sábado, 14 de agosto de 2021

Necrópole XII - Final

       Fechariam como numa pinça. Um arco, por dois lados, eram, pelo menos, meia dúzia deles. Pelo menos, dois estranhos havia, um totalmente, outro conhecido, pelo menino, só de vista. Agora desenhou-se um sorriso sinistro no rosto do líder.

    Súbito um redemoinho de vento, por detrás do menino, levantou poeira. Costumava vir assim, como que subindo a partir do descampado. Certa vez, o aviso da vinda do vento virou ventania, ele caminhou, atraído, para o beiral último que o muro representava, para assistir a uma evolução, belíssima, de chuva, temporal mesmo, vindo célere em sua direção, subindo o aclive do descampado.

    O redemoinho, como num recorte preciso, rodeou o menino, como que desenhando um círculo ao seu redor, levantado folhas secas da árvore ali pertinho, sombra solene e contínua companheira de nosso herói. Projetou poeira no grupo, como a se espraiar, como um leque, num vetor de direção de encontro a eles.

     O riso de deboche estava na cara dele, cerrou um pouco os olhos, como instintivamente, os outros bandearam ao lado os rostos, o menino olhou à volta, lado e outro, como num semicírculo, seu terreno, suas campas, seus túmulos e jazigos, sua área, seu vento. Agora cravou o olhar nos olhos do adversário de ocasião, sustentou nenhum medo, como que inquiria se havia compreendido.

     Compreendido o que o vento tinha a dizer. Nem tempo contado houve, leve, levíssima alteração, congelados riso e deboche, como a se perguntar por que e como, que queria dizer essa falsa segurança, essa comunicação do quê, se eles se fechavam como pinça. Sem tempo, dessa vez não foi brisa, mas como um tufão de força calculada, como se mãos invisíveis de vento avançassem contra e bloqueassem o avanço de cada um.

    Num ruído surdo. Como tufão contido. Surdo e forte. Como se fossem se fechar essas mãos de vento, ao redor, assim se sentiram eles, enquanto isso vinha um som, mais agudo, como de fosse ventania de longe, varrendo tudo, árvores onde houvessem, assobio onde nada houvesse, zoada típica de uma muralha que avança, no conjunto todo.

     Mais uma olhada do menino ao redor. Agora, sério, congelou o olhar, como se encarasse a todos e um a um ao mesmo tempo. Modulou, de leve, os lábios, como a advertir, é isso, e, agora com o olhar, como que fez menção do ruído atrás de si, cada vez mais perto e mais ameaçador, vindo a partir do descampado, por detrás do nosso herói, de frente para a malta.

     Agora o som era total, chegara a tormenta, a gang como que estatelara, parada, até os paus estavam no ar, também congelada a cena, foi quando reviveu-se atrás um som de chuva. Que chegou, em evolução maravilhosa, varrendo tudo, de trás para diante, lavando de toda a poeira, encharcando as folhas, agora grudadas ao chão, apenas movidas pela enxurrada que fazia regos nos desvãos das tumbas.

    A água, definitivamente, os fez parados, encharcados. O menino ergueu as mãos aos céus, como a louvar a tormenta. Todos os olhos voltados para o seu gesto. A chuva continuava, pelo vento, a bater-lhes o rosto, de frente, a encharcar o menino, pelas contas. Braços erguidos e olhar aos céus, olhos semicerrados, cheiro ameno da terra molhada.

      Todos como a não saber por que ou como, balançaram sem por que, nas mãos, os porretes, um a um largados ao léu da água que escoava no chão, matizada nos desvãos. Um ou outro porrete, que não travou naquele desenho, deslizou pelas vielas entre túmulos.

      Ninguém mais olhou para a cara de ninguém. Cada um tomou seu rumo. O líder não sabia o que fazer de seu cetro, se parecia que iria arremessar a qualquer quadrante, largou-o ali mesmo, emblematicamente. E menos simétricos do que na vinda, agora voltavam. O líder por último, em direção à elevação do cruzeiro, agora mais conduzidos pelas determinação natural da chuva torrencial, do que por mãos de vento invisíveis.

     O garoto mirava a debandada. Fechou os olhos, curtiu a água benta que o lavava. Quando os abriu de novo, a silhueta do líder se perdia descendo o aclive rumo ao portão de ferro. Junto ainda com a chuva, um raio de sol entre nuvens esbarrou no menino. De trás para a frente, do mesmo lugar de onde veio, a chuva foi indo, no mesmo sentido.

     Agora era um vento quente que vinha lá de trás. Morno. Contribuía para secar a roupa molhada. A sujeira estava toda lavava e levada. As nuvens se iam e um sol de entardecer despontava. E foi essa luz que trouxe, lá da direção do portão, despontando pelo alto do declive, ao lado do cruzeiro, pela via do meio, o contorno no negro Pedrão.

     Mãos enormes, braços quase na altura dos joelhos, ombros de laje. Sorriso alvo. Vinha ele. Costumavam, os dois juntos, e quantas vezes fizeram isso, em silêncio assistir ao sol se pondo. O pessoal em casa já sabia que, sol posto, a essa hora, ele chegava. Pedrão veio em sua direção. Ele deslizou da lájea ao chão. Também riu para ele.

     Não precisava dizer. Na chegada de seu plantão, havia cruzado com o bando disperso. O olhar duro que lançou a cada um, nunca mais esquecerão. O líder se deteve. O mesmo olhar, mas agora a menos de palmo, medido nas mãos do negro, de distância. O olhar do delinquente adolescente sabia que tinha que mirar no do outro. Ficaram assim, encarando-se, até que o rapaz entendesse o nunca mais.

    Os dois juntos, como sempre, em silêncio, agora quase totalmente secos, miravam o sol se pondo. A mão gigante esquerda do negro pousada no ombro esquerdo do menino. Cada anjo que aparece. 

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