quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Mal traçadas linhas 2


                  Diferenças

                 Rápido. Surpreendeu-me a argumentação de uma pessoa de alto nível em um círculo acadêmico. Pelo menos três críticas ela fez ao protestantismo. Vou enumerá-las e dizer que rechaço duas delas e acato apenas uma.
             
          A primeira é que protestantes afirmam com extrema facilidade que estão cara a cara com Deus. Pareceu-me, no contexto de sua fala, que a mulher avaliava esta pretensão nossa de intimidade com o Altíssimo uma bravata, um atrevimento e, como aqui já indiquei, pura pretensão.
            
         A segunda crítica, e esta, particularmente, posso dizer que até me divertiu, foi a menção da graça de Deus. Sem pormenorizadamente entendê-la e até que é compreensível, pois o contexto da mulher não é evangelical, ela acusou os protestantes de utilizar essa graça para enriquecimento, sim, porém monetário. Isso mesmo: suprir-se do vil metal por meio da graça de Deus.
            
        Obviamente, ela focava as igrejas neopentecostais do alvorecer do século XXI, que faturam horrores repartindo bênçãos atribuídas a Deus e recolhendo em moeda corrente seu lucro. Não deixa de ser uma via de enriquecimento, porém a graça aqui indicada não é a autenticamente bíblica.
           
         A terceira crítica, que não veio explícita, como as outras duas, mas deduzi nas entrelinhas da argumentação, a mulher reclamou que, para os protestantes, Deus não tem mais nenhum mistério, que sabemos tudo dEle, somos especialistas no trato com o Altíssimo e, lícita ou ilicitamente, ‘despenseiros’ de Deus, talvez, mas não exatamente de Seus mistérios, como identifica Paulo Apóstolo, exatamente porque, segundo ela percebe, já sabemos ou soubemos tudo de Deus.
          
          Vamos às réplicas:
           
1. Ela tem razão de sua pura, límpida e extrema indignação. Realmente a Bíblia afirma que o sacrifício de Cristo nos põe, irremediavelmente, cara a cara com Deus. Mais que isso: em comunhão íntima com Deus. Quando judeus quiseram apedrejar Jesus, que lhes perguntou as razões dessa agressão, responderam que não era pelo que Jesus fez, mas pelo que dizia: ‘Eu e o Pai somos um’. E na oração sacerdotal Jesus pede ao Pai que tenhamos com Ele, Deus, a mesma comunhão que Jesus tem. Realmente a Bíblia confirma e os protestantes afirmam que, por meio de Jesus, a nossa comunhão é com o Pai, segundo escreveu João Apóstolo em sua 1ª carta. Ela vai continuar a indignar-se com essa pretensão: os autenticamente cristãos privam desse privilégio.
             
2. Quanto a reclamar que a graça de Deus enriquece, e ela até mencionou Weber e o protestantismo como alavanca histórica do capitalismo, caramba, que voo. Realmente a graça enriquece, porém não monetariamente. Ela resgata da pobreza humana, alguém tem dúvida disto? De que o homem é desesperadamente corrupto e corruptor? Não se iluda. Só não se enxerga isso por má fé. É por meio de Sua graça que Deus reparte ao homem seus atributos. Deus não estabelece nenhum impedimento e reparte a cada homem toda a Sua graça, e com ela todo o Seu amor, toda a Sua bondade, enfim. A graça enriquece porque reparte conosco os atributos do caráter de Deus, tornando possível a cura e resgate de nossa condição moral reprovável. A riqueza à qual se referiu a acadêmica é outra, não essa da graça genuína, infelizmente aquela a mais cobiçada pela humanidade.
        
3. Quanto a dizer que os protestantes supõe conhecer tudo a respeito de Deus, neste caso específico, dei razão àquela acadêmica. Torna-se vergonhoso que os protestantes, neste início de século, por meio de seu discurso e de sua ética, demonstrem não mais conhecer nada sobre Deus. Vale aqui lembrar as palavras de Paulo: “Importa que os homens nos considerem como ministros de Cristo e despenseiros dos mistérios de Deus”. Ao inverso, transparece aos outros que banalizamos Deus e fica parecendo que não há mais mistérios de Sua graça a serem revelados, que tudo foi desvendado e o reduzimos a um totalmente conhecido, um meu cumpadi, um ô, meu ou, ainda, um mermão. Pretensão nossa. Largamos de mão a Bíblia, sistematicamente desconhecendo seu conteúdo e, consequentemente, não agindo conforme sua orientação. Daí termos perdido a identidade de ministros de Cristo. Não mais sabemos repartir as riquezas do evangelho e não mais temos, como dizia John Stott, uma contracultura cristã para, por meio dela, marcar positivamente a sociedade (pós)moderna. Por isso somos, sistematicamente, engolidos em nossa superficialidade e pisados nas ruas, pelos homens, como sal insípido.

          Muito instrutivo o debate do qual participei. Ficou patente a opinião, análise e leitura que é feita a respeito dos protestantes, grupo do qual faço parte, assim reconhecido (o grupo e eu mesmo como um deles).

           Reclamar que Jesus nos coloca cara a cara com Deus, não procede, porque é isso mesmo: a nossa comunhão é com o Pai e o seu Filho Jesus Cristo. Que a graça de Deus enriquece monetariamente e que somos culpados pelos males do capitalismo, não tem graça, desculpem-me o trocadilho: graça de Deus é o favor dEle em repartir conosco os atributos de Seu caráter.

           Agora, apontar para a falha dos protestantes em ser ministros de Cristo e despenseiros dos mistérios de Deus, isso lá está correto. Paulo argumentou que isso é o que importa aos homens, ou seja, que assim nos reconheçam. Cada vez mais se torna flagrante, ao inverso, a distinção que Malaquias ressaltou, 450 anos antes de Cristo: não dá mais para ver a diferença entre o justo e o ímpio, entre o que serve e o que não serve a Deus.

        Falha nossa. Falta-nos habilitação para cumprir esse procedimento que Paulo sugere ser o padrão de autenticidade exigido para nós. Importa que os homens nos considerem ministros de Cristo e despenseiros dos mistérios de Deus.

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