quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015


Entremeios

         Comentar os Salmos, ainda que um a um, de nada vai adiantar, se o leitor, de si mesmo, não estabelecer critérios para, como já foi comentado, ler e meditar, para cumprir e deles, então, com autoridade, falar, como é recomendado com relação às demais Escrituras. Até aqui chegamos ao Salmo 4, e já é possível verificar de que modo o conteúdo de suas mensagens pode ser, por nós, memorizado e compartilhado, na forma de testemunhos, lições aprendidas e conhecimento transmitido sobre Deus. 
          Por exemplo, já sabemos que os Salmos 2, 3 e 4 são orações e, desse modo, típicos desse gênero, podem nos ensinar lições sobre esse recurso, pelo qual falamos com Deus. Aliás, exatamente retratando essa possibilidade, por si mesmos os Salmos, antes mesmo de ser lidos, estudados ou interpretados já revelam sua peculiaridade e atrevimento. Sim, porque encará-los como orações, ou seja, modos expressos de diálogo com Deus requer, de uma vez, radicalmente falando, sua importância ou desinteresse.

            Ora, de uma vez, se têm valor simplesmente literário, o que não se discute e, para isso, não faltarão defensores, que os tratem como riquezas da literatura hebraica antiga, mormente inscritos no escopo da literatura universal. Mas seu outro aspecto é o mais radical, seja encarado, aqui, o significado deste termo como raiz ou, seu outro valor mais reacionário, radical no sentido de radicalismo, de extremismo, com relação a um conceito levado ao extremo de sua validade e possibilidade, sem mais controvérsia ou discordâncias possíveis.

             Afinal, pode o homem falar com Deus e ser ouvido? Pode, do mesmo modo, Deus falar com o homem, ter sido ouvido e comprovada essa palavra? Afinal, podem Deus e o homem dialogar? Inscreve-se num tipo de radicalismo, pelo fato de que, no contexto da religião, seria permitida uma faixa onde transitam essas falas e esses discursos, sendo perfeitamente definíveis que discursos, textos, falas e doutrinas possam ser consideradas, respeitadas, transmitidas e reconhecidas como reservas de falas divinas, e assim estabelecer-se o contexto geral de todas as religiões.

             Com relação aos Salmos, a possibilidade de falar-se com Deus e ser ouvido, assim como o contrário, ouvir de Deus o que tem a dizer, está francamente comprovada, assim como tido de modo natural, em grau variado, de parte a parte. Ainda não chegamos aos Salmos que parecem como que desabafos francos de quem ora, do mesmo modo o inverso, desabafos de Deus incontidos, dirigidos aos homens que, por sua e desta vez, assustam-se até a morte, de puro medo das consequências.

              Os Salmos têm como natural o diálogo com Deus. E nisso não há meio termo, é necessário ser radical, nos dois significados: falar com Deus assim como ouvi-Lo é raiz da relação entre os dois, assim como é radical que isso seja corriqueiro, direto, franco e fácil de ser e de se constatar, fora de qualquer controvérsia. Os Salmos têm, sim, valor literário indiscutível, mas também, por si, indicam que Deus ouve, assim como responde, seja em que situação se encontrar o orante, podendo ser de suprema angústia, franca alegria, tristeza profunda carente de confissão por pecado cometido, discurso didático que transmita lições aprendidas, enfim, abrem-se variados gêneros ou subgêneros, importa é que há diálogo entre os dois e não são os gêneros que contém os diálogos, mas por causa da riqueza do diálogo abrem-se os gêneros.

            Nesse sentido, a poesia hebraica distingue-se de outras, ou, quando muito, insere-se num contexto que indica a possibilidade concreta e documental de diálogos entre Deus e o homem e vice-versa. Nesse sentido, também, insere-se no contexto dos radicalismos bíblicos que, independentemente de se ter o Livro como verdadeiro, seja por que método de comprovação, histórico, seja por que provas científicas, sumamente relevantes, por ordem da qualidade de sua literatura, enfim, o radicalismo bíblico, por si, afirma, de uma vez, que é possível, sim, que Deus se revele, fale, mostre-se e que, enfim, se faça homem, estabeleça comunhão (radical) com o homem, para salvá-lo, especificamente para preservar essa comunhão reconquistada, para sempre, eternamente.

          Seja a coleção de livros bíblicos tratada com todo o respeito e valor, sobre ela escrevam-se todos os compêndios que, na qualidade mesmo de um de seus (supostos) autores, o apóstolo João, quando diz, que encham o mundo inteiro. Mas se negarem à Bíblia esse seu ponto de raiz, ponto central, nevrálgico de sua mensagem, que é essa convicção, certeza e possibilidade, tão corriqueiramente expressa pelos Salmos, de que Deus fala, assim como ouve os homens/as mulheres e estabelece com eles a mais franca, sincera e íntima comunhão, perdem-se os principais valores do  Livro, assim como de todo o Saltério. Radical. E o Livro vira literatura. Só isso. Sem mais. Rica, riquíssima, porém só literatura. Radical.

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