sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Bíblia, hinário e revista da EBD
Parte I
            
Introdução
             
             Houve um tempo em que a turma que se dirigia, nas manhãs de domingo, às igrejas evangélicas, empunhava Bíblia, hinário e revista da EBD - para quem não lembra, EBD significava Escola Bíblica Dominical. Às vezes, também oferecia, por extensão, a EBF, outra sigla que significava Escola Bíblica de Férias. Bons tempos aqueles em que as igrejas denominavam atividades pelo designativo ‘escola’. A questão a formular é de que modo os antigos, mais especificamente nossos pais e avós, puderam fundamentar a sua fé e transmiti-la a nós baseando-se simplesmente nesses três elementos?

Experiências pessoais
            Presente em mais uma EBF, apoiado nos bancos da Igreja Evangélica Congregacional de Nilópolis, lá se vão mais de 50 anos, colori folhetinhos estampando crianças acompanhadas por seus pais, encaminhando-se à igreja, cena didática de uma rotina exemplar a ser seguida. Sim, esse mesmo o modelo de família que, já a partir dos anos 60 e atualizadamente, alguns já consideram ultrapassado. A arquitetura do desenho, estilo norte-americano, igreja com torrezinha cúbica e cobertura piramidal, em centro de telhado, denunciava o pacote de colonização missionária ao qual pertencem todas as igrejas evangélicas, incluídas as congregacionais.
             Aqueles bancos de madeira escura, fixadas longitudinalmente, seguiam anatomicamente a curvatura do corpo, com um descanso de 45° ao final do encosto, voltado para quem sentasse atrás, para justamente ali serem depositados Bíblia, hinário e, eventualmente, nas manhãs dos domingos, a revista da EBD. Aliás, de um desses bancos escorreguei ao chão, com 6 anos incompletos, num culto noturno, atendendo ao tradicional ‘apelo de conversão’, numa pregação do pastor Ivan Espíndola de Ávila. Era abril de 1963, ano do assassinato do Kennedy, com a Aliança Para o Progresso, com o logotipo característico, enviando pacotões de leite para a casa de minha avó, denunciando nossa classe social.

Um legado salutar
            Aquela geração teve, nesses três referenciais, o municiamento de que dispunham para basear a sua fé, escritos provenientes de fontes diversas, a Bíblia, o hinário e a revista da Escola Dominical. Eles empunhavam numa das mãos, onde cabiam as três literaturas, e ainda tenros na idade ganhávamos deles, com dedicatórias e tudo, Bíblias, hinários e a revista da EBD correspondente à nossa faixa etária.  Esperavam que, empunhando essa literatura, seríamos, obteríamos e conservaríamos a continuidade da fé recebida e a nós legada por eles, julgando garantido que bastava essa tríade para a nossa fundamentação.
  
Falando das fontes: a Bíblia
              Falar de literatura implica falar de fonte. Qual a comprovada credibilidade dessa literatura que compunha a tríade na qual os antigos firmavam sua confissão, tornando-se âncora e firmeza da fé que transmitiam? Robinson Cavalcante se referia ao culto dessa época como aula e não entretenimento ou show como, com mais frequência, verifica-se nas igrejas evangélicas de hoje em dia. Ora, se era aula o culto, a Bíblia constituía-se no seu livro didático. Então, mais uma atividade identificada pelo designativo ‘escola’. Bons tempos em que mais um tipo de atividade da igreja, o culto público, era comparado a uma boa aula de uma boa escola.

Falando de fontes: hinário e revista da EBD
              Falar de fontes para hinário e revista da EBD é mais simples do que falar de fonte para a Bíblia, o ‘livro mãe’. Isso porque é possível percorrer com mais precisão etapas da composição e autoria desses documentos, bastando, para isso, recorrer à história do hinário, particularmente Salmos & Hinos, utilizado desde 1861 pelos congregacionais históricos das igrejas da UIECB. Aliás, para tal, sugiro ler Convertendo através da música – a história de Salmos & Hinos, do pastor Douglas Nassif Cardoso. Interessante a sugestão dele de que Sarah Kalley, ainda antes da data acima indicada, já dispunha da matriz primitiva desse que se tornou o primeiro hinário dos evangélicos em língua portuguesa, protótipo de todos os outros.

A música evangélica dos anos 70
                A partir dos anos 70 operava-se uma ‘virada’ em termos de escolha e seleção da música, ainda chamada sacra, usada nos cultos das igrejas evangélicas. Os chamados ‘cantores evangélicos’, década de 40, como, por exemplo, Feliciano Amaral e seus hinos, ouvidos pela Rádio Copacabana, entre outras, como a Rio de Janeiro, assim como os hinos do hinário, dentre outros de seu estilo, começavam a ser denunciados como europeizados, difíceis de cantar e de entender, sendo desafiados a ser substituídos pelos simplificados ‘corinhos’ ou cânticos de autores nacionais, iniciando-se, desse modo, os rudimentos do que hoje é chamado ‘movimento gospel’.
             Também participei dessa mudança de paradigmas, dos anos 60 para cá. Já na década de 70 músicas de compositores evangélicos nacionais começaram a disputar espaço com os chamados corinhos, cânticos simplificados em relação aos hinos do tradicional hinário. Porém, ainda esses corinhos eram, na maioria das vezes, tradução de versões importadas. Lembro-me do ano de 1972, já como membro da Igreja Evangélica Congregacional de Cascadura, quando a união de mocidade, em intercâmbio com as de outras igrejas, congregacionais ou não, solicitaram a cessão do terreno da Rua Padre Telêmaco 249, na época desocupado, local onde está construído o salão atual, para que ali se reunisse o Clube Bíblico, novidade do nascente movimento gospel.


Clube Bíblico: uma nova linguagem
             A linguagem dos jovens nas reuniões dos Clubes Bíblicos procurava maior aproximação com seu público prioritariamente também jovem. Testemunhos da ação do Espírito substituíam os sermões convencionais, a música, mais calcada na originalidade de autores brasileiros, substituía os hinos do hinário e guitarra, bateria e baixo substituíam piano e órgão. Ora, vejam só, a Bossa Nova também influenciava a cartilha melódica evangelical. Crise à vista e rudimentos de um movimento gospel não tão diversificado como o de hoje, mas de qualidade extremamente superior.
            Participei, na Igreja Batista do Rocha, pastoreada pelo famoso líder batista, José dos Reis Pereira, de um Festival que reuniu Clubes Bíblicos de todo o Rio de Janeiro, incluída a remota e requintada zona sul da cidade. Então ouvi pela primeira vez aquele clássico da época, cantado (?) até hoje: Nas estrelas vejo a sua mão/E no vento ouço a sua voz. O Clube Bíblico chegou a Cascadura e, no dia da sua inauguração, despencou o que os cariocas chamam de ‘chuva de verão’, e todos se deslocaram para a Rua João Romeiro 212, as meninas com calças compridas entraram na igreja, a juventude ‘opiniosa’ dos anos 70 removeu o púlpito de madeira do lugar, utilizaram o tablado onde, pasmem, puseram bateria, guitarras e baixo elétricos, esteiras de palha de vime no chão, palmas, testemunhos, descontração e escândalo certeiro totais.

Um movimento gospel de qualidade
             Domingo seguinte, 15 anos de idade, já membro da igreja e presente na reunião de membros, foi discutido se guitarras, baixos e baterias, estilo Beatles, os garotos infernais com suas cabeleiras horripilantes, se tais instrumentos mundanos poderiam ser usados dentro do espaço (santo) do templo. Ficou decidido que o Clube Bíblico se reuniria somente nas dependências externas do (santo) templo, ou seja, no terreno da Rua Padre Telêmaco 249. Bons tempos de mudança de paradigmas: discos long plays de vinil dos Vencedores por Cristo, De vento em popa, um deles, e Grupo Elo, Nova Jerusalém, o primeiro deles, estilos diferentes de composições de autores nacionais em breve iniciariam um deslumbrante movimento musical de excelente qualidade. Não sabíamos naquela época, mas tratava-se do engatinhar do hoje chamado movimento gospel nacional.     
             Nova música, reações da geração com mais de 40 e o adicional da pressão sobre os filhos adolescentes, a respeito de quem era a favor ou não desse milk shake cultural evangelical intramuros. Isso sem falar na outra “revolução” que seguia seu curso, a de 31 de março de 1964, que se tornaria ainda mais tenebrosa. Alienação, com certeza, em relação a uma, debates infindáveis, em relação à outra, mesmo porque se avizinhava o Movimento de Renovação e tudo se misturava.

Revistas da EBD
             Percorrer a história das revistas de Escola Dominical e seus autores significa encontrar, entre eles, missionários estrangeiros, a geração seguinte de líderes nacionais, os ‘pastores patriarcas’, sucessores ‘de peso’ daqueles, e os seminaristas alunos dessa geração mais antiga, que alcançaram o status de escritores dessas primeiras revistas de escola dominical. Garimpar essa história e a didática do currículo é uma boa sugestão de dissertação de mestrado. Valeria muito a pena compreender essa escolha de temas, nomear os autores, checando o enfoque dado, para eles essencial no adestramento dos crentes, nessa época áurea da Escola Dominical.

Escola Dominical ao longo dos anos
              Outra sugestão seria reeditar o compêndio Esboço Histórico da Escola Dominical da Igreja Evangélica Fluminense, de 1932, rico em fotografias, exemplares numerados com quantidade limitada, com dados sobre a primeira Escola Dominical do Brasil, edição comemorativa da passagem do Congresso de Escolas Dominicais pelo Rio de Janeiro, capital da República na época, marcando a inauguração do Edifício Kalley, anexo à Igreja Evangélica Fluminense, específica e literalmente um edifício inteiro construído para o funcionamento da Escola Bíblica Dominical.
              Vale lembrar também a história da Escola Dominical da Igreja Evangélica Campograndense: revistas, apostilas e literatura ressaltando o preparo dos professores e o valor da própria Escola, esforçando-se o pastor Manoel da Silveira Porto Filho em demonstrar que a firmeza e identidade da igreja dependem, imprescindivelmente, da importância dada à Escola Dominical. Ele a denominava “a escola da igreja”. Toda uma geração de líderes, pastores e obreiros foi formada a partir dessa filosofia e se encontra espalhada pelo Rio de Janeiro e Brasil afora, trazendo consigo, nos corações, neurônios e retina o efeito benéfico dessa iniciativa.

Escola Dominical e sua relevância
            Cabe refletir se essa geração estava equivocada ao dar tanta importância à Escola Dominical. Assim como, então, cabe refletir o que a geração seguinte fez desse recurso tão fundamental para o preparo e crescimento espiritual dos crentes. Minha esposa e eu, professores filhos de professores, comentamos a crise atual da escola pública/particular e do ensino no Brasil, de um modo geral. Entram e participam dessa discussão nossos filhos, outros pais e membros da igreja, enfim, outros professores. Mas em nenhum momento pensamos como solução retirar nossos filhos da escola ou acabar, definitivamente, com ela. 

O que fazer da ex-Escola Dominical
           A pergunta então é por que os evangélicos decidiram que a Escola Dominical não mais cumpre com o seu papel, enfraquecida e, consequentemente, deixando de ter a Bíblia como livro por excelência a ser estudado e suas revistas menos lidas e valorizadas como recurso didático auxiliar. Nessa nova era de tecnologia digital, tornou-se necessário mudar a ‘cara’ da revista de EBD, embora a escola de 50 anos atrás, em sua dinâmica, utilizasse recursos ao seu alcance: giz e offset preto e branco, campanhas de novos alunos, passeios, mesmo aos domingos, para escolas ao ar livre, torneios entre as classes, para avaliar o rendimento dos alunos e, com isso, alcançava seus objetivos.

Por detrás, uma outra razão

            Provavelmente o descaso atual com a Escola Dominical reflita o descaso mais crucial e alarmante que é o próprio descaso com as Escrituras, o valor de seu estudo, o interesse por seu conteúdo e seu próprio uso como principal ferramenta de crescimento da igreja, para o amadurecimento dos crentes na fé, com objetivo e estratégia inteligente de divulgação de seus princípios na sociedade atual. Ocorreu a perda do ‘culto aula’, assim como da cátedra da Escola Dominical, local de leitura, estudo e busca de conteúdo. Ocorre o deslocamento para um outro eixo superficial, mais afeito às exigências de consumo de seu público atual, outra crise que assusta os pastores, o medo da perda de seu auditório cativo dos domingos. Nos dois casos, púlpito e EBD, a Bíblia foi afastada da vivência rotineira dos crentes, que perderam seu referencial de doutrina e fé.

Nenhum comentário:

Postar um comentário