações na vida de Abraão


    O crente Abraão

            Em épocas de derrame de crentes, às vezes devemos até escrever "crentes", vale a pena relembrar o que a Bíblia tem a dizer sobre Abraão. Ele é o cara do Antigo Testamento mais citado nas páginas do Novo Testamento. Simples assim, crente, sem adjetivos. Aliás, é chamado de "o pai da fé", muito embora isso não significa imunidade, perfeição ou isenção de defeitos. Basta seguirmos suas estações, descritas lá no Gênesis, para identificar isso.

          Estações, porque nossa vida pode ser entendida desse modo, assim com-par-ti-men-ta-li-za-da. E há, na vida de Abraão, assim como em nossa própria, a possibilidade de fazer essa leitura. Isso permite, como que, organizar uma sequência, analisar nossa caminhada e nossa relação com Deus, assim como o Gênesis mostra em relação a Abraão. A cada etapa da vida dele vão corresponder, como muita similaridade, apenas fazendo a transposição de contexto e tempo, etapas semelhantes em nossa própria vida.

1. O chamado: para caminhar com Deus, começa-se pelo chamado. Nenhum homem possui, por natural e espontaneamente, intimidade, comunhão ou desejo de caminhar com Deus. Abraão, por exemplo, segundo mesmo lembra Josué em seu discurso (Josué 24:2), em seu contexto familiar, na época assim conhecido, era de uma família idólatra. Muito unida, verificamos isso quando,  por exemplo, tendo precocemente perdido Harã, o caçula, mudam-se de Ur, na Mesopotâmia, e vão residir numa terra a qual dão o nome de Harã (Gênesis 11:27-31). Ser unida era uma virtude, mas a idolatria era sua marca distintiva. Idolatria é escolher para si um deus de qualquer tradição e não atentar para o Deus único, real, existente e verdadeiro. Pois foi esse Deus único que chamou Abrão duas vezes, pois foi assim necessário, a primeira delas em Ur (Atos 7:2-4) e, posteriormente, em Harã (Gênesis 12:1-4).

        A Bíblia não demarca, com precisão e detalhes, quando se deu a conversão de Abraão ou quem o evangelizou. Mas demarca o chamado, que precisou ser duplo, para que Abraão se deslocasse no contexto de sua família para o lugar onde Deus desejava que ele se estabelecesse. Chamado de Deus significa o primeiro contato, quando a palavra de Deus chega a nós. Alguém também se interpõe entre nós e Deus, porque não existe fala com Deus sem mediação humana, pois Deus fala por meio de profetas (Amós 3:7).

Características deste tipo específico de chamado

        A história contada no Gênesis indica Deus, ao entardecer, procurando o casal, no jardim onde o colocara, para conversa íntima (Gênesis 3:8). Deus é amor, define João em sua 1ª carta (1 João 4:8). Ora, o que significa dizer isso? Significa que Deus não abre mão de Sua relação com o ser humano, homem ou mulher. Que os fez a Sua própria imagem e semelhança, homem e mulher os criou (Gênesis 1:27). Portanto, se Deus abrisse mão dessa relação, descaracterizaria a Si mesmo.

        Daí a essência do chamado de Deus: o desejo incontido de comunhão com o homem. Deus é amor significa, em essência, a necessidade de haver comunhão entre Ele e o homem. Aqui intervém Jesus Cristo, por causa do pecado. O Gênesis também explica o que é, em essência, o pecado: a inversão do padrão de Deus. A contradição da palavra de Deus resulta nessa degeneração. Deus disse ao homem: "Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás, porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás." (Gênesis 2:17) Satanás disse à mulher: "É certo que não morrereis." (Gênesis 3:4). Daí passou o homem a dizer "sim", quando Deus diz "não" ou, ao inverso, dizer "não", quando Deus diz "sim".

          Por isso é necessário resgatar o homem de sua condição de rejeição a Deus e ao Seu chamado. Não é mais natural, ao homem ou à mulher, conversar com Deus na viração do dia (Gênesis 3:8). Então, Deus chama o homem para Si. Há uma promessa, expressa em Gênesis 3:15, que um mediador iria interpor-se entre Deus e o homem, anulando o efeito da rebeldia humana, caso o homem atenda ao chamado de Deus. Vencido seu conflito íntimo, de até mesmo negar que Deus exista ou que Sua palavra chegue a nós, o homem será capaz de ouvir a voz de Deus.

         O autor da carta aos Hebreus 1:1-4 indica o modo frequente como Deus falou ao longo das eras. E o modo definitivo e final como fala por meio de Jesus Cristo, seu Filho. A palavra de Deus chega ao homem por meio da Bíblia, voz dos que ouviram a voz de Deus ao longo do tempo. E torna-se possível ouvir a voz de Deus ainda agora, por meio daqueles que creem em Sua palavra. A história descrita na Bíblia é a história dos que ouviram a palavra de Deus e, ainda hoje, testemunham que a ouviram e que ainda pode ser ouvida. Atenda ao chamado da Palavra de Deus.
          

2. Abraão e seu altares: uma vez tendo pisado, pela primeira vez, na terra para onde Deus desejava que ele se deslocasse, Abraão edificou um altar (Gênesis 12:7). Uma vez dando uma primeira olhadela por ali, curtindo as belezas e o deslumbramento que a Palestina daquele tempo proporcionava, bastou para que edificasse um primeiro altar.

       Altar é lugar de contato com Deus. Esse tipo de edificação, no caso de Abraão, tratava-se de um amontoado de pedras rústicas, nas quais não era permitido manipular cinzel ou instrumento que as modelassem (Êxodo 20:25). Os povos que habitavam aquelas terras deveriam estranhar muito o despojamento de Abraão, em ajuntar pedras rústicas, invocar seu Deus, para logo dali se afastar e deixar o local, sem que se tornasse um local destacado, sacramentado, de algum modo considerado sagrado. Ficavam patentes algumas verdades: (1) Deus se afina muito bem com despojamento e simplicidade; (2) santo não é o lugar, mas a pessoa; (3) Deus não tem rosto nem imagem, pois Abraão não carregava consigo ídolo nenhum.

          Altar é símbolo do lugar de encontro entre Deus e o homem. Altar é lugar de oração. Também é lugar que representa expiação, que significa a necessidade de que haja mediação entre Deus e o homem. O pecado entranhado no homem o torna incompatível com a natureza divina. Mas o altar representa lugar de sacrifício pelo pecado, morte do Cordeiro de Deus, Jesus Cristo, que é a mediação e a expiação pelos nosso pecados.

            Qualquer religião depara com o problema do mal no ser humano. Pensa-se logo numa compensação. Pois não há compensação e nem há remédio. Não da parte do homem. E somente há pagamento pela culpa, ressarcimento do dano, quando Jesus se interpõe como preço e solução definitiva. A ressurreição em Cristo é compensação definitiva e cura definitiva do pecado. Mas ela só se dará uma vez que o homem morra em Cristo, seja batizado, unido a Cristo na morte de Cristo (Romanos 6:4), para que, na ressurreição em Cristo, seja expiada a culpa e renovada a vida eterna e definitiva.