terça-feira, 14 de abril de 2015


 Verdadeiros adoradores

         É temerário, quando se trata da Bíblia, com relação à sua interpretação, retirar ou acrescentar. Evidentemente, estamos tratando aqui de leitores/intérpretes honestos com relação ao texto. Aliás, princípio para todo o tipo de interpretação, tirar ou pôr será violência contra a originalidade do documento, seja ele qual for. Mas, no caso que trataremos aqui, não se trata dessa falta, mas trata-se de uma proposta de leitura diversa da que, costumeiramente, é feita. Vamos dar um break na leitura de um trecho (vai ficar parecendo um breque, que me desculpem os puristas e seja lembrado o Moreira da Silva).

         O trecho em questão é aquele da narrativa de João 4, o célebre encontro entre Jesus e a Samaritana, primoroso diálogo. Aliás, primorosa toda a história. Se não, leiam lá, para avaliar, com olhos de ver bem abertos. Então, chega numa altura da conversa, Jesus relativiza a religião, mesmo porque aquela mulher já estava saturada de gente que só a atrapalhava, quando se tratava do que ela avaliava como essencial, que era sua busca por adoração, e diziam a ela que somente no lugar certo ela obteria resultado aceito como culto.

            Foi quando Jesus denunciou os dois grupos de religiosos e suas exigências descabidas, ou que fosse formulação doutrinária, ou receita de ascese requerida, somente antepondo obstáculo ao que, de coração, a mulher buscava. Jesus formulou, então, que o conteúdo do coração da mulher teria eco no coração de Deus, independentemente do lugar do culto, fosse no Templo em Jerusalém, ou seu contraponto em Samaria, ou em nenhum outro lugar geográfico, ou em qualquer outro lugar, enfim, Jesus explicou, e disse: "Porque o pai - no caso, Deus - procura verdadeiros adoradores que o adorem em espírito e em verdade."

              O breque, sugiro, deve ser na expressão "verdadeiros adoradores". Proponho a seguinte leitura: "Deus procura verdadeiros". Pronto. Para ser adorador, é necessário ser verdadeiro. Caso alguém busque ser verdadeiro, será, consequentemente, considerado adorador. Porém, uma vez que não busque a verdade, jamais será adorador. Mas no que o homem/mulher precisa ser verdadeiro para que, somente, então, seja considerado adorador? Em tudo. Vai precisar ser verdadeiro em tudo. Autêntico, como Deus é e se mostra, agradando-se da verdade no íntimo, já dizia Davi num de seus salmos. Aliás, mais de uma vez, mesmo redonda e profundamente mergulhado em seu erro, atolado em seu próprio lodaçal, Davi se mostrou verdadeiro.

             Em outros trechos da Bíblia, ocorre essa confrontação entre adoração e verdade. Por exemplo, nos tempos do ministério de Samuel, Israel bateu-se com os filisteus, seus seculares inimigos. Eram povo do litoral da Palestina, dizem os historiadores terem sua origem em Chipre, abalando-se de lá para uma tentativa de invasão do Egito. Tendo fracassado, instalaram ali mesmo, na hoje ainda famosa faixa de Gaza, a meio caminho do objetivo original, que era o delta do Nilo, pegando no pé, literalmente, dos israelitas.

              Ao pé das montanhas, eles ficavam, impedindo que os judeus descessem ao litoral, inclusive, nessa época de Samuel, juiz, profeta e sacerdote, diz a Bíblia que o jugo era tão cruel que, ainda somente para amolar ferramentas agrícolas, era necessário pedir permissão aos filisteus. Um jugo desses foi que motivou Israel a pedir um rei, com tudo que implicava essa mudança. Pois numa dessas escaramuças, para efeito de amedrontar os filisteus, visto mesmo que, nessa situação, o exército de Israel não era lá valente o bastante, como de costume, resolveram fazer um jogo de cena e trouxeram a Arca da Aliança para o arraial militar, próximo à tenda em Siló.

         E diz lá o texto bíblico que puseram-se a comemorar antecipadamente, de tal modo e em tal altura que, do acampamento inimigo, ouviam-se as vozes de júbilo. Amedrontaram-se os filisteus com essa empolgação toda, lá no acampamento adversário, e deram por perdida a batalha, inclusive evocando as verdades que conheciam a respeito da fama dos 'deuses' dos judeus. Era boa hora para que o Altíssimo lhes desse uma lição, mas não, Ele preferiu deixar transparecer a falta de verdade que havia em meio do povo de Israel, chamado por seu Nome. Uma voz entre os filisteus os repreendeu pela demonstração extemporânea de medo, estimulando-os a serem fortes e não se tornarem, como os judeus o eram, escravos dos próprios inimigos.

          E, dessa feita, quem perdeu a refrega foram os judeus. De nada adiantou Arca da Aliança, gritos de júbilo, fetiche, adoração, rejubilar-se. Faltava autenticidade. Os judeus, naquele dia, não foram verdadeiros diante de Deus. Por isso, nenhuma ajuda, coragem ou brio que os socorresse, como em tantas outra vezes ocorreu, quando mesmo em desvantagem. Por exemplo, na chamada Guerra dos Seis Dias, em 1967, estavam cercados por todos os lados: Jordânia, ao leste; Egito, ao sul; Síria, ao norte. Em menos de uma semana, venceram. Porém, uma vez sem autenticidade, não se esperem, da parte de Deus, subterfúgios, jogos de azar ou fetiches, como o uso de talismãs, como tentarem fazer com o baú de utensílios memoráveis, revestido de ouro, ao qual chamavam Arca da Aliança. Se haviam rompido, com Deus, sua aliança, que não trouxessem a Arca.

          Adiante, lá mais para o final do período dos juízes, pouco antes da transição que Samuel representava, houve um dos fatos mais escabrosos que a Bíblia registra em sua tradição. Não que seja novidade porque, infelizmente, lugares geográficos há no mundo atual onde ocorre esse mesmo drama, sumamente covarde, desprezível e deprimente, marca da decadência da condição humana, que é o estupro coletivo. Uma história de amor pungente, sincero e modelar, findou nessa violência gratuita, praticada contra um casal recém-casado. Vamos resumir, mas você pode lê-la, completa, no final do livro dos Juízes, o sétimo livro a partir do Gênesis.

           Um levita, servidor do templo, do culto e instrutor da Lei do Senhor teve, na região montanhosa de Efraim, ao norte, um affair, no bom sentido, o que chamaríamos flerte ou paquera, porém chegou a casamento, com uma mocinha turista de Betel, ao sul. Adiante, casal novo, relacionamento nem meio maduro, ainda, desentenderam-se. Ela voltou para a casa dos pais, arengue que durou 4 meses de ausência da esposa. O homem, apaixonadíssimo, empreendeu jornada, a fim de reaver seu amor e foi bem sucedido. Muito bem recebido na casa dos sogros, pela esposa e pelos pais, insistiram com ele que não voltasse logo, o que ele anuiu, e essa conversa repetia-se e prendeu, em Belém, por quase mais uma semana, o casal.

          Afinal retornando, caminharem até o anoitecer, alcançando um entroncamento de duas cidades, Jebus, que será a futura Jerusalém, embora, naquela época, ainda cidade estrangeira aos judeus, encravada na terra que começavam, apenas, a ocupar. Decidiram, então, pernoitar na outra cidade de patrícios deles, possessão da tribo de Benjamim, denominada Gibeá. Acomodados na praça da cidade, deu com eles um ancião que, compadecido, sugeriu-lhes que pernoitassem em sua casa. O casal concordou, foi quando homens, quais a Bíblia indica como 'de Belial', isto é, demoníacos, maléficos, bateram à porta do hospedeiro e insinuaram que lhe entregassem o homem, para dele abusarem, muito óbvia, provavelmente e inclusive, sexualmente.

        Ora, a hospedagem, no Oriente, é dom inviolável. Recomendação bíblica que seja praticada, ao grau de, até mesmo, que seja fator de apaziguamento mesmo entre inimigos beligerantes. Pois esses 'filhos de Belial', além de violar esse princípio, também violaram outro que foi intentar, por violência gratuita, contra a integridade física e moral do levita. O homem que os hospedava sugeriu que violentassem sua filha. O levita, hóspede da casa, resolveu dar sua esposa aos arruaceiros. É claro que vamos estranhar essa decisão, principalmente tendo dito, linhas atrás, que havia amor entre eles, apego mesmo, como casal de amantes, prova disso foi a jornada empreendida para reaver a mulher.

         Mas não adianta nada olhar com olhos de hoje os modos daqueles dias. E assim, do mesmo modo que hoje, consoante os maus costumes, o desfecho da história resultou em destrato e violência gratuita contra a mulher, incluído o menosprezo, ainda o secular e recorrente machismo. Porém, em sua atualização, o século atual não difere, quando se trata de qualquer espírito crítico mal dirigido contra costumes, maneiras e gestos dos tempos bíblicos. Isso porque estupro coletivo está nas manchetes dos dias. Constitui-se anacronismo grosso pretender desabonar a Bíblia, portanto, em suas realistas narrativas, quando a velha humanidade, tratando-se do refinamento de sua maldade, continua a mesma.

             Pois, ao encontrar morta a esposa, deitada ao umbral da porta, após a gana dos estupradores, que a violentaram toda aquela noite, friamente o levita a pôs sobre sua montaria e continuou o rumo da viagem de retorno. Chegado a sua casa, retalhou, desmembrando o corpo da esposa em doze partes, equivalentes às doze tribos de Israel. Muito provavelmente, embora a Bíblia não mencione, deve ter salgado as partes, porque, senão, chegariam ao destino putrefatas. Requintes. Ao receberem cada pedaço, as tribos inquiriram do que se tratava o absurdo e resolveram reunir-se, o que fizeram em Mispá, para deliberar. Ouviram a história contada pelo levita. Eram 400 mil homens. Decidiram justiçar Benjamim, que tinha 20 mil homens em sua guarnição, fora uma tropa de 700 atiradores de elite, sim, que manejavam fundas, eram snipers, sim, segundo a Bíblia acertavam um fio de cabelo à distância de um tiro de pedra.

           Duas vezes foram derrotados todo o Israel, em cada escaramuça perderam, para Benjamim, respectivamente, 20 e 18 mil homens. Por quê? Por falta de autenticidade. Deus não deu apoio a Israel, mesmo juridicamente justificável e ainda para mais do que suficiente a quantidade de dez vezes mais soldados, porque a verdade, se não estava, como claramente ficou demonstrado, com Gibeá, muito menos tinham as demais tribos postura de santidade, diante de Deus, para que punissem Benjamim. Deus requer verdade e verdadeiros. Ponto.

               Terminando o texto que já se faz longo, falta apenas discutir outra situação que bem define adoração e autenticidade. Trata-se, vou assim denominar, a Tentação de Jesus ao inverso. Sim, porque imagino que satanás, quando escolheu em que áreas da vida haveria de instigar Jesus, refletiu sua estratégia e avaliou testar Jesus: (1) em sua fidelidade à Palavra de Deus; (2) em relação à legitimidade do cuidado do Pai com seu Filho; (3) em relação a quem, em último caso, deve-se prestar adoração.

           A primeira proposta do adversário de ocasião era para que Jesus saciasse sua fome usando seu próprio poder, supunha satanás, para tornar pedras em pão. Jesus replicou que sua fome era satisfazer a vontade de seu Pai e o poder de Deus não estava a disposição do Filho para satisfazer caprichos e necessidades imediatas, fora dos critérios do juízo de Deus. O homem deve viver da palavra que sai da boca de Deus. Aí está a verdade de Deus para o homem.

         A segunda proposta foi para que Jesus soubesse se Deus haveria de livrá-lo de qualquer risco,  "atira-te daqui abaixo", provavelmente satanás testando se Jesus confiava no Pai o suficiente, visto mesmo que, pelo que Jesus lia, escrito no Antigo Testamento, a respeito do Filho, eram intenções do Pai fazê-lo enfermar, moê-lo, enfim, sacrificá-lo. Provavelmente satanás desejava ir mais longe, como sempre, jogando um contra outro. Jesus fechou com o argumento de que não devemos intentar contra Deus, tentando-o, supondo-o equivocado em Sua vontade.

         Satanás encerrou, segundo ressalta Lucas, até ocasião oportuna, radicalizando e supondo que, como sempre intentou, pretendendo julgar-se igual a Deus, fosse adorado em lugar do Altíssimo, vício esse antigo que, segundo informa Ezequiel, o profeta, está mesmo na essência do diabo, que é ver-se como Deus ou até acima e desejar ser mesmo adorado por Jesus, do mesmo modo que este adorava, literalmente, o Pai. O pai da mentira, como a Bíblia o define, não tem verdade nem para que  seja considerado um adorador, que dizer ser adorado.

        Tentação ao inverso foi satanás supor (1) que Jesus não optaria por obedecer a palavra de Deus, assim como (2) supor que Jesus se prevenisse contra  o Pai, testando o cuidado e amor do Pai pelo Filho e last, but not least, segundo Lucas, (3) supor que Jesus o adorasse como só Deus merece ser adorado, esta última, uma afronta e sumo atrevimento. Deus procura verdadeiros. Se somos verdadeiros em tudo o que pensamos, no recôndito, no íntimo, em todas as atitudes, mesmo quando pecado, sempre confessado, nunca presumidamente escondido, Deus nos aceita como adoradores.

        Como diz Davi no Salmo 51, Deus tem prazer na verdade que abrigamos no íntimo, ali treinados pelo Espírito Santo, que dá testemunho dessa verdade. Eis aí uma diferença, desde o Éden, quando o homem resolveu culpar Eva no primeiro contato com Deus após a queda, "a mulher que tu me deste", enquanto que a mulher resolveu admitir sua culpa, "a serpente me enganou e eu comi". Adoradores adoram em espírito e em verdade. Em qual dos dois houve verdade? Qual dos dois se dispôs mais prontamente a receber o perdão? Assim como, na conversão, se dá a primeira oração, dá-se o primeiro ato de adoração, quando, como diz Pedro, a "candeia (palavra) de Deus brilha em lugar tenebroso". Como orou Davi, "Deus, que derrama luz sobre as minhas trevas". Deus procura verdadeiros. Então, serão adoradores. Mas se não são verdadeiros, não são adoradores.

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