segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015


  Fé

                   Certeza e convicção, diz o autor aos Hebreus. Poderíamos trocar essa definição, substituindo, por exemplo, pelas palavras tergiversação e subterfúgio. Bom, pelo menos a primeira destas duas palavras, sempre quis usar ou escrever e, até agora, bem, acho que é a primeira, primeiríssima vez que utilizo. Vamos em frente, ver no que vai dar.

           Bom, essa nova definição de fé a tornaria, para efeito de mercado, mais prática e manipulável. Muita gente boa, digo boa no sentido de competente no que faz, vem utilizando fé, uma falsa fé, na verdade, como instrumento de ganho e manipulação. Nesse contexto, definir fé como tergiversação e subterfúgio encaixa, perfeitamente.

              Uma olhadela na net, para conhecer a etimologia do termo, indica tergiversar uma reunião de tergo, costas, com versare, virar, ou seja, "tratar de colocar a atenção de quem investiga em algum outro ponto, para obter uma folga da investigação". Resumindo, para efeito da economia deste texto, mudar o foco, desviar a atenção.

             Subterfúgio, por assim dizer, já reúne subter, às escondidas, abaixo, secretamente, e fugere, fugir, correr. Quer dizer, "qualquer escusa artificial ou manha para fugir de algo ou evitá-lo". Creio, podemos afirmar, que a mesma parecença que há entre, de uma lado, certeza e convicção e, de outro, tergiversação e subterfúgio, confirmam esses dois pares como sinônimos entre si.

         Alguns masters of realities ocupam-se com nuvens de fumaça que, ao invés de manter os olhos de seus interlocutores fixados na realidade, afastam-nos dela, exercitando a formação de uma outra ficcional, transportando para uma visão ilusória, uma dimensão criada propriamente para a manipulação de intenções e criação de uma dependência psíquica.

         Muitas pessoas estão sendo conduzidas, em nome de uma falsa fé, a uma dependência, principal e especificamente financeira, julgando que recebem de Deus na medida em que abrem mão de suas posses, seu dinheiro, seus bens, numa troca em que os beneficiados são os prestidigitadores. Na verdade, esta palavra não significa "rapidez" (praestus = pronto) "com os dedos" (digitus - daí a moderna digitação), mas não, a palavra procede de praestigium, prestígio, "diante de" para iludir ou "a fascinação que alguém pode exercer sobre outro" ou "o jogo de magia que pode provocar esse efeito": prestidigitador da (falsa) fé.

     Portanto, fé, na Bíblia, a verdadeira, nunca desloca da realidade, mas mantém os olhos fixos nela. Quando a realidade não bate, não confere ou é tão cruel ou traumática, é possível que sejamos tentados a rejeitá-la. Mas será somente uma tentação, como todas as outras, que deve ser rejeitada. Rejeitada, sim, a tentação de fugir à realidade, e não, fugir à realidade.

     Nessa releitura, fé não seria, como diz o anônimo autor da Carta aos Hebreus, certeza e convicção, porém numa rendição aos prestidigitadores que existem aos montes, por aí, fé se tornaria tergiversação e subterfúgio. Às vezes, avaliamos fé, pela mania que se instala nesse começo de século, de nos subordinarmos, como loucos, como sem sentido, a tudo o que é tecnológico, digital (ora só, que coincidência de termos, uma moderna prestidigitação!), sermos tentados a avaliar que fé trata-se de um menu à nossa disposição e que Deus estaria a nosso serviço.

      Assim, fé seria uma espécie de "controle remoto" pelo qual accionaríamos Deus a distância, bastando escolher o menu. Touch screen, ou seja, dedo na tela: diante de nós, uma seleta opção de escolhas, um deslumbramento de escolhas, ícones de tela, que somente bastaria tocar para obter. O autor aos Hebreus escreve, adiante, nesse mesmo texto (cap. 11) que, sem fé, é impossível agradar a Deus. Dessa forma, poderíamos ser vítimas de outra interpretação equivocada, de que, então, a fé está a nosso serviço.

     Mas não: nós é que estamos a serviço da fé. Não há uma seleção de opções à nossa disposição, porém há constatação, da parte de Deus, de necessidades vitais a ser urgentemente solucionadas, colocada diante de nós a única solução, por um caminho vivo e que penetra além do véu, onde podemos entrar atrevida e ousadamente, santuário onde Jesus nos aguarda, tendo consagrado o já pelo próprio Jesus trilhado caminho de acesso e onde ele próprio penetrou como âncora de nossa alma.

     Toda essa terminologia é do autor aos Hebreus. Olhem que a palavra "véu", aqui, não é realidade ilusória, cortina de fumaça, mas cortina de outra natureza, que simbolizava a distância que havia entre Deus e o homem, mas que agora foi reduzida à comunhão por causa dos méritos de Jesus Cristo, por meio da obra única, completa e final que realizou. O principal dom da fé é este. Porém, nenhuma garantia há que esteja a nosso favor para dirimir ou solucionar eventos da realidade, da nossa realidade que, muitas vezes, revela-se traumática, podemos até dizer cruel.

      A fé de Abel, um dos primeiros a ser mencionado na Bíblia como alguém que a enxergava de modo lúcido, pois a fé desse, assim, pela Bíblia, chamado justo, não lhe prestou o serviço de evitar que fosse assassinado pelo próprio irmão. Olhem bem, ainda na primeira história que a Bíblia conta, nenhum cortina de fumaça. Livro esquisito esse, a Bíblia, não é mesmo? Chega a ser irônico que alguém que fosse, um ilusionista, um falso autor, inventasse uma história besta dessas.

  Vamos raciocinar na sequência. Supomos que tenhamos um falso autor e que a história de Caim e Abel seja inventada. Pelos critérios da história, em si, vamos avaliar o seu garu de credibilidade. Primeiro passo, temos Abel, encarado por Deus como tremendo "gente boa". Aí, aparece Caim, o cara cheio de más intenções. Ora, raciocinemos: o vilão, Caim, volta-se contra o irmão, o gente boa Abel. Deus, que acompanha o processo, pelos dispositivos da fé, empurra Abel para uma fuga e, só então, vai encarar Caim e argumentar com ele que jamais atente contra seu irmão ou quem quer que seja. E terminaria a história e a Bíblia teria dado a lição, a maior dos séculos, que todos nós devemos ser "gente boa", sem nunquinha atentar contra o semelhante.

      Teríamos uma historieta que comprovaria verdades lapidares: Deus protege os seus e evita, pela fé, que o mal da hora golpeie o bom da vez. Mas a nossa história, ainda supondo-a inventada, mostra o contrário. A fé não serve para livrar Abel de ser morto por Caim. O gente boa acaba por ser liquidado pelo vilão de plantão. Começou mal a Bíblia, evidentemente, para os prestidigitadores, sim, para aqueles que desejam demonstrar de que modo a fé garante contra eventuais pragas e acidentes de percurso. Uma leitura correta do texto nos mostra, pelo menos, duas coisas: (1) a realidade, às vezes, é cruel, e a fé pode não garantir que não seja; (2) há uma probabilidade muito elevada dessa história ser verdadeira, exatamente porque não esconde essa dureza, não constrói nenhuma nuvem de fumaça.

      A fé somente ajudou Eva nesse trauma, para suportar que seu filho mais velho tivesse assassinado o mais novo, perdendo ela os dois, duma só vez: o mais novo, assassinado, e o mais velho, tendo empreendido sua fuga. Só mais tarde, ainda por fé, vemos Eva, como sempre, orando, agradecendo a Deus pelo nascimento de Sete, na tentativa de preencher a lacuna deixada por Abel. Estão enganando você. Abra seus olhos. Veja bem que serviço a fé nos garante, quando nos colocamos a serviço dela. Não se deixe enganar e não se iluda com nenhuma nuvem de fumaça, porventura, erguida por prestidigitador qualquer.

                

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