sábado, 11 de abril de 2015

Casa de minha avó


  Casa de minha avó.

                Chegou a mim a notícia que pretendem vendê-la. Casa de vó nunca deveria ser vendida. É uma coisa que carregamos dentro de nós, ao longo da vida. Mas, já dizia meu velho, e já ido, pai: o tempo é inexorável. Mas nunca vai apagar a casa da vó de dentro de mim. O que me lembra a casa da vó? Ora, vai depender muito da ótica com que se olha. Pois aí vai a minha, muito pessoal. Ou, dependendo desta vírgula, vai muito, pessoal!

              O evangelho. Outros mais, outros menos, a vó Eunice levou todos os netos que pôde levar, que o tempo lhe permitiu levar à Igreja Congregacional de Nilópolis. Uns mais, quando os pais desses meninos ou meninas eram mais descuidados, não dando a esse mister a máxima importância. Pois Eunice assim acreditava, que deveria ser dada a máxima importância. Hoje, os netos e netas são pais e mães, aliás, Eunice tem neto que já é avô, mais exatamente o Rúbio, que chamamos Rubinho, mais exatamente ainda, avô do único trineto que alcançou Eunice viva. Pois tais netos e netas nunca poderão dizer que, por ela, não foram conduzidos à máxima importância. Se deram à essa máxima importância a importância devida, só eles podem responder. Mas nunca poderão dizer que não foram, da casa da vó, conduzidos, por mão dela, à igreja.

          Eu, por ser, dos netos, o mais velho, com apenas duas lindas primas à minha frente, nesta vida, por míseros dois, um ano de dianteira, ainda lembro o avô que tinha na casa da vó. Tula, o avô e seu apelido, tinha uma oficina para reparos dos artefatos daqueles idos como, por exemplo, rádios à válvula. Rsrsrsrsrsrs. Eram aqueles dispositivos que variavam no tamanho e na forma, parecendo lâmpadas, com placas, dutos e filamentos internos, que acendiam ao serem ligadas, produzindo um barulho característico, um zunido resultante do efeito do caminho percorrido pela corrente entre elas. Eram montadas, encaixadas em soquetes, em cima de um chassi, por debaixo do qual se podia ver o emaranhado do circuito, já agora repleto de caminhos e contatos de resistências multicoloridas, com código de cor indicativo do valor em ohms, entre outros elementos desse circuito em evolução.

        Homem de poucas palavras, o Tula, pelo menos com crianças, mas de um sorriso inesquecível. Sem sombra de dúvida, desculpada a ausência de meu pai e a presença de meu filho, nunca encontrei um homem que tivesse um sorriso tão lindo! Uma vez, apontando com o dedo médio da mão direita, porque perdera o indicador, num labor qualquer da vida, conversamos, eu e ele, numa noite também inesquecível. Ali mesmo, no portão da casa à venda, cada tijolo e cada reforma feita com aquelas mãos de dez, mas agora nove dedos: lembrem daquele portão de ferro embrutecido, nem tão grande, mas que achávamos mal acabado, as duas pilastras que o guarneciam, de lado e outro, o canteiro de plantas à esquerda, com aquele pé de café, de onde ele colhia as frutinhas para deixar secar ao sol, ali mesmo, ao pé da escada da frente, torrar, moer e fazer a bebida, e mais o pé de ameixeira, aquelas bem amarelinhas e azedinhas, no qual subi algumas vezes.

       Tula apontava para as serras de Mesquita e falava, trai-me a memória, mas a imagem daquela noite caminha e vai comigo ao longo da vida, inexorável, dizia o Cid, meu pai, o tempo. E os dentes de Tula, que ele areava, como se dizia, ao longo do L que formava a lateral e o canteiro da frente, conferindo o estado das plantas, escovando, escovando, escovando. Dorcas, a mais velha das cinco filhas, diz que, inexoravelmente, quando testemunhou o traslado de seus ossos, conferiu que, da arcada, nenhum dente faltou. O que mais? Muito, pessoal, já disse.

      Leila, a caçula, e isso meus primos mais novos não vão lembrar, ou só agora saber, confeccionava barquinhos de papel, para colocar nos córregos formados na sarjeta das calçadas, nos dias de chuvaradas de verão. Saíamos, eu e ela, para essa peraltagem. Não havia calçamento na Av. Oswaldo Cruz onde, no 306, ainda está a casa. Serpenteávamos, escolhendo o melhor chão, contornando as poças, como no dia em que vim sozinho, do Instituto Filgueiras onde fazia, o ainda assim, na época chamado, Jardim de Infância, atravessando a cancela da REFFSA, como eu lia nos vagões de trem, por cima dos dormentes que, durante anos, Tula assentou, trabalhando na turma de linha ou de campo na Central do Brasil, e prossegui, com aquele uniforme, farda, como chamam no Acre, ridículo, com babadinhos fofos, elástico na coxa e ainda suspensórios (lembra para que serviam?), pisando lama.

       Os cachorros da casa da avó. Poucos primos, acho que só aquelas primas bonitonas de que falei, as únicas duas netas que chegaram antes de mim, lembram do Blaike (vou grafar assim, para não confundir com black), o único cachorro que, até hoje, devo completar 58 anos, conheci que tinha, ora vejam só, lábio leporino. Bom, não sou veterinário, mas o primo Erlon Campello, o irmão da linda Bela (leia com  ∕ ê ∕), pode dar o termo correto, mesmo porque Blaike não tinha lábios, mas tinha uma fenda em seu focinho. Era meio caramelo, no pelo. Duque e Peralta, ele e ela, o macho meio grande, branco encardido e vistoso, ela, mais baixinha e malhada. A vantagem dela era que cantava, melhor, uivava, toda vez que Onésimo pegava seu xilofone e se punha a tocar um hino qualquer. Talvez, baseando-se no Salmo "todo ser que respira, louve ao Senhor". Só na casa da avó vai haver uma cachorra solista lírica.

      Almoços de domingo na casa da avó. Concorridíssimos. Um panelão de sopa. Uma mesa imensa e farta, em torno da qual todos sentávamos. E a disputa pelos jilós? Tão característica era que eu mesmo decidi, a partir dos 14 anos, não disputar o butim daqueles dias, mas comer jiló, até hoje garimpado por mim aqui nos mercados de Rio Branco. Abalávamos de Cascadura, onde morávamos, para Nilópolis, eu e Dorcas: Escola Dominical e culto na igreja, almoço na vó Eunice, Silvio Santos, das 8 às 18 h, na TV preto e branca (à válvula, evidentemente), piadas do Dante Santos, o tempo todo, e pão com carne assada para levar como merenda, à noite, de volta à igreja. Legal mesmo era quando Marisa França Costa passava por lá: a estripulia era completa.

      Casa da avó. Há muito, em quantidade, a dizer, e em tempo decorrido. Têm mais de 50 anos essas recordações. Ia esquecendo de falar da avó. Posso começar pelo sorriso que, quando se abria, os olhos dela se fechavam, lembram? 96 anos muito bem vividos. Cuidada, nos momentos finais, pela dupla de netos médicos, Gisley e Alexandre. Deixou a gente atrás de si. É claro que outros avôs e avós há nessa família, nessa família enorme, nesse familhão, opa, inexistente a palavra, mas sintética o bastante. Cada avô e cada avó trazem esse mesmo charme. As casas deles têm esse mesmo grude. E tais lembranças enchem a nossa vida e mexem com nossa imaginação. A casa dos avós é esse tipo de museu permanente. A gente roda esse filme e enxerga as cenas que se sucedem.

     Vamos nos encontrar ainda por mais algum tempo. Inexorável. Vamos nos recordando, comentando com filhos e netos o quanto faltou contar. A casa da avó nunca mais vai sair de dentro da gente. Mas, para terminar, já que comecei falando em igreja, nasceu uma na casa da nossa avó. Aquela área externa nem era tão grande. Parece que as coisas, com o tempo, diminuem. Caramba, como havia espaço ali para surgir uma igreja? Era outro avô o pastor, avô da outra prima bonita, a que nasceu primeiro, a Ruth, carinhosamente chamada Rutinha. O avô dela era o pastor da igreja nascida na casa da avó. Era tão apertadinho, mas tão apertadinho, mas tão bem utilizado o espaço útil da área dos fundos, que roubava um tantinho do local dos cachorros. Por isso, só podia vir da cabeça dele, Onésimo resolveu chamar uma das Classes da Escola Dominical de "Carrapatos de Cristo". Hahahahaha.

       Termino aqui. Mas resolvo fazer uma advertência, tomando essa liberdade, para dizer àqueles primos e primas que, junto comigo, carregam dentro de si a casa da avó: carreguem também dentro de si algo que a avó Eunice tinha como bem mais precioso: a igreja. Como Jesus pensou, igreja é como uma tenda, um tabernáculo que a gente carrega dentro de nós. Sabe para quê? Para Jesus residir dentro. Todo o povo que está nela, cada um, individualmente, nem mais, nem menos, nem pior, nem melhor, todos iguais perante Deus, devem entender igreja assim, desse jeito. Então, aonde a gente vai, a gente monta e desmonta, mas nunca larga de mão essa tenda. Foi isso que a vó nos quis transmitir. E conseguiu.

Um comentário:

  1. Lembro bem daquela casa, do cafeeiro, do quintal, do portão, do sorriso da prima Eunice e do jeito fechado do Tula. Saudades de todos!

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