sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Bíblia, hinário e revista da EBD
Parte II
              
Fontes da Bíblia            
            
          Agora, falar das fontes da Bíblia torna-se mais problemático. Esbarramos na questão de que, do tempo de sua formação até hoje, estabelecer autores e fonte das Escrituras tornou-se tarefa que, segundo alguns, compromete ou toca sensivelmente nos fundamentos de sua credibilidade. Tão garantida, por nossos antepassados, como Palavra de Deus, verbal-plenariamente inspirada, vista pelo prisma a que hoje chegam as pesquisas da história do texto, com Renascença, Iluminismo e Racionalismo no meio do caminho, as garantias de sua inspiração e seu status de Palavra, como anteriormente compreendido, ficam abalados, senão seriamente comprometidos.

50 anos decorridos bastam: música e EBD
              Portanto, nos recentes 50 anos passados, os três pilares-base da fé de nossos antepassados imediatos sofreram forte impacto e não mais têm consistência como referenciais para a geração atual. Abandono do hinário, no início trocado por cancioneiros improvisados, chegou aos tempos de concorrência desleal com CDs, DVDs, smartphones, internet, Mp3 e Mp4. Principal alegação: os hinos seguem marca europeizada ou americanizada, tornando-se necessário adaptá-los ou buscar autoria nacional que, a um só tempo, facilita a compreensão da letra, atualiza o gênero musical e adapta a melodia a tons, altura e semitons mais compatíveis com a capacidade e cordas vocais latino-americanas. Perda de conteúdo, às favas. A Globo já divulga, como é mesmo? Um efeito mais recente da onda gospel: Você adora, a gente fatura...
             Quanto às revistas de Escola Dominical, o problema não está propriamente com elas, mas com a escola. Cores, diagramação mais sofisticada, artes, antes offset, agora computação gráfica, busca de uma linguagem mais atual, escolha do currículo procurando temas em maior consonância com questões contemporâneas, uma mudança de capa, mudança de papel, autores melhor qualificados, enfim, tudo isso foi muito válido para adaptar as revistas aos novos tempos. Mas a questão principal foi que, apesar de todo esse esforço, quem entrou em crise foi a Escola Dominical e as revistas, mesmo atualizadas, começaram a perder sua clientela ou utilidade.

Novas fontes
              A questão das fontes bíblicas ainda esbarrou com Julius Wellhausen (1844-1918) e sua hipótese documentária.  Ganhei, recentemente, uma Bíblia Pastoral da Editora Paulus, oferecida pelo Pe. Massimo Lombardi, Reitor da Catedral de Rio Branco, AC. Traz uma introdução à versão nela constante, em linguagem simplificada, detalhando a problemática da formação do texto, a título de quem vai lançar-se a sua leitura. Veja bem, trata-se de uma edição católica popular, para o público geral.
               De modo simples e didático tem-se acesso à teoria de Wellhausen, assumida por essa versão, definitiva e integralmente, como modo de compreender a história de formação do Antigo Testamento. Estão anotadas as 6 etapas de composição de todo o AT, começando com a tradição oral e os textos mais antigos, por volta de 1300-1200 AC, passando pelo longo processo de fixação, inúmeras revisões e editoração, ao longo de toda a história de Israel, até sua edição definitiva, por volta de 200-100 AC. Revolucionário! Detalhar aqui, no escopo deste artigo, seria exaustivo. Portanto, convido os leitores a recorrer a essa edição da Bíblia Pastoral para ver tudo mastigadinho.

Uma guinada
              Para a economia desta discussão, imagine o que seria para a geração de nossos avós compreender a que ponto nos conduziu a teoria documentária, desde a época deles até nossa época, e que transtornos ela causaria na cabeça daquela geração, exposta a uma breve análise dos efeitos da lenta e gradativa aceitação dessa ferramenta de compreensão da história dos textos bíblicos, o modo como propõe mudanças na história do Antigo e Novo Testamentos e como afeta ou não a credibilidade dos textos bíblicos, como era dito, ‘divinamente inspirados’.
           O bordão da moda, ‘não sabe de nada, inocente’, poderia ser aplicado à geração que nos conduziu à fé, baseados na crença que tinham (e têm) nos textos bíblicos. Muitos deles, ainda entre nós, dedicam-se à leitura dos textos, desconhecendo os fundamentos do famoso método histórico-crítico de dissecação das Escrituras. Leem, por exemplo, o Pentateuco, como inteiramente escrito por Moisés. Evidentemente não tão distraídos que não reconheçam outra pessoa, logo no começo do Deuteronômio, quando mencionado ‘palavras que Moisés falou a todo o Israel dalém do Jordão’, e no final, por estar escrito ‘então subiu Moisés das campinas de Moabe ao monte Nebo’, ou seja, para morrer ali.

“Autores”
              Entendia-se que essa pessoa só poderia ser Josué, herdeiro literário do Moisés autor de todo o Pentateuco, agora começando e encerrando a narrativa dos Discursos de Moisés (sim, dele mesmo?). A própria Escola Dominical (ela, de novo por aqui), ensinava que Josué escreveu Josué mas, quando se trata de narrar a morte dele, Samuel entrou em cena, escrevendo Juízes e começou a escrever o livro que tem seu nome, mas quando ele morreu, quem narrou a morte dele foi... Enfim, ia-se, por assim dizer, quebrando-se um galho e pretendia-se ensinar que cada livro do AT tinha seu autor expresso pelo nome que constava em seu cabeçalho e, caso no meio da história esse autor morresse, entrava na sequência o autor do livro seguinte.

Mais próximo da realidade?
             Méritos para a teoria de Wellhausen e o método-histórico crítico que, a seu tempo, pretenderam esclarecer detalhes que a visão romântica da tradição dos textos pretendia dar como resolvidos. Mas é necessário filtrar as conclusões, visto terem chegado a nós de modo fragmentário, teoria e método, espremidos na linha tênue e dogmática do trato dado pelos Seminários ao currículo de honra neles constante. Priorizando uma abordagem conservadora da fé, denominavam esses estudos ‘alta crítica’: encarar a Bíblia como literatura e buscar seu Sitz im Leben (contexto vital do texto), detonando o dogma da sua inerrância.
           Os alunos eram mantidos afastados daquela ‘alta crítica’ e perto da ‘baixa crítica’, a única admissível de ser estudada, constituindo-se no esforço pela reconstituição do mais exato texto bíblico, sempre verbal-plenariamente inspirado e, por isso, intocado, preservadíssimo pela atuação inconteste do Espírito Santo, inspirador por excelência e, obviamente, vigilante preservador de sua integridade através das eras. Aliás, postulam os defensores dessa teoria histórico-crítica, tentar preservar fundamentos da baixa crítica, como integridade do texto e inspiração verbal-plenária seria, hoje, fechar os olhos a uma correta leitura das revoluções provocadas pela (pós)modernidade.

Fundamentalismo
              A revista Diálogo (fevereiro-abril de 2012) traz um comentário do professor Faustino Teixeira, Doutor em Teologia e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião em Juiz de Fora, MG: ‘O fenômeno do fundamentalismo religioso’ seria uma reação ou bater-se contra a ‘condição de incerteza permanente provocada pelos ventos plurais’, também contra ‘a disseminação de ideias, ventos modernos do Renascimento, Iluminismo e ‘Século das Luzes’ os quais ‘provocam desorientação em muitas pessoas e comunidades, que sentem perder o chão conhecido da tradição, que lhes proporciona firmeza e segurança’. E continua: “o fenômeno do fundamentalismo implica a ideia de uma ‘tradição sitiada’, de uma identidade ameaçada [...] rejeitar qualquer engajamento dialogal com a modernidade e buscar-se reconstituir um ‘mundo curado’, livre de surpresas.”
           Excelente e muito lúcida apreciação sobre o fundamentalismo e o modo como bloqueia a visão de muitos. Resta saber a que se aplica essa definição, pois há de ser feita uma mediação, para saber o que são 'marcos antigos', como diz Provérbios, portanto, irremovíveis, o que caduca e, portanto, novamente, necessita ser removido e, finalmente, sobre o que não se pode afirmar nada, porque nem a ciência reina soberana no contexto. A questão dos milagres, por exemplo, ou se acredita que o Deus Criador do Universo pode, na hora que desejar, alterar o que fez, de trás para a frente, de frente para trás e ao avesso, ou Deus está engessado. E, engessar Deus, é fundamentalismo também.

Dilema diante dos olhos
            As lentes do método histórico-crítico mexem, sim, com a credibilidade do texto bíblico, avançando pela Bíblia afora, Antigo e Novo Testamento, questionando não somente a autoria dos livros, mas também a historicidade dos fatos narrados. Reconhecemos que as narrativas bíblicas misturam história e visão de fé e, pelos critérios modernos de historicidade, fatos narrados, locais mencionados, datas especificadas, personagens mencionados estariam sujeitos a critérios mais exatos de confirmação.
              O problema é que, aberta a temporada de caça, as regras de confirmação desses fatos pulverizam-se e, para só mencionar o Antigo Testamento, detonam-se personagens como Abraão, duvida-se até de que tenha sido uma personagem histórica, incluídos, é claro, seu filho e netos, e bisnetos, enfim. Desconhecer, pelo menos em linhas gerais, essa teoria, é enorme descuido, porque tais ideias já chegaram até as bancas de jornal, em páginas de revistas como, Superinteressante, Galileu ou Mundo Estranho.

Milagres no Novo Testamento
                 No Novo Testamento, a autenticidade dos milagres de Jesus também é questionada, na troca de seu hipotético valor histórico, por um valor simbólico, meramente teológico ou doutrinário. Deixando de lado, por hora, a questão da autoria dos livros do NT, citamos o autor de  O que é milagre na Bíblia, Alfons Weiser, 1978: “Não se tem certeza de que Jesus tenha feito Lázaro sair do sepulcro. Isto não é impossível, contudo é improvável, com base no julgamento acerca de outros relatos de ressurreição e na composição teológica da narrativa de Jo 11. O que se sabe com certeza - se bem com outra maneira de argumentar - é que Jesus ressurgiu dos mortos e que foi constituído Senhor da vida e da morte, e que a fé em Jesus nos conduz a vida. É unicamente isto que todas as narrativas do Novo Testamento nos querem comunicar. É aqui que elas pretendem estar certas e exprimir a verdade.”
               Ufa! Ainda bem que há uma ressalva sobre a própria ressurreição de Jesus. Mas todo esse livro citado põe em dúvida os demais relatos dos demais milagres. Sempre fazendo prevalecer a falta de critérios inegáveis de comprovação desses mesmos milagres. Vez por outra, a ciência é mencionada como quem não pode garantir que tais milagres possam ter ocorrido. Mais uma vez estamos diante da possibilidade de Deus realizar ou não tais milagres. E, caso seja possível que o faça ou, ainda, na suposição que os tenha mesmo realizado, caberá, agora sim, evoque-se a ciência para que descubra como foram feitos. Eu fico com a possibilidade, ou melhor, com a certeza de que foram realizados e na expectativa de que a ciência descubra como Deus os fez, ou como os realizou, ou como os criou.

De novo as fontes
                 Tomando como parâmetro a geração passada, dá para refletir sobre o impacto das mudanças de paradigmas nesses, pelo menos, últimos 50 anos, levando em conta que tudo isso chegou à pauta dos seminários conservadores no Brasil com, pelo menos, quase 100 anos de atraso. De qualquer modo, fica comprovado como, levando em conta a discussão das fontes e a pesquisa histórica, a coisa se complica com relação ao texto bíblico, porém também afetará, indiretamente, o que segue escrito nas revistas da EBD e, remotamente, o conteúdo do hinário evangélico, isso porque é justamente este, o texto bíblico, o responsável pela legitimação, em última instância, de si próprio, assim como do que vai escrito nas revistas de EBD e do conteúdo e mensagem do hinário ou dos ‘salmos, e hinos e cânticos espirituais’ que são cantados por aí, movimento gospel afora.


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