Bíblia, hinário e revista da EBD
Parte I
Introdução
Houve um
tempo em que a turma que se dirigia, nas manhãs de domingo, às igrejas
evangélicas, empunhava Bíblia, hinário e revista da EBD - para quem não lembra, EBD
significava Escola Bíblica Dominical. Às vezes, também oferecia, por extensão, a
EBF, outra sigla que significava Escola Bíblica de Férias. Bons tempos aqueles em que as igrejas denominavam atividades pelo
designativo ‘escola’. A questão a
formular é de que modo os antigos, mais
especificamente nossos pais e avós, puderam fundamentar a sua fé e transmiti-la
a nós baseando-se simplesmente nesses três elementos?
Experiências pessoais
Presente em
mais uma EBF, apoiado nos bancos da Igreja Evangélica Congregacional de
Nilópolis, lá se vão mais de 50 anos, colori folhetinhos estampando crianças
acompanhadas por seus pais, encaminhando-se à igreja, cena didática de uma rotina
exemplar a ser seguida. Sim, esse mesmo o modelo de família que, já a partir
dos anos 60 e atualizadamente, alguns já consideram ultrapassado. A
arquitetura do desenho, estilo norte-americano, igreja com torrezinha cúbica e
cobertura piramidal, em centro de telhado, denunciava o
pacote de colonização missionária ao qual pertencem todas as igrejas
evangélicas, incluídas as congregacionais.
Aqueles bancos de madeira escura, fixadas longitudinalmente, seguiam anatomicamente a
curvatura do corpo, com um descanso de 45° ao final do encosto, voltado para quem sentasse
atrás, para justamente ali serem depositados Bíblia, hinário e, eventualmente, nas manhãs dos domingos, a revista da
EBD. Aliás, de um desses bancos escorreguei ao chão, com 6 anos incompletos,
num culto noturno, atendendo ao tradicional ‘apelo de conversão’, numa pregação
do pastor Ivan Espíndola de Ávila. Era abril de 1963, ano do assassinato do
Kennedy, com a Aliança Para o Progresso, com o logotipo característico, enviando pacotões de leite para a casa
de minha avó, denunciando nossa classe social.
Um legado salutar
Aquela geração teve, nesses três
referenciais, o municiamento de que dispunham para basear a sua fé, escritos provenientes
de fontes diversas, a Bíblia, o hinário e a revista da Escola Dominical. Eles empunhavam numa das mãos, onde
cabiam as três literaturas, e ainda tenros na idade ganhávamos deles, com
dedicatórias e tudo, Bíblias, hinários e a revista da EBD correspondente à
nossa faixa etária. Esperavam que,
empunhando essa literatura, seríamos, obteríamos e conservaríamos a continuidade
da fé recebida e a nós legada por eles, julgando garantido que bastava essa
tríade para a nossa fundamentação.
Falando das fontes: a
Bíblia
Falar de literatura implica falar de fonte.
Qual a comprovada credibilidade dessa literatura que compunha a tríade na qual os
antigos firmavam sua confissão, tornando-se âncora e firmeza da fé que
transmitiam? Robinson Cavalcante se referia ao culto dessa época como aula
e não entretenimento ou show como, com mais frequência, verifica-se nas igrejas
evangélicas de hoje em dia. Ora, se era aula o culto, a Bíblia constituía-se no
seu livro didático. Então, mais uma atividade identificada pelo designativo
‘escola’. Bons tempos em que mais um tipo
de atividade da igreja, o culto público, era comparado a uma boa aula de uma
boa escola.
Falando de fontes:
hinário e revista da EBD
Falar de fontes para hinário e revista da
EBD é mais simples do que falar de fonte para a Bíblia, o ‘livro mãe’. Isso
porque é possível percorrer com mais precisão etapas da composição e autoria
desses documentos, bastando, para isso, recorrer à história do hinário,
particularmente Salmos & Hinos, utilizado desde 1861 pelos congregacionais
históricos das igrejas da UIECB. Aliás, para tal, sugiro ler Convertendo através da música – a história
de Salmos & Hinos, do pastor Douglas Nassif Cardoso. Interessante a
sugestão dele de que Sarah Kalley, ainda antes da data acima indicada, já
dispunha da matriz primitiva desse que se tornou o primeiro hinário dos
evangélicos em língua portuguesa, protótipo de todos os outros.
A música evangélica dos anos 70
A
partir dos anos 70 operava-se uma ‘virada’ em termos de escolha e seleção da
música, ainda chamada sacra, usada nos cultos das igrejas evangélicas. Os chamados ‘cantores evangélicos’, década de 40, como, por exemplo, Feliciano Amaral e seus hinos, ouvidos pela Rádio
Copacabana, entre outras, como a Rio de Janeiro, assim como os hinos do
hinário, dentre outros de seu estilo, começavam a ser denunciados como europeizados,
difíceis de cantar e de entender, sendo desafiados a ser substituídos pelos
simplificados ‘corinhos’ ou cânticos de autores nacionais, iniciando-se, desse
modo, os rudimentos do que hoje é chamado ‘movimento gospel’.
Também
participei dessa mudança de paradigmas, dos anos 60 para cá. Já na década de 70
músicas de compositores evangélicos nacionais começaram a disputar espaço com
os chamados corinhos, cânticos simplificados em relação aos hinos do
tradicional hinário. Porém, ainda esses
corinhos eram, na maioria das vezes, tradução de versões importadas. Lembro-me
do ano de 1972, já como membro da Igreja Evangélica Congregacional de
Cascadura, quando a união de mocidade, em intercâmbio com as de outras igrejas,
congregacionais ou não, solicitaram a cessão do terreno da Rua Padre Telêmaco
249, na época desocupado, local onde está construído o salão atual, para que
ali se reunisse o Clube Bíblico, novidade do nascente movimento gospel.
Clube Bíblico: uma nova
linguagem
A linguagem dos jovens nas reuniões
dos Clubes Bíblicos procurava maior aproximação com seu público
prioritariamente também jovem. Testemunhos da ação do Espírito substituíam os
sermões convencionais, a música, mais calcada na originalidade de autores
brasileiros, substituía os hinos do hinário e guitarra, bateria e baixo
substituíam piano e órgão. Ora, vejam só, a Bossa Nova também influenciava a cartilha melódica evangelical. Crise à vista
e rudimentos de um movimento gospel não tão diversificado como o de hoje, mas de
qualidade extremamente superior.
Participei, na Igreja Batista do Rocha,
pastoreada pelo famoso líder batista, José dos Reis Pereira, de um Festival que
reuniu Clubes Bíblicos de todo o Rio de Janeiro, incluída a remota e requintada
zona sul da cidade. Então ouvi pela primeira vez aquele clássico da época, cantado
(?) até hoje: Nas estrelas vejo a sua mão/E
no vento ouço a sua voz. O Clube Bíblico chegou a Cascadura e, no dia da sua inauguração, despencou o que os cariocas chamam de ‘chuva de verão’, e todos se
deslocaram para a Rua João Romeiro 212, as meninas com calças compridas
entraram na igreja, a juventude ‘opiniosa’ dos anos 70 removeu o púlpito de
madeira do lugar, utilizaram o tablado onde, pasmem, puseram bateria, guitarras
e baixo elétricos, esteiras de palha de vime no chão, palmas, testemunhos,
descontração e escândalo certeiro totais.
Um movimento gospel de qualidade
Domingo seguinte, 15 anos de idade, já membro
da igreja e presente na reunião de membros, foi discutido se guitarras, baixos
e baterias, estilo Beatles, os garotos infernais com suas cabeleiras
horripilantes, se tais instrumentos mundanos poderiam ser usados dentro do
espaço (santo) do templo. Ficou decidido que o Clube Bíblico se reuniria
somente nas dependências externas do (santo) templo, ou seja, no terreno da Rua
Padre Telêmaco 249. Bons tempos de
mudança de paradigmas: discos long plays
de vinil dos Vencedores por Cristo, De
vento em popa, um deles, e Grupo Elo, Nova
Jerusalém, o primeiro deles, estilos diferentes de composições de autores
nacionais em breve iniciariam um deslumbrante movimento musical de excelente
qualidade. Não sabíamos naquela época, mas tratava-se do engatinhar do hoje
chamado movimento gospel nacional.
Nova
música, reações da geração com mais de 40 e o adicional da pressão sobre os
filhos adolescentes, a respeito de quem era a favor ou não desse milk shake cultural evangelical intramuros.
Isso sem falar na outra “revolução” que seguia seu curso, a de 31 de março de
1964, que se tornaria ainda mais tenebrosa. Alienação, com certeza, em relação
a uma, debates infindáveis, em relação à outra, mesmo porque se avizinhava o
Movimento de Renovação e tudo se misturava.
Revistas da EBD
Percorrer
a história das revistas de Escola Dominical e seus autores significa encontrar,
entre eles, missionários estrangeiros, a geração seguinte de líderes nacionais,
os ‘pastores patriarcas’, sucessores ‘de peso’ daqueles, e os seminaristas alunos
dessa geração mais antiga, que alcançaram o status de escritores dessas primeiras
revistas de escola dominical. Garimpar essa história e a didática do
currículo é uma boa sugestão de dissertação de mestrado. Valeria muito a pena
compreender essa escolha de temas, nomear os autores, checando o enfoque dado,
para eles essencial no adestramento dos crentes, nessa época áurea da Escola
Dominical.
Escola Dominical ao longo dos anos
Outra
sugestão seria reeditar o compêndio Esboço
Histórico da Escola Dominical da Igreja Evangélica Fluminense, de 1932,
rico em fotografias, exemplares numerados com quantidade limitada, com dados
sobre a primeira Escola Dominical do Brasil, edição comemorativa da passagem do
Congresso de Escolas Dominicais pelo Rio de Janeiro, capital da República na
época, marcando a inauguração do Edifício Kalley, anexo à Igreja Evangélica
Fluminense, específica e literalmente um edifício inteiro construído para o
funcionamento da Escola Bíblica Dominical.
Vale
lembrar também a história da Escola Dominical da Igreja Evangélica Campograndense:
revistas, apostilas e literatura ressaltando o preparo dos professores e o
valor da própria Escola, esforçando-se o pastor Manoel da Silveira Porto Filho em
demonstrar que a firmeza e identidade da igreja dependem, imprescindivelmente,
da importância dada à Escola Dominical. Ele a denominava “a escola da igreja”.
Toda uma geração de líderes, pastores e obreiros foi formada a partir dessa
filosofia e se encontra espalhada pelo Rio de Janeiro e Brasil afora, trazendo
consigo, nos corações, neurônios e retina o efeito benéfico dessa iniciativa.
Escola Dominical e sua
relevância
Cabe refletir se essa geração estava
equivocada ao dar tanta importância à Escola Dominical. Assim como, então, cabe
refletir o que a geração seguinte fez desse recurso tão fundamental para o
preparo e crescimento espiritual dos crentes. Minha esposa e eu,
professores filhos de professores, comentamos a crise atual da escola pública/particular
e do ensino no Brasil, de um modo geral. Entram e participam dessa discussão nossos filhos, outros
pais e membros da igreja, enfim, outros professores. Mas em nenhum momento
pensamos como solução retirar nossos filhos da escola ou acabar,
definitivamente, com ela.
O que fazer da
ex-Escola Dominical
A pergunta então é por que os
evangélicos decidiram que a Escola Dominical não mais cumpre com o seu papel, enfraquecida
e, consequentemente, deixando de ter a Bíblia como livro por excelência a ser
estudado e suas revistas menos lidas e valorizadas como recurso didático
auxiliar. Nessa nova
era de tecnologia digital, tornou-se necessário mudar a ‘cara’ da revista de
EBD, embora a escola de 50 anos atrás, em sua dinâmica, utilizasse recursos ao
seu alcance: giz e offset preto e branco, campanhas de novos alunos, passeios, mesmo
aos domingos, para escolas ao ar livre, torneios entre as classes, para avaliar
o rendimento dos alunos e, com isso, alcançava seus objetivos.
Por detrás, uma outra
razão
Provavelmente o descaso atual com a
Escola Dominical reflita o descaso mais crucial e alarmante que é o próprio
descaso com as Escrituras, o valor de seu estudo, o interesse por seu conteúdo
e seu próprio uso como principal ferramenta de crescimento da igreja, para o amadurecimento
dos crentes na fé, com objetivo e estratégia inteligente de divulgação de seus
princípios na sociedade atual. Ocorreu a perda do ‘culto aula’, assim como da cátedra da
Escola Dominical, local de leitura, estudo e busca de conteúdo. Ocorre o deslocamento
para um outro eixo superficial, mais afeito às exigências de consumo de seu
público atual, outra crise que assusta os pastores, o medo da perda de seu
auditório cativo dos domingos. Nos dois
casos, púlpito e EBD, a Bíblia foi afastada da vivência rotineira dos crentes,
que perderam seu referencial de doutrina e fé.
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