quinta-feira, 19 de agosto de 2021

A velha - 3

 

    A professora da escola irritadíssima. A escola do bairro. Sta Leocádia. A escola. Vocês tem de ser dar o respeito. Num respeita os outro. Tem de respeitá. Respeitar d. Maria, respeitar a religião e respeitar a si mesmo, o pai e a mãe de vocês. Cês têm tudo que se dar o respeito.

      Porque a criançada passava pela velha e falava Ave, Maria. Ela só olhava. Mas bastou. Cidade pequena, chegou nos ouvidos de alguns pais, algumas mães deram peia, a própria Diretora fez uma preleção no recreio da escola. Olha, isso é muito feio. Os pais de vocês vão ficar envergonhados. Vocês querem os pais de vocês envergonhados? Essa pergunta foi enfática.

     Eu não acredito que vocês queiram ver a vergonha, a vergonha, repetia, modulando a voz, es-tam-pa-da, falou, gesticulando uma imagem circular com as mãos, em forma de garras, estampada na cara, no rosto, melhor dizendo, de seus pais. Bastou. A velha superou mais essa e continuou plantada em seu perímetro.

     E foi nesse perímetro que Alfredo, esse, o motoboy das entregas, a viu plantada, quando virou a curva, para pegar a marginal, para pegar a autoestrada. Deu de cara, distraído, desligado, como sempre, e desprevenido que estava, com a estampa do rosto profético protocolar sombria da aparição. Como se fosse uma aparição.

     Desgovernou-se, na moto, como se fosse cair, a lado e outro, fez um 8 no chão, até que parou, como se fosse num cavalo de pau. Minha Nossa Sra, ele gritou. Que que isso, seu Alfredo, era Maria, a menina de bike, os três únicos, naquela hora, cedo no dia, ali naquela rotatória.

    Maria freou sua bike. Machucou-se, seu Álvaro? Falou assim mesmo, "machucoo-se", com o "se" depois do verbo. Era uma menina muito inteligente. Trabalhava e estudava, mas as duas coisas fazia, dando tudo de si. Não, é deslocou o olhar para a velha. Ia dizer alguma coisa. Mas os olhar da mulher o estatelou. Esgueirado pelo franzido da fenda que dissimulação os olhos.

     Dissimulada. Esse velha é uma Dissimulada isso que ela é. Mas não disse, pensou, enxergou o olhar dela fixado no seu, pela fenda dos olhos, e a imagem completa foi aumentando de tamaho, ganhando corpo e força, mateforfozeando-se, ou melhor, metaforizorceando-se diante dele. Seu Alfredo. Maria o chamava.

      Porque congelara. Ahn, sim. Oh, Maria. O Sr. está bem mesmo? Claro! Claro. Fez uma careta. A velha manteve os olhos de brecha cravados nele. Não tirava. Ele abaixou a cabeça, deu com duas vezes no pedal, a moto pegou, deu tchau para Maria, olhou de novo para a velha, ela com a lentidão de sempre acompanhou olhar e trajetória da moto.

     Ele ganhou, intrigado, seu rumo. Porque sua vontade mesmo era culpar a velha pelo transtorno da derrapagem. Que que ela tinha de estar ali, feito um poste. Caramba! Mas convencia-se de que a culpa era sua. A velha era um patrimônio e o lugar dela era ali. Definitivamente, não era para ele encarar a velha e se desgovernar. Caramba! E foi assim que deu mais uma olhadela atrás. E deu com o olhar da velha, 180⁰ mirando a cara dele. Deteve-se o suficiente para ouvir um buzinaço. 

     O cara da via de sentido contrário o alertara. Virou para ver, deu com a traseira do carro defronte, par de luzes de freio acesas, crescia, chamou para si a moto, freou amenizando, ganhou à direita, desviou, retomou o prumo, saiu da traseira do carro da pista da direita, ganhou o acostamento, viu areia no chão, chamou ameno no freio, a moto ainda dançou a lado e outro, agradeceu a Deus não ter ninguém nem nada naquele espaço, entre o caminhão que agora via a sua esquerda e a vala negra cheia de mato que via à direita.

     Noutros tempos, ainda solteiro, teria xingado, sonoramente, um nome. Mas lembrava da cara, desta vez de sua mulher, seu olhar reprovador. Tirou o capacete, rodando a cabeça para um lado, velha do caramba!

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