Comunhão é mistura? Refiro-me, aqui, ao ponto central das Escrituras, expresso nas palavras de Jesus na chamada Oração Sacerdotal em João 17:21 "...a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós".
Digo mistura, porque a intenção de Deus, em relação aos que creem, aliás, esclarecendo o todos da citação acima, favor ler o contexto, esse todos refere-se a aqueles que vierem a crer em mim. Pois bem, essa comunidade de crentes, dos que creem em Jesus, ele mesmo pede ao Pai, nessa Sua oração, que se constituam (1) um entre si, (2) um com Ele, Jesus, (3) um com o Pai. E do mesmo modo, na mesma matriz de comunhão que há entre o Pai e o Filho Jesus Cristo.
Isso é mistura. Comunhão é mistura. Se não, vejamos. Quando a Bíblia afirma que Deus, que o Verbo encarnou, linguagem ainda do Evangelho de João, no capítulo 1, que o Verbo se fez carne, isso significa dizer que Deus, aqui vale a pena consultar, no Evangelho de Lucas, a explicação do anjo a Maria como se daria, que Deus fecundou o óvulo da mulher, Maria, para que nascesse Seu Filho Jesus sem a concorrência humana. O menino não foi fecundado com sêmen humano, mas o óvulo de Maria foi fecundado diretamente por Deus.
Leia-se em Lucas a explicação dada à mulher, quando ela mesma perguntou: Como será isto, pois não tenho relação com homem algum? Está evidente aqui a intenção de Lucas em demonstrar com clareza que Jesus não foi gerado por homem algum e Maria, virgem naquele momento, buscava por detalhes nas afirmações de Gabriel, o anjo que trazia o recado. Ele mesmo explicou: "Descerá sobre ti o Espírito Santo, e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra; por isso, também, o ente santo que há de nascer será chamado Filho de Deus."
Único na história da salvação, esse ato, qual seja, a encarnação do Verbo, o anúncio de como Deus se fez homem, definitivamente, define o modo e o ato como Deus se esvazia de sua deidade para se tornar homem. Identidade e atributos são mantidos, mas todas as características que fazem Deus ser Deus, ou seja, numa definição aproximada, conjunto de tudo o que torna Deus Deus, disso o Altíssimo se esvazia para se tornar homem. E, como homem, tornar-se inteiramente dependente de Deus, como o próprio Jesus afirma e está escrito no evangelho de João, o Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai; porque tudo o que este fizer, o Filho também semelhantemente o faz. Está claro? Aos filipenses, Paulo define a kénosis, ou seja, como e o que foi esse esvaziamento, outra definição aproximada, que é o "ato de se esvaziar de si mesmo, sem perder a própria identidade".
Deus não deixou de ser Deus, tornou-se homem e, como homem, continuou sendo Deus. Quando me refiro a mistura, não estou dizendo que as duas naturezas se misturaram, a divina e a humana, pois Jesus não se valia de Sua divindade intrínseca para beneficiar-se dela, como Satanás, quando o tentou, queria que fizesse, tentado a transformar pedras em pães. Havia uma delimitação clara entre as duas naturezas, sim, mas, de uma vez por todas, Deus tornou-se homem e, nesse caso, a mistura se dá no fato de que a natureza humana, com todos os seus atributos, Deus experimentou-a em sua plenitude - exceto a condição de pecado, comum a todos os homens e mulheres - para que pudesse ter comunhão real com os que cressem. A condição humana de Deus não inclui a condição de pecador, constituindo-se numa exceção com relação à Pessoa do Filho de Deus, Jesus Cristo.
O autor de Hebreus indica: Visto, pois, que os filhos têm participação comum de carne e sangue, destes também ele (Jesus), igualmente, participou, para que, por sua morte, destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo [...] Por isso mesmo, convinha que, em todas as coisas, se tornasse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas referentes a Deus e para fazer propiciação pelos pecados do povo. Pois, naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso para socorrer os que são tentados."
Alô, alô, puristas de plantão: não estou afirmando que em Jesus se misturam natureza divina e humana. Estou, sim, afirmando que, para misturar-se ao homem Deus fez-se homem. Na comunhão, como as Escrituras a definem, não ocorre perda da personalidade ou da individualidade. Ao contrário, ressaltam-se as duas. O obstáculo, no homem, à comunhão, seja com Deus, seja com seu semelhante, é o pecado. No problema detetado por Paulo na comunidade de Antioquia, quando Pedro, proveniente de Jerusalém, a visitou, era que esse, considerado pedra entre os apóstolos, segundo indicou Paulo, não procedeu segundo a verdade do evangelho. E o problema identificado era exatamente que Pedro não queria misturar-se aos gentios. Quando chegaram à comunidade seus compadres de Jerusalém, narra Paulo, ele decidiu separar-se e, numa escala ainda maior, apartar-se.
Paulo enquadrou-o, denunciando sua flagrante postura antievangélica, assim como construiu a primorosa peça do texto da Epístola aos Gálatas anotando que, quando tentamos soerguer as barreias que Cristo demoliu, a nós mesmo nos constituímos transgressores, ou seja, Cristo demoliu barreiras e, se nós decidimos soerguê-las, estamos à parte da Obra de Jesus. Cristo, agora segundo diz Paulo aos Efésios, derrubou paredes de separação. Daí dizer que, para misturar-se ao homem, ser comum com o homem, privar da humanidade em todas as suas condições e de modo pleno, Deus se fez, em Jesus Cristo, homem.
E Jesus, ao contrário de Pedro em sua visita à Antioquia, era um ser gregário. Certa vez, numa citação da implicância de fariseus e intérpretes da lei com João Batista, seus constantes rivais, Jesus argumentou o modo com o discriminavam. Disse como renegavam João Batista, o profeta antissocial, que morava onde não mora ninguém, fazia sua própria comida e tecia suas próprias vestes. E ainda quando vinham batizar-se, a seu convite, tratava os candidatos como raça de víboras, perguntando se a concorrência ao batismo era medo do inferno e denunciando que desejava, sim, ver neles fruto genuíno de arrependimento. Jesus perguntou o que queriam, pois não se satisfaziam com o antissocial, afirmando que era um possesso, e também não se satisfaziam com a postura de Jesus, um beberrão, amigo de prostitutas, publicanos corruptos e pecadores, como se fosse correto isolá-los e categorizar numa classe específica.
Definitivamente, Jesus não aceitava e não praticava apartar-se do cheiro do povo, da convivência próxima e íntima, de privar com eles a mesma natureza e limitações, exceto a prática de pecado. E no círculo íntimo, entre os apóstolos mais chegados, certa vez, quando encontraram o Mestre conversando, a sós, na beira do poço de Jacó, em Sicar, na Samaria, com uma mulher de fama duvidosa, até mesmo eles, esses discípulos, tentaram esconder sua contrariedade. Mas Jesus, é claro, percebeu e interpelou-os: você não sabem nada de ceifa, não enxergam e não entendem que os campos estão brancos para a ceifa. Tratava-se de mulher, que, até hoje, ainda na tradição oriental, são discriminadas e, ainda por cima, uma samaritana, alvo prioritário de discriminação dos vizinhos judeus daquela época. Definitivamente, Jesus não sabia, na opinião daqueles apóstolos, resguardar a sua imagem.
Pois bem, à luz desse entendimento, Jesus queima seu filme quando escolhe a escória humana para se envolver com ela. E quem é essa escória? Todos e cada um de nós, sem exceção. É bem verdade, como já dizia Salomão, no Eclesiastes, tudo é vaidade. E, na verdade, o que ele quer dizer é que as coisas, em si, não são vaidade. O que Salomão deseja esclarecer, e o faz, é que o ser humano se vale de qualquer coisa para se colocar acima do outro: condição social, raça, sobrenome, dinheiro, latitude, enfim, o ser humano, definitivamente, não se contenta em ser igual. E comunhão, definitivamente, é ser igual e o mesmo. Pronto. Está posta a contrariedade. Ser humano detesta ser considerado igual, ser colocado no mesmo nível. Paulo, aos Filipenses, diz que cada um deve considerar o outro superior a si mesmo. Se deve ocorrer, mesmo, grau de nivelamento, seja este sugerido pelo apóstolo.
Porque ele (Jesus) é a nossa paz, o qual de ambos fez um; e, tendo derrubado a parede da separação que estava no meio, a inimizade, aboliu, na sua carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para que dos dois criasse, em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz, e reconciliasse ambos e só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade. E, vindo, evangelizou paz a vós outros que estáveis longe e paz também aos que estavam perto; porque, por ele, ambos temos acesso ao Pai em um Espírito." Paulo aos Efésios 2:14-18. ´
Quando, porém, Cefas veio a Antioquia, resisti-lhe face a face, porque se tornara repreensível. Com efeito, antes de chegarem alguns da parte de Tiago, comia com os gentios; quando, porém, chegaram, afastou-se e, por fim, veio a apartar-se, temendo os da circuncisão. E também os demais judeus dissimularam com ele, a ponto de o próprio Barnabé ter-se deixado levar pela dissimulação deles. Quando, porém, vi que não procediam corretamente segundo a verdade do evangelho, disse a Cefas, na presença de todos: se, sendo tu judeu, vives como gentio e não como judeu, por que obrigas os gentios a viverem como judeus? [...] Porque, se torno a edificar aquilo que destruí, a mim mesmo me constituo transgressor." Paulo aos Gálatas 2:11-14 e 18.
Em síntese, demonstram os textos, se Cristo derruba barreiras de relacionamento entre os homens, e fez isso tornando, para nós, possível o próprio relacionamento, sem barreiras, com Deus. E se me tornei cúmplice de Cristo, associando-me a Ele, batizado nEle pelo Espírito Santo, para ter comunhão com o Pai e, consequentemente, com os homens, eu mesmo aprendi, com Cristo, a destruir, a demolir barreiras. Se elas voltam a ser erguidas por mim, a mim mesmo me constituo transgressor. O problema da comunhão e sua rejeição é que se trata de mistura, de privar com o outro e do mesmo modo que o outro tudo, incluídas as mazelas que nos são comuns. Por isso Cristo se associou a nós, na mesma condição humana, exceto o pecado que Ele nunca experimentou e, por isso mesmo, pôde e pode nos livrar desse mal.
Cristo realizou, tornou concreta e possível a nossa paz com Deus e, consequentemente e decorrente disso paz com os homens, paz entre os homens, paz que vai até os limites da comunhão, invade os limites da comunhão. Esse limites coexistem com os limites da santidade que Cristo, pelo seu sangue, conquistou para nós. Mas santidade não é, como Pedro tentou impor, segregação. Santidade também é mistura. Em nós age o Espírito Santo, habitando em nós, em comunhão conosco, auxiliando-nos na nossa luta contra nós mesmos, homem renovado em Cristo versus a carnalidade que tem a nossa assinatura e opções. Haroldo de Campos traduziu o Eclesiastes, dizendo que vaidade é névoa de nada. Bloqueie a sua vaidade, bloqueio a minha vaidade e, como ensinou Paulo aos Gálatas, deixemos Cristo viver em nós, estejamos crucificados com Cristo, vivamos por fé e, definitivamente, autenticidade de comunhão e o exercício dela vai nos tornar igreja autêntica.