sábado, 28 de fevereiro de 2015


  Diante de uma manhã chuvosa, no Acre:

 Chuá, chuva cai 
sobra aqui, falta acolá
   vai, mata a mata

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015


      Meu primeiro haikai

(primeira forma

                   chuva vinha de Deus
                        pensavam
                   agora esperam que mande)

aprimorado:            

                            ////////////////////////////////////////////////////////
                 ////////////////////////////////////////////////////
    /////////////////////////////////////////////////////////////
                        chuva que vinha de Deus
                              acreditavam
                           hoje esperam que mande


O segundo haikai só poderia ser em homenagem ao Spock, com o trocadilho óbvio, usando "jornada" e "estrelas":
                   

                         anymore Nimoy
                   Jornada nas Estrelas
                     Live Long and Prosper Shalom

      Está bem. Como tudo é começo, eu explico: antes, os homens acreditavam que a chuva vinha de Deus. Posteriormente, acharam que descobriram a origem, ou seja, não passava mesmo senão daquele ciclo evaporação-condensação-precipitação. Aí, agora que o homem está destruindo o meio ambiente, ele volta a pedir ou acreditar que Deus mande chuva. Quanta fé...

       Quanto ao Nimoy, o eterno Sr. Spock, é que, em inglês, 'anymore' significa 'não mais': Não mais Nimoy (aliás, deu uma boa sonoridade também em português, não acham?). Jornada nas Estrelas é que ele, agora, está empreendendo a sua verdadeira jornada. Quanto à frase (verso) final, era sua marca registrada de saudação: Vida Longa e Próspera como, em certo sentido, foi a dele. Shalom, paz, eu acrescentei, para completar a métrica. Shalom, no hebraico, é a saudação judaica que significa paz integral.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015


   Salmo 5


                 Até aqui, já constatamos parentescos entre os Salmos 3, 4 e 5, a começar pelo fato de (1) ter sido escritos pelo mesmo autor, Davi, o rei-pastor-poeta, (2) serem, os três, orações e (3) ter como contexto a cercania de inimigos. Também, desde que, na história do 1º Livro de Samuel, este profeta-juiz-sacerdote se desloca até a casa de Jessé, em Belém, para ungir rei o filho caçula Davi que, por sua vez, o pai escondia, envergonhado, desde essa época Davi começou a granjear inveja, a começar pela própria família e, por aí afora, até a crise espoucar em meio ao trono, com Saul, sem motivo, regendo todo o desplante e fúria contra Davi, que passa a colecionar desafetos.

             Neste Salmo ele ora, novamente, com a intensidade de um clamor e, desta vez, mede-se, como se houvesse um confronto entre ele e seus inimigos, não um confronto direto mas, na medida de caráter, no qual fica clara a diferença entre Davi, um servo de Deus, e os que não o são, ou assim não se reconhecem, ou se definem, diante de Deus. Aliás, falando em clamor, Davi se expressa haqishbha lecol shavhi: "Presta atenção à voz do meu clamor."

                Clamor, traduzido, quer dizer "invocação", "grito", "súplica", o que não quer dizer que sempre seja necessário o grito, para que se caracterize "clamor". Por isso comento aqui que "clamor" mais se caracteriza como intensidade da súplica do que, propriamente, o volume do som. Ana, mãe de Samuel, por exemplo, na Tenda da Congregação, em Siló, na época do sacerdócio de Eli, sem dúvida, clamava em seu íntimo. Porém apenas balbuciava o que dizia, levando Eli a pensar que estivesse bêbeda, tal qual quando o embriagado mistura palavras ininteligíveis em seu delírio.

                É usual vermos grupos de irmãos, quando reunidos, todos falarem ao mesmo tempo e em alto volume, caracterizando esse ato como "levantar um clamor". Caso queiram, que o façam, mas não está correto afirmar que somente essa modalidade representa "clamar". O clamor pode ser silencioso, como em Ana, pela intensidade do drama experimentado. Para Deus, evidentemente, ele consegue discernir tudo o que se diz e quantos dizem, se todos se puserem a falar ao mesmo tempo. Mas, para quem participa e os expectadores, fica confuso e quebra o princípio que Paulo prescreve na 1ª carta aos Coríntios, quando afirma que tudo o que grupos de cristãos fazem quando reunidos deve ser compreendido, para que não transpareça como loucura coletiva.

                 Nos versículos 1-3, Davi expressa o modo como se coloca diante de Deus em oração quando, por três modos diferentes, indica que, em sua oração, recorre ao Senhor:

 QUANDO           PALAVRAS DO SALMISTA                O QUE PEDE     A QUEM PEDE      COMO PEDE       
   PEDE                  

                 v.1   A  MINHAS PALAVRAS                 DÁ OUVIDOS       SENHOR
                               MEDITAÇÃO MINHA                  ATENDE
                                
                  v.2        VOZ DO CLAMOR MEU                   DÁ ATENÇÃO       REI MEU
                                                                                                                   DEUS MEU          POIS A TI ORAREI
                  v.3                                                                                                                                          
PELA MANHÃ    VOZ MINHA                                   OUVIRÁS           Ó SENHOR          ME APRESENTAREI A TI
PELA MANHÃ                                                                                                                       E VIGIAREI
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                      
            Pelo esquema apresentado, pode-se perceber o que, na poesia hebraica, denomina-se paralelismo, que é um reforço, por meio de linguagem sinonímica, do que vai expresso pelo salmista. No caso, ele chama de oração suas "palavras", seu "murmúrio"/"meditação", seu "clamor" ou, simplesmente, sua "voz". Pede a Deus que "dê ouvidos", "atenda", "dê atenção" ou "ouça". Refere-se a Deus como "Senhor", "Rei meu", "Deus meu" ou pelo vocativo "ó, Senhor". E, por fim, o salmista coloca-se diante de Deus "por oração", "apresenta-se" e põe-se como "vigilante" da resposta que vai obter.
                                                continuação logo após o próximo texto...

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015


Entremeios

         Comentar os Salmos, ainda que um a um, de nada vai adiantar, se o leitor, de si mesmo, não estabelecer critérios para, como já foi comentado, ler e meditar, para cumprir e deles, então, com autoridade, falar, como é recomendado com relação às demais Escrituras. Até aqui chegamos ao Salmo 4, e já é possível verificar de que modo o conteúdo de suas mensagens pode ser, por nós, memorizado e compartilhado, na forma de testemunhos, lições aprendidas e conhecimento transmitido sobre Deus. 
          Por exemplo, já sabemos que os Salmos 2, 3 e 4 são orações e, desse modo, típicos desse gênero, podem nos ensinar lições sobre esse recurso, pelo qual falamos com Deus. Aliás, exatamente retratando essa possibilidade, por si mesmos os Salmos, antes mesmo de ser lidos, estudados ou interpretados já revelam sua peculiaridade e atrevimento. Sim, porque encará-los como orações, ou seja, modos expressos de diálogo com Deus requer, de uma vez, radicalmente falando, sua importância ou desinteresse.

            Ora, de uma vez, se têm valor simplesmente literário, o que não se discute e, para isso, não faltarão defensores, que os tratem como riquezas da literatura hebraica antiga, mormente inscritos no escopo da literatura universal. Mas seu outro aspecto é o mais radical, seja encarado, aqui, o significado deste termo como raiz ou, seu outro valor mais reacionário, radical no sentido de radicalismo, de extremismo, com relação a um conceito levado ao extremo de sua validade e possibilidade, sem mais controvérsia ou discordâncias possíveis.

             Afinal, pode o homem falar com Deus e ser ouvido? Pode, do mesmo modo, Deus falar com o homem, ter sido ouvido e comprovada essa palavra? Afinal, podem Deus e o homem dialogar? Inscreve-se num tipo de radicalismo, pelo fato de que, no contexto da religião, seria permitida uma faixa onde transitam essas falas e esses discursos, sendo perfeitamente definíveis que discursos, textos, falas e doutrinas possam ser consideradas, respeitadas, transmitidas e reconhecidas como reservas de falas divinas, e assim estabelecer-se o contexto geral de todas as religiões.

             Com relação aos Salmos, a possibilidade de falar-se com Deus e ser ouvido, assim como o contrário, ouvir de Deus o que tem a dizer, está francamente comprovada, assim como tido de modo natural, em grau variado, de parte a parte. Ainda não chegamos aos Salmos que parecem como que desabafos francos de quem ora, do mesmo modo o inverso, desabafos de Deus incontidos, dirigidos aos homens que, por sua e desta vez, assustam-se até a morte, de puro medo das consequências.

              Os Salmos têm como natural o diálogo com Deus. E nisso não há meio termo, é necessário ser radical, nos dois significados: falar com Deus assim como ouvi-Lo é raiz da relação entre os dois, assim como é radical que isso seja corriqueiro, direto, franco e fácil de ser e de se constatar, fora de qualquer controvérsia. Os Salmos têm, sim, valor literário indiscutível, mas também, por si, indicam que Deus ouve, assim como responde, seja em que situação se encontrar o orante, podendo ser de suprema angústia, franca alegria, tristeza profunda carente de confissão por pecado cometido, discurso didático que transmita lições aprendidas, enfim, abrem-se variados gêneros ou subgêneros, importa é que há diálogo entre os dois e não são os gêneros que contém os diálogos, mas por causa da riqueza do diálogo abrem-se os gêneros.

            Nesse sentido, a poesia hebraica distingue-se de outras, ou, quando muito, insere-se num contexto que indica a possibilidade concreta e documental de diálogos entre Deus e o homem e vice-versa. Nesse sentido, também, insere-se no contexto dos radicalismos bíblicos que, independentemente de se ter o Livro como verdadeiro, seja por que método de comprovação, histórico, seja por que provas científicas, sumamente relevantes, por ordem da qualidade de sua literatura, enfim, o radicalismo bíblico, por si, afirma, de uma vez, que é possível, sim, que Deus se revele, fale, mostre-se e que, enfim, se faça homem, estabeleça comunhão (radical) com o homem, para salvá-lo, especificamente para preservar essa comunhão reconquistada, para sempre, eternamente.

          Seja a coleção de livros bíblicos tratada com todo o respeito e valor, sobre ela escrevam-se todos os compêndios que, na qualidade mesmo de um de seus (supostos) autores, o apóstolo João, quando diz, que encham o mundo inteiro. Mas se negarem à Bíblia esse seu ponto de raiz, ponto central, nevrálgico de sua mensagem, que é essa convicção, certeza e possibilidade, tão corriqueiramente expressa pelos Salmos, de que Deus fala, assim como ouve os homens/as mulheres e estabelece com eles a mais franca, sincera e íntima comunhão, perdem-se os principais valores do  Livro, assim como de todo o Saltério. Radical. E o Livro vira literatura. Só isso. Sem mais. Rica, riquíssima, porém só literatura. Radical.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015


  Salmo 4

             Mais parecido com a espontaneidade de uma oração do que o anterior. Presente neste Salmo, (1) a presteza com que Deus atende ao clamor de seu servo, (2) a intensidade do clamor com que esse mesmo servo busca a face de seu Deus e (3) a tranquilidade final daquele que constata o modo como Deus protege e abriga consigo ao que o busca.

            Esse tripé aparece entremeado por rompantes do salmista em que lições, no ritmo da formulação da oração, aparecem, decorrentes e coerentes com a temática principal da oração do salmista. É por isso que aparecem as expressões selah que os principais comentaristas definem como uma pausa poética própria para reflexão do sentido até ali expresso.

                É desse modo que logo pós o clamor inicial do suplicante, o salmista encaixa a primeira lição decorrente da situação que ele mesmo experimenta:

                                     CLAMOR DO SALMISTA                     DEUS QUE OUVE               

                                      Ouve-me meu clamor,                  Deus meu,
                                                                                       justiça minha;
                                      angústia (minha),                     alargaste para mim;
                                      (tem) de mim,                          misericórdia
                                      ouve oração minha.

                 Logo após esse clamor inicial, o salmista se volta ao seu plenário, por meio de um aposto, através do qual são convocados, pelo próprio Deus, os "filhos dos homens", ou seja, a generalidade da condição humana, a refletir o modo como opera uma dupla troca glória (de Deus)/infâmia (do homem); amar vaidade/buscar mentira. Vaidade, não algo a que se apegar por amor e nem a mentira, algo que se busque com diligência (pelo menos, deveria ser assim):

                                                                                          DEUS                                       O QUE FAZ O HOMEM
Filhos do homem,
                  até quando (tornareis)           glória minha                     difamada
                                                                                                          amareis vaidade,
                                                                                                          buscareis mentira.

              Nos seguintes versículos, 3, 4 e 5, o salmista sugere o que tais homens devem fazer, de modo a corrigir esse seu erro, denunciado, agora, por esse clamor de Deus dirigido ao homem: que aprendam que (1) o Senhor distingue para si o piedoso, e aqui o salmista coloca-se como exemplo, quando afirma que por isso Deus ouve o seu clamor; (2) que se deixem perturbar em sua falsa estabilidade, falando consigo mesmos, reflexivamente com seu coração, em seu leito para atinar com seu erro (aqui o selah, que significa, exatamente, essa reflexão); e, por fim, (3) ofereçam sacrifícios de justiça, que significa, na cultura religiosa da época, ser internamente coerente com Deus antes de apresentar o sacrifício exterior como, por exemplo, ocorreu com Abel.    

           Como se ocorresse um diálogo, em meio ao salmo, irrompe um comentário a respeito de uma opinião de muitos, que poderiam contra-argumentar o modo como seria possível ser confrontado com o bem: Quem me fará ver o bem? A resposta do salmista é imediata: "Exalta sobre nós a luz da tua face, Senhor", quer dizer, toda a bondade resplandece, da parte de Deus, sobre nós, fazendo-nos enxergar o bem, assim como experimentá-lo. E o salmista encerra com as lições que pôde aprender, como resultado de sua experiência pessoal com Deus, afirmando que alegria e paz lhe são acrescentadas:
                                        DEUS                        SALMISTA
                               Puseste alegria              no coração meu
                                   
                                                    (como) época (em que) trigo e vinho multiplicam-se.

            E a alegria vem seguida da paz e tranquilidade do sono, que se revela tão preciosa, não somente no tempo e época do salmista, mas também nos dias de hoje. E a sentença, no original hebraico, está expressa por três vocábulos do mesmo campo semântico, literalmente (para ter) certeza + (para estar) seguro + me farás habitar. Certeza, segurança e abrigo certos dados por Deus, implicam o estado de shalom que, no hebraico, significa plena paz, em plenitude e variedade de situações. Além da alegria, tão desejada pelo ser humano mas que, para ser verdadeira, sem nenhuma simulação, precisa cobrir todas as circunstâncias, assim é o shalom permanente de Deus.

               Versículo destaque:   "Em paz
                                                    o descansar e o dormir
                                                    porque tu, Senhor, (com)
                                                    certeza, segurança me farás habitar."
                                               

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015


  Salmo 3

             "SENHOR, como tem crescido o número dos meus adversários! São numerosos os que se levantam contra mim." Neste Salmo, cujo título indica a circunstância exata de sua autoria, quando Davi fugia de seu filho Absalão e, por isso, expunha a Deus seu espanto e clamava por seu livramento, até o filho é encarado por seu próprio pai como seu inimigo pessoal.

              Nos versículos 1-2 Davi se expressa, em oração pessoal a Deus, sobre o modo como percebe ter crescido o número de seus inimigos para logo, no versículo 3, constatar que o próprio Deus lhe serve de escudo. Por isso ora, v. 4, clama mesmo, intensidade maior da oração, por livramento, e obtém resposta. Nos vv 5-6, Davi demonstra sua tranquilidade no sono e declara que não tem medo. O Salmo 3 termina com a constatação de Davi de que Deus vai socorrê-lo, levantando-se e salvando-o, v. 7, dando cabo de todos os seus inimigos. O versículo 8 é a constatação final, como uma lição a quem quiser conhecer, de que Deus salva e abençoa.

            Esta Salmo tem expresso no título a situação concreta na qual seu autor se inspirou para escrevê-lo. Nem sempre será assim tão direto e claro. O Salmo 1, por exemplo, anônimo, supõe-se tenha servido para introdução ao saltério. O Salmo 2, também anônimo, foi usado por orantes na igreja primitiva, irmãos nossos que identificaram-se com seus versos e oraram citando-o como referência. No caso deste Salmo, podemos ler em 2 Samuel 15 a 18 a história e o dilema de um pai que, por muito amar seu filho, desejava vê-lo poupado da morte, mesmo tendo-se ele levantado contra o reino.

             Embora neste Salmo Davi se tenha expressado como quem orava por meio de clamor a Deus para que o livrasse de inimigos, ele não considerava Absalão um inimigo pessoal e até mesmo deu instrução aos seus homens que não o matassem. Joabe, por traição, decidiu ele mesmo justiçar Absalão, não dando contas ou satisfação ao que o próprio rei desejava. Ler os capítulos acima são o meio pelo qual será possível compreender a extensão do drama pessoal do pai Davi e do grau de ofensa de Absalão, porém prevaleceu amor incondicional que o rei devotava ao filho.

            No último versículo de 2 Samuel 18 encontramos Davi chorando, andando de um lado a outro, no patamar de sua casa, por cima da porta de entrada. E todo o povo compreendeu e acompanhou o rei em seu lamento. Por razões políticas, no capítulo seguinte, o próprio Joabe e outros conselheiros do rei conspiravam para que convencessem o rei em não demonstrar fraqueza, visto que Absalão pretendera roubar-lhe o trono e o povo, primeiro, solidarizou-se com o rei, depois, pretendia enfrentar os conspiradores e, finalmente, esforçava-se por compreender a dor do rei.

               Poucos Salmos terão um contexto tão claramente expresso como esse. Devemos nos acostumar a procurar deduzir contextos a partir da mensagem dos textos, porém por suposições a partir do próprio desdobramento da mensagem escrita. Atenção que os títulos do editor da versão bíblica em questão aparecem escritos em forma diferente. Por exemplo, na versão da Sociedade Bíblica do Brasil - SBB, o título em itálico negrito é dos editores e o título em itálico, letra sem destaque e em tamanho menor refere-se ao título original do Salmo em questão.

        Versículo destaque:                    "Mas tu, 
                                                                               Senhor, 
                                                                  escudo               para mim
                                                     como   glória                 para mim
                                                            e    exaltação           para cabeça minha."
                                                                    

Salmo 2


  Salmo 2

      Uma oração. Mas não se trata de uma oração comum. Este Salmo transparece uma categoria que pertence ao gênero ou subgênero dos Salmos Messiânicos, que são aqueles que fazem menção ao Messias e são interpretados pelos cristãos como indicadores claros de profecia a respeito de Jesus Cristo no Antigo Testamento.

      A Igreja Primitiva usa essa estupefação, esse espanto, fazendo suas as palavras do Salmo quando tenta compreender como é possível perseguir aqueles que, em nome de Jesus, anunciam a salvação. Quando Pedro foi preso e os crentes oravam por sua soltura, evocaram traços desse Salmo, em Atos 4:23-31: 
              
                 
   "Por que se enfureceram os gentios
    E os povos imaginaram coisas vãs
                        
          Levantaram-se os reis da terra
                                   e as autoridades
           Ajuntaram-se a uma
                                   contra o Senhor
                         e contra o seu Ungido".

      Quando nos referimos a paralelismo, na poesia hebraica, é com relação a um modo de expressão em que aparecem em dupla, em linhas paralelas os conceitos indicados, reforçando-se entre si. No caso da citação do Salmo 2, em Atos dos Apóstolos, são eles: 

se enfureceram os gentios // 
os povos imaginaram coisas vãs; 

levantaram-se os reis // 
autoridades ajuntaram-se; 

contra o Senhor // 
contra seu Ungido.

        Os conceitos desse Salmo são usados, também, em Hebreus 1:5-14, citações equivalentes de Hebreus 1:5 e Salmo 2:7, como prova da divindade de Jesus, em sua filiação divina, exatamente a unidade deste Salmo que o marca como indicativo da pessoa de Jesus como Messias e o classifica como Salmo Messiânico, em 2.7.

Proclamarei o decreto do Senhor: 
Ele me disse: Tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei.

          O ponto central aponta para a rejeição de Jesus como fato que não se pode entender e razão da necessidade da oração que vai sustentar os crentes nas tribulações que sofrerão em nome de Jesus, como os mesmos apóstolos em Atos 5:41, quando se regozijaram, não porque houvessem sofrido punição física de açoites, mas porque reconheciam sua identidade com Jesus em seus sofrimentos - ver também Colossenses 1:24, quando Paulo interpreta desse mesmo modo as provações que enfrentava.

SUBDIVISÕES
         
  1. Nos versículos 2:1-3, o enredo trata de perguntar por que os povos se enfurecem contra o Ungido de Deus; 
   2. em 2:4-9, Deus, o Pai, ri-se dessa rebelião, constituirá seu Filho rei sobre todas as nações e ele haverá de regê-las com vara de ferro;
   3. Em 2:10-12 há uma advertência aos reis para que beijem, ou seja, bajulem o Filho, porque talvez possam escapar de sua ira. 

    Lamentavelmente não pertencem ao grupo dos que creem no Ungido de Deus e que, portanto, por essa razão, são bem-aventurados.

NOTAS HOMILÉTICAS

   Num uso deste Salmo 2 para sermões ou estudos bíblicos, é possível destacar 4 pontos principais a respeito do Messias de Deus: 

(1) profecia de sua rejeição: 2:1-3; 

(2) profecia de sua identidade: 2:4-7;

(3) profecia de seu reinado às nações: 2:8-9;

(4) profecia de como os grandes falharam em rejeitá-lo, 2:10-12, com uma bem-aventurança final para os que nele creem.

          Versículo destaque:      

 "Servi ao Senhor
                                        com temor
                                 
  e alegrai-vos
                                         com tremor."

  O Livro dos Salmos: um Livro de Oração

         Livro de Oração, historicamente, refere-se a um auxílio ao orante para que seja instruído no modo como dirigir-se a Deus, em sua oração individual, ou como deve orientar-se na liturgia no momento de culto. Muito provavelmente, no intuito de que não se equivocasse quanto à maneira correta ou em que e como, no momento do culto, fazê-lo. O Livro dos Salmos é uma coleção de textos de gênero diverso, porém, todos eles relacionados a esse modo específico de se dirigir a Deus ou dele falar de modo aberto, franco e direto, alguns melhor elaborados, outros de modo mais livre em sua linguagem.

            Gêneros literários são modalidades de textos diversos distinguidos entre si por características próprias de identidade. Por exemplo, os textos do Livro dos Salmos são, genericamente, poéticos, porém distinguem-se entre si quando levados em conta os conteúdos desses mesmos textos. São, também, em grande escala orações, poemas específicos ou hinos pelos quais o eu lírico, aquele que fala, dirige-se a Deus expondo suas petições, sejam dramas, angústias ou mesmo louvores, ou falando a respeito de Deus, relatando o que dele pôde aprender e como aprendeu, ou ainda exaltando Deus, por seus feitos ou por obras da sua criação.

           Os textos são mais ou menos intensamente trabalhados, artisticamente, em função de sua autoria, com maior ou menor maestria de seu autor ou, ainda, em função do momento em que é composto, se mais ou menos distantes do drama que os motivam. É necessário, também, levar em consideração que se trata de poesia hebraica, com características diferentes da poesia das línguas que traduzem esses mesmo poemas. Portanto, aspectos da transposição ocorrida na tradução devem ser considerados.

       O conjunto de rimas e métrica verificados na poesia de língua portuguesa não têm correspondência na língua hebraica. Assim como os tipos de paralelismo característicos da poesia hebraica não têm correspondência na língua portuguesa. Então, para que detalhes do modo hebraico de se expressar não se percam e sejam melhor compreendidos, é necessário conhecer esses aspectos e sua devida correspondência.

Características peculiares

             Há Salmos, em 1ª pessoa, que retratam a fala direta do orante a Deus, expressando suas angústias, suas necessidades ou, simplesmente, sua gratidão. Outros Salmos são escritos em 3ª pessoa, expressando lições aprendidas e compartilhadas no relacionamento com Deus, de modo a instruir ou transmitir a outros. Desse modo, pelo menos dois grandes grupos de Salmos podem ser definidos, (1) aqueles em que se fala com Deus e (2) aqueles em que se fala a respeito de Deus.

          Outros dois grande grupos são (1) Salmos em que se ressalta a relação de Deus individualmente com o eu lírico ou (2) em que se ressalta a relação entre Deus e o povo. Quando se trata de instrução transmitida, do mesmo modo, aquelas que são resultado do trato individual com o orante ou aquelas que são resultado do trato coletivo. A seguir, vamos expor traços da mensagem dos 15 primeiros Salmos, atentando para as suas particularidades, em relação a pontos em que se assemelham e em que se diferenciam.

O conjunto dos 15 primeiros salmos

             Neste primeiro conjunto, aleatoriamente escolhido, encontra-se uma introdução, indicada por um Salmo de Sabedoria, em seguida apresentadas 8 orações, 3 Salmos de Lamentação, um Salmo de Exaltação e, encerrando esse grupo, mais dois Salmos de Sabedoria. O gênero Sabedoria encerra, como característica, um grupo de textos que é reconhecido por suas máximas universais, cujo objetivo é instruir o justo para que prive da sabedoria do próprio Deus em seu procedimento.

            As Orações são melhor compreendidas, mais caracteristicamente reconhecidas e mais comuns entre os salmos do saltério, variando suas ênfases específicas, como neste grupo, onde aparecem, por exemplo, orações de intercessão, súplica, gratidão e louvor. Os Salmos de Lamentação são aqueles em que uma situação específica que, de modo frontal, contrarie os desígnios de Deus ou as expectativas do orante são destacadas, numa linguagem que demonstra a profunda tristeza do salmista.

Salmo 1

            Característico deste Salmo ser anônimo, do gênero sabedoria, muito provavelmente escrito ou selecionado, especificamente, como introdução ao saltério como um todo. Sua principal mensagem é indicar a meditação na Lei do Senhor como antídoto contra o 'conselho dos maus', sempre próximo e cilada pronta para o justo.

         "Toda a alegria do homem": começa com um construto plural que, literalmente, funciona como um título, o qual seria "Alegrias do homem que", a seguir definido como: "não anda", "não se detém", "não se assenta", significando três ações em gradação a que esse homem não se apega. Andar seria como ter despertada a atenção; deter-se, seria como parar para conferir; e assentar-se, seria entregar-se definitivamente.

        Os três graus, círculos e tipos humanos específicos de influência: andar, deter-se e assentar-se correspondem a três círculos de influência equivalentes e gradativos, que acabam por atrair o homem que não opta por resguardar-se na Lei do Senhor: "conselho dos ímpios", "caminho dos pecadores" e "roda dos escarnecedores". Numa visão esquemática teríamos:


                                   ALEGRIAS DO HOMEM
                                                   QUE
NÃO              ANDA                                      NO CONSELHO DE ÍMPIOS
NÃO (SE)     DETÉM                                     NO CAMINHO DE PECADORES
NÃO (SE)     ASSENTA                                 NA RODA DE ESCARNECEDORES

         "Antes o seu prazer": o homem que rejeita deixar-se atrair pelos três círculos permanentes de influência tem um antídoto para essa forte atração. Ao contrário, ele tem seu prazer voltado para outro interesse, que é a Lei do Senhor, na qual medita diuturnamente. O Salmo inicial do Saltério, a grande coleção de poemas do Antigo Testamento recomenda ao leitor que vai dedicar-se a percorrê-la, que assim a considere, não somente o saltério, como as demais partes de todo o Livro.

       Quando Jesus advertiu os discípulos de Emaús, denominando-os loucos, por tardar em reconhecer o valor e a precisão do que sobre o Messias estava registrado, discorreu sobre o que dele constava na Lei, nos Profetas e nos Salmos. Certamente nas três partes das Escrituras, da Bíblia que Jesus lia, constavam registros claros sobre sua própria identidade, incluído o Livro dos Salmos.

             "Como árvore plantada por sobre ribeiros de águas": Uma das figuras mais belas das Escrituras é essa que compara o justo a uma árvore bem plantada. Árvores e seus frutos, desde o Gênesis, são indicadores de resultados práticos ligados à conduta do homem/mulher. Assim como o Fruto do Espírito, no Novo Testamento, indica o resultado positivo da ação do Espírito Santo no homem/mulher. Três aspectos beneficiam essa árvore: (1) junto a correntes de águas; (2) dá o seu fruto no seu tempo; (3) suas folhagens não murcham.

          Essa árvore aponta para o caráter que esse homem adquiriu como resultado de sua escolha. Jesus, na festa dos Tabernáculos, em Jerusalém, disse que um rio de águas vivas fluiria de dentro dos que nele cressem. E o autor explica que esse rio significava o Espírito Santo que haveriam de receber os que nele cressem. Certamente as raízes dessa árvore devem estar profundamente fixadas nas Escrituras, a Cartilha do Espírito Santo. O segundo aspecto desse homem (ou mulher) é que dão seu fruto. Num texto de difícil entendimento, aquele em que Jesus amaldiçoa a figueira que nem estéril, talvez, fosse, mas que apenas não estava na estação de florir e frutificar, demonstra como Jesus se torna exigente com os frutos que o caráter do justo deve produzir. E, em terceiro, o viço do justo é permanente.

         "E tudo quanto ele faz será bem sucedido": Na Bíblia há exemplos de homens/mulheres em quem a vontade do Senhor prosperou. O exemplo típico e modelo de todos é o Servo Sofredor de Isaías 53. Trata-se do próprio Jesus. Mas fora desses textos, temos o exemplo de Josué, a quem Deus afirma que o tipo de homem que (1) faz segundo está na Lei de Moisés, (2) não cessa de falar desse Livro e (3) medita nele dia e noite, esse homem/mulher fará prosperar o seu caminho. Outro exemplo é o de José, em quem Faraó identificou a presença do Espírito de Deus, nas mãos de quem a vontade do Senhor prosperou.

         "Não assim os ímpios, não assim": em tom de lamento termina o Salmo 1, com muito pouco a dizer sobre o ímpio. Apenas repetitivamente afirma: "Não assim, não assim os ímpios". E a comparação que faz é deprimente, dispersiva com o vento que espalha a palha que, para nada mais, serve. Termina dizendo que os justos formam uma congregação, ao inverso daquele tríplice conselho do início do Salmo, essa congregação é o "Conselho dos Justos", no qual o ímpio não vai estar presente. 

       Definitivamente, o conselho dos ímpios, o caminho dos pecadores e a roda dos escarnecedores não são o lugar pelo qual o justo se deva sentir atraído, deter-se ou assentar-se. Como contraveneno, deve abrigar-se na Lei do Senhor, resguardar-se nela, ater-se aos seus ensinamentos, para cumpri-la diuturnamente e prosperar no que o Senhor lhe puser à mão para realizar.


         Versículo destaque: "E será como árvore
                                            plantada junto a correntes de água que
                                            no tempo devido dá o fruto dela
                                            e tudo quanto faz prosperará."

          


sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Bíblia, hinário e revista da EBD
Parte II
              
Fontes da Bíblia            
            
          Agora, falar das fontes da Bíblia torna-se mais problemático. Esbarramos na questão de que, do tempo de sua formação até hoje, estabelecer autores e fonte das Escrituras tornou-se tarefa que, segundo alguns, compromete ou toca sensivelmente nos fundamentos de sua credibilidade. Tão garantida, por nossos antepassados, como Palavra de Deus, verbal-plenariamente inspirada, vista pelo prisma a que hoje chegam as pesquisas da história do texto, com Renascença, Iluminismo e Racionalismo no meio do caminho, as garantias de sua inspiração e seu status de Palavra, como anteriormente compreendido, ficam abalados, senão seriamente comprometidos.

50 anos decorridos bastam: música e EBD
              Portanto, nos recentes 50 anos passados, os três pilares-base da fé de nossos antepassados imediatos sofreram forte impacto e não mais têm consistência como referenciais para a geração atual. Abandono do hinário, no início trocado por cancioneiros improvisados, chegou aos tempos de concorrência desleal com CDs, DVDs, smartphones, internet, Mp3 e Mp4. Principal alegação: os hinos seguem marca europeizada ou americanizada, tornando-se necessário adaptá-los ou buscar autoria nacional que, a um só tempo, facilita a compreensão da letra, atualiza o gênero musical e adapta a melodia a tons, altura e semitons mais compatíveis com a capacidade e cordas vocais latino-americanas. Perda de conteúdo, às favas. A Globo já divulga, como é mesmo? Um efeito mais recente da onda gospel: Você adora, a gente fatura...
             Quanto às revistas de Escola Dominical, o problema não está propriamente com elas, mas com a escola. Cores, diagramação mais sofisticada, artes, antes offset, agora computação gráfica, busca de uma linguagem mais atual, escolha do currículo procurando temas em maior consonância com questões contemporâneas, uma mudança de capa, mudança de papel, autores melhor qualificados, enfim, tudo isso foi muito válido para adaptar as revistas aos novos tempos. Mas a questão principal foi que, apesar de todo esse esforço, quem entrou em crise foi a Escola Dominical e as revistas, mesmo atualizadas, começaram a perder sua clientela ou utilidade.

Novas fontes
              A questão das fontes bíblicas ainda esbarrou com Julius Wellhausen (1844-1918) e sua hipótese documentária.  Ganhei, recentemente, uma Bíblia Pastoral da Editora Paulus, oferecida pelo Pe. Massimo Lombardi, Reitor da Catedral de Rio Branco, AC. Traz uma introdução à versão nela constante, em linguagem simplificada, detalhando a problemática da formação do texto, a título de quem vai lançar-se a sua leitura. Veja bem, trata-se de uma edição católica popular, para o público geral.
               De modo simples e didático tem-se acesso à teoria de Wellhausen, assumida por essa versão, definitiva e integralmente, como modo de compreender a história de formação do Antigo Testamento. Estão anotadas as 6 etapas de composição de todo o AT, começando com a tradição oral e os textos mais antigos, por volta de 1300-1200 AC, passando pelo longo processo de fixação, inúmeras revisões e editoração, ao longo de toda a história de Israel, até sua edição definitiva, por volta de 200-100 AC. Revolucionário! Detalhar aqui, no escopo deste artigo, seria exaustivo. Portanto, convido os leitores a recorrer a essa edição da Bíblia Pastoral para ver tudo mastigadinho.

Uma guinada
              Para a economia desta discussão, imagine o que seria para a geração de nossos avós compreender a que ponto nos conduziu a teoria documentária, desde a época deles até nossa época, e que transtornos ela causaria na cabeça daquela geração, exposta a uma breve análise dos efeitos da lenta e gradativa aceitação dessa ferramenta de compreensão da história dos textos bíblicos, o modo como propõe mudanças na história do Antigo e Novo Testamentos e como afeta ou não a credibilidade dos textos bíblicos, como era dito, ‘divinamente inspirados’.
           O bordão da moda, ‘não sabe de nada, inocente’, poderia ser aplicado à geração que nos conduziu à fé, baseados na crença que tinham (e têm) nos textos bíblicos. Muitos deles, ainda entre nós, dedicam-se à leitura dos textos, desconhecendo os fundamentos do famoso método histórico-crítico de dissecação das Escrituras. Leem, por exemplo, o Pentateuco, como inteiramente escrito por Moisés. Evidentemente não tão distraídos que não reconheçam outra pessoa, logo no começo do Deuteronômio, quando mencionado ‘palavras que Moisés falou a todo o Israel dalém do Jordão’, e no final, por estar escrito ‘então subiu Moisés das campinas de Moabe ao monte Nebo’, ou seja, para morrer ali.

“Autores”
              Entendia-se que essa pessoa só poderia ser Josué, herdeiro literário do Moisés autor de todo o Pentateuco, agora começando e encerrando a narrativa dos Discursos de Moisés (sim, dele mesmo?). A própria Escola Dominical (ela, de novo por aqui), ensinava que Josué escreveu Josué mas, quando se trata de narrar a morte dele, Samuel entrou em cena, escrevendo Juízes e começou a escrever o livro que tem seu nome, mas quando ele morreu, quem narrou a morte dele foi... Enfim, ia-se, por assim dizer, quebrando-se um galho e pretendia-se ensinar que cada livro do AT tinha seu autor expresso pelo nome que constava em seu cabeçalho e, caso no meio da história esse autor morresse, entrava na sequência o autor do livro seguinte.

Mais próximo da realidade?
             Méritos para a teoria de Wellhausen e o método-histórico crítico que, a seu tempo, pretenderam esclarecer detalhes que a visão romântica da tradição dos textos pretendia dar como resolvidos. Mas é necessário filtrar as conclusões, visto terem chegado a nós de modo fragmentário, teoria e método, espremidos na linha tênue e dogmática do trato dado pelos Seminários ao currículo de honra neles constante. Priorizando uma abordagem conservadora da fé, denominavam esses estudos ‘alta crítica’: encarar a Bíblia como literatura e buscar seu Sitz im Leben (contexto vital do texto), detonando o dogma da sua inerrância.
           Os alunos eram mantidos afastados daquela ‘alta crítica’ e perto da ‘baixa crítica’, a única admissível de ser estudada, constituindo-se no esforço pela reconstituição do mais exato texto bíblico, sempre verbal-plenariamente inspirado e, por isso, intocado, preservadíssimo pela atuação inconteste do Espírito Santo, inspirador por excelência e, obviamente, vigilante preservador de sua integridade através das eras. Aliás, postulam os defensores dessa teoria histórico-crítica, tentar preservar fundamentos da baixa crítica, como integridade do texto e inspiração verbal-plenária seria, hoje, fechar os olhos a uma correta leitura das revoluções provocadas pela (pós)modernidade.

Fundamentalismo
              A revista Diálogo (fevereiro-abril de 2012) traz um comentário do professor Faustino Teixeira, Doutor em Teologia e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião em Juiz de Fora, MG: ‘O fenômeno do fundamentalismo religioso’ seria uma reação ou bater-se contra a ‘condição de incerteza permanente provocada pelos ventos plurais’, também contra ‘a disseminação de ideias, ventos modernos do Renascimento, Iluminismo e ‘Século das Luzes’ os quais ‘provocam desorientação em muitas pessoas e comunidades, que sentem perder o chão conhecido da tradição, que lhes proporciona firmeza e segurança’. E continua: “o fenômeno do fundamentalismo implica a ideia de uma ‘tradição sitiada’, de uma identidade ameaçada [...] rejeitar qualquer engajamento dialogal com a modernidade e buscar-se reconstituir um ‘mundo curado’, livre de surpresas.”
           Excelente e muito lúcida apreciação sobre o fundamentalismo e o modo como bloqueia a visão de muitos. Resta saber a que se aplica essa definição, pois há de ser feita uma mediação, para saber o que são 'marcos antigos', como diz Provérbios, portanto, irremovíveis, o que caduca e, portanto, novamente, necessita ser removido e, finalmente, sobre o que não se pode afirmar nada, porque nem a ciência reina soberana no contexto. A questão dos milagres, por exemplo, ou se acredita que o Deus Criador do Universo pode, na hora que desejar, alterar o que fez, de trás para a frente, de frente para trás e ao avesso, ou Deus está engessado. E, engessar Deus, é fundamentalismo também.

Dilema diante dos olhos
            As lentes do método histórico-crítico mexem, sim, com a credibilidade do texto bíblico, avançando pela Bíblia afora, Antigo e Novo Testamento, questionando não somente a autoria dos livros, mas também a historicidade dos fatos narrados. Reconhecemos que as narrativas bíblicas misturam história e visão de fé e, pelos critérios modernos de historicidade, fatos narrados, locais mencionados, datas especificadas, personagens mencionados estariam sujeitos a critérios mais exatos de confirmação.
              O problema é que, aberta a temporada de caça, as regras de confirmação desses fatos pulverizam-se e, para só mencionar o Antigo Testamento, detonam-se personagens como Abraão, duvida-se até de que tenha sido uma personagem histórica, incluídos, é claro, seu filho e netos, e bisnetos, enfim. Desconhecer, pelo menos em linhas gerais, essa teoria, é enorme descuido, porque tais ideias já chegaram até as bancas de jornal, em páginas de revistas como, Superinteressante, Galileu ou Mundo Estranho.

Milagres no Novo Testamento
                 No Novo Testamento, a autenticidade dos milagres de Jesus também é questionada, na troca de seu hipotético valor histórico, por um valor simbólico, meramente teológico ou doutrinário. Deixando de lado, por hora, a questão da autoria dos livros do NT, citamos o autor de  O que é milagre na Bíblia, Alfons Weiser, 1978: “Não se tem certeza de que Jesus tenha feito Lázaro sair do sepulcro. Isto não é impossível, contudo é improvável, com base no julgamento acerca de outros relatos de ressurreição e na composição teológica da narrativa de Jo 11. O que se sabe com certeza - se bem com outra maneira de argumentar - é que Jesus ressurgiu dos mortos e que foi constituído Senhor da vida e da morte, e que a fé em Jesus nos conduz a vida. É unicamente isto que todas as narrativas do Novo Testamento nos querem comunicar. É aqui que elas pretendem estar certas e exprimir a verdade.”
               Ufa! Ainda bem que há uma ressalva sobre a própria ressurreição de Jesus. Mas todo esse livro citado põe em dúvida os demais relatos dos demais milagres. Sempre fazendo prevalecer a falta de critérios inegáveis de comprovação desses mesmos milagres. Vez por outra, a ciência é mencionada como quem não pode garantir que tais milagres possam ter ocorrido. Mais uma vez estamos diante da possibilidade de Deus realizar ou não tais milagres. E, caso seja possível que o faça ou, ainda, na suposição que os tenha mesmo realizado, caberá, agora sim, evoque-se a ciência para que descubra como foram feitos. Eu fico com a possibilidade, ou melhor, com a certeza de que foram realizados e na expectativa de que a ciência descubra como Deus os fez, ou como os realizou, ou como os criou.

De novo as fontes
                 Tomando como parâmetro a geração passada, dá para refletir sobre o impacto das mudanças de paradigmas nesses, pelo menos, últimos 50 anos, levando em conta que tudo isso chegou à pauta dos seminários conservadores no Brasil com, pelo menos, quase 100 anos de atraso. De qualquer modo, fica comprovado como, levando em conta a discussão das fontes e a pesquisa histórica, a coisa se complica com relação ao texto bíblico, porém também afetará, indiretamente, o que segue escrito nas revistas da EBD e, remotamente, o conteúdo do hinário evangélico, isso porque é justamente este, o texto bíblico, o responsável pela legitimação, em última instância, de si próprio, assim como do que vai escrito nas revistas de EBD e do conteúdo e mensagem do hinário ou dos ‘salmos, e hinos e cânticos espirituais’ que são cantados por aí, movimento gospel afora.


Bíblia, hinário e revista da EBD
Parte I
            
Introdução
             
             Houve um tempo em que a turma que se dirigia, nas manhãs de domingo, às igrejas evangélicas, empunhava Bíblia, hinário e revista da EBD - para quem não lembra, EBD significava Escola Bíblica Dominical. Às vezes, também oferecia, por extensão, a EBF, outra sigla que significava Escola Bíblica de Férias. Bons tempos aqueles em que as igrejas denominavam atividades pelo designativo ‘escola’. A questão a formular é de que modo os antigos, mais especificamente nossos pais e avós, puderam fundamentar a sua fé e transmiti-la a nós baseando-se simplesmente nesses três elementos?

Experiências pessoais
            Presente em mais uma EBF, apoiado nos bancos da Igreja Evangélica Congregacional de Nilópolis, lá se vão mais de 50 anos, colori folhetinhos estampando crianças acompanhadas por seus pais, encaminhando-se à igreja, cena didática de uma rotina exemplar a ser seguida. Sim, esse mesmo o modelo de família que, já a partir dos anos 60 e atualizadamente, alguns já consideram ultrapassado. A arquitetura do desenho, estilo norte-americano, igreja com torrezinha cúbica e cobertura piramidal, em centro de telhado, denunciava o pacote de colonização missionária ao qual pertencem todas as igrejas evangélicas, incluídas as congregacionais.
             Aqueles bancos de madeira escura, fixadas longitudinalmente, seguiam anatomicamente a curvatura do corpo, com um descanso de 45° ao final do encosto, voltado para quem sentasse atrás, para justamente ali serem depositados Bíblia, hinário e, eventualmente, nas manhãs dos domingos, a revista da EBD. Aliás, de um desses bancos escorreguei ao chão, com 6 anos incompletos, num culto noturno, atendendo ao tradicional ‘apelo de conversão’, numa pregação do pastor Ivan Espíndola de Ávila. Era abril de 1963, ano do assassinato do Kennedy, com a Aliança Para o Progresso, com o logotipo característico, enviando pacotões de leite para a casa de minha avó, denunciando nossa classe social.

Um legado salutar
            Aquela geração teve, nesses três referenciais, o municiamento de que dispunham para basear a sua fé, escritos provenientes de fontes diversas, a Bíblia, o hinário e a revista da Escola Dominical. Eles empunhavam numa das mãos, onde cabiam as três literaturas, e ainda tenros na idade ganhávamos deles, com dedicatórias e tudo, Bíblias, hinários e a revista da EBD correspondente à nossa faixa etária.  Esperavam que, empunhando essa literatura, seríamos, obteríamos e conservaríamos a continuidade da fé recebida e a nós legada por eles, julgando garantido que bastava essa tríade para a nossa fundamentação.
  
Falando das fontes: a Bíblia
              Falar de literatura implica falar de fonte. Qual a comprovada credibilidade dessa literatura que compunha a tríade na qual os antigos firmavam sua confissão, tornando-se âncora e firmeza da fé que transmitiam? Robinson Cavalcante se referia ao culto dessa época como aula e não entretenimento ou show como, com mais frequência, verifica-se nas igrejas evangélicas de hoje em dia. Ora, se era aula o culto, a Bíblia constituía-se no seu livro didático. Então, mais uma atividade identificada pelo designativo ‘escola’. Bons tempos em que mais um tipo de atividade da igreja, o culto público, era comparado a uma boa aula de uma boa escola.

Falando de fontes: hinário e revista da EBD
              Falar de fontes para hinário e revista da EBD é mais simples do que falar de fonte para a Bíblia, o ‘livro mãe’. Isso porque é possível percorrer com mais precisão etapas da composição e autoria desses documentos, bastando, para isso, recorrer à história do hinário, particularmente Salmos & Hinos, utilizado desde 1861 pelos congregacionais históricos das igrejas da UIECB. Aliás, para tal, sugiro ler Convertendo através da música – a história de Salmos & Hinos, do pastor Douglas Nassif Cardoso. Interessante a sugestão dele de que Sarah Kalley, ainda antes da data acima indicada, já dispunha da matriz primitiva desse que se tornou o primeiro hinário dos evangélicos em língua portuguesa, protótipo de todos os outros.

A música evangélica dos anos 70
                A partir dos anos 70 operava-se uma ‘virada’ em termos de escolha e seleção da música, ainda chamada sacra, usada nos cultos das igrejas evangélicas. Os chamados ‘cantores evangélicos’, década de 40, como, por exemplo, Feliciano Amaral e seus hinos, ouvidos pela Rádio Copacabana, entre outras, como a Rio de Janeiro, assim como os hinos do hinário, dentre outros de seu estilo, começavam a ser denunciados como europeizados, difíceis de cantar e de entender, sendo desafiados a ser substituídos pelos simplificados ‘corinhos’ ou cânticos de autores nacionais, iniciando-se, desse modo, os rudimentos do que hoje é chamado ‘movimento gospel’.
             Também participei dessa mudança de paradigmas, dos anos 60 para cá. Já na década de 70 músicas de compositores evangélicos nacionais começaram a disputar espaço com os chamados corinhos, cânticos simplificados em relação aos hinos do tradicional hinário. Porém, ainda esses corinhos eram, na maioria das vezes, tradução de versões importadas. Lembro-me do ano de 1972, já como membro da Igreja Evangélica Congregacional de Cascadura, quando a união de mocidade, em intercâmbio com as de outras igrejas, congregacionais ou não, solicitaram a cessão do terreno da Rua Padre Telêmaco 249, na época desocupado, local onde está construído o salão atual, para que ali se reunisse o Clube Bíblico, novidade do nascente movimento gospel.


Clube Bíblico: uma nova linguagem
             A linguagem dos jovens nas reuniões dos Clubes Bíblicos procurava maior aproximação com seu público prioritariamente também jovem. Testemunhos da ação do Espírito substituíam os sermões convencionais, a música, mais calcada na originalidade de autores brasileiros, substituía os hinos do hinário e guitarra, bateria e baixo substituíam piano e órgão. Ora, vejam só, a Bossa Nova também influenciava a cartilha melódica evangelical. Crise à vista e rudimentos de um movimento gospel não tão diversificado como o de hoje, mas de qualidade extremamente superior.
            Participei, na Igreja Batista do Rocha, pastoreada pelo famoso líder batista, José dos Reis Pereira, de um Festival que reuniu Clubes Bíblicos de todo o Rio de Janeiro, incluída a remota e requintada zona sul da cidade. Então ouvi pela primeira vez aquele clássico da época, cantado (?) até hoje: Nas estrelas vejo a sua mão/E no vento ouço a sua voz. O Clube Bíblico chegou a Cascadura e, no dia da sua inauguração, despencou o que os cariocas chamam de ‘chuva de verão’, e todos se deslocaram para a Rua João Romeiro 212, as meninas com calças compridas entraram na igreja, a juventude ‘opiniosa’ dos anos 70 removeu o púlpito de madeira do lugar, utilizaram o tablado onde, pasmem, puseram bateria, guitarras e baixo elétricos, esteiras de palha de vime no chão, palmas, testemunhos, descontração e escândalo certeiro totais.

Um movimento gospel de qualidade
             Domingo seguinte, 15 anos de idade, já membro da igreja e presente na reunião de membros, foi discutido se guitarras, baixos e baterias, estilo Beatles, os garotos infernais com suas cabeleiras horripilantes, se tais instrumentos mundanos poderiam ser usados dentro do espaço (santo) do templo. Ficou decidido que o Clube Bíblico se reuniria somente nas dependências externas do (santo) templo, ou seja, no terreno da Rua Padre Telêmaco 249. Bons tempos de mudança de paradigmas: discos long plays de vinil dos Vencedores por Cristo, De vento em popa, um deles, e Grupo Elo, Nova Jerusalém, o primeiro deles, estilos diferentes de composições de autores nacionais em breve iniciariam um deslumbrante movimento musical de excelente qualidade. Não sabíamos naquela época, mas tratava-se do engatinhar do hoje chamado movimento gospel nacional.     
             Nova música, reações da geração com mais de 40 e o adicional da pressão sobre os filhos adolescentes, a respeito de quem era a favor ou não desse milk shake cultural evangelical intramuros. Isso sem falar na outra “revolução” que seguia seu curso, a de 31 de março de 1964, que se tornaria ainda mais tenebrosa. Alienação, com certeza, em relação a uma, debates infindáveis, em relação à outra, mesmo porque se avizinhava o Movimento de Renovação e tudo se misturava.

Revistas da EBD
             Percorrer a história das revistas de Escola Dominical e seus autores significa encontrar, entre eles, missionários estrangeiros, a geração seguinte de líderes nacionais, os ‘pastores patriarcas’, sucessores ‘de peso’ daqueles, e os seminaristas alunos dessa geração mais antiga, que alcançaram o status de escritores dessas primeiras revistas de escola dominical. Garimpar essa história e a didática do currículo é uma boa sugestão de dissertação de mestrado. Valeria muito a pena compreender essa escolha de temas, nomear os autores, checando o enfoque dado, para eles essencial no adestramento dos crentes, nessa época áurea da Escola Dominical.

Escola Dominical ao longo dos anos
              Outra sugestão seria reeditar o compêndio Esboço Histórico da Escola Dominical da Igreja Evangélica Fluminense, de 1932, rico em fotografias, exemplares numerados com quantidade limitada, com dados sobre a primeira Escola Dominical do Brasil, edição comemorativa da passagem do Congresso de Escolas Dominicais pelo Rio de Janeiro, capital da República na época, marcando a inauguração do Edifício Kalley, anexo à Igreja Evangélica Fluminense, específica e literalmente um edifício inteiro construído para o funcionamento da Escola Bíblica Dominical.
              Vale lembrar também a história da Escola Dominical da Igreja Evangélica Campograndense: revistas, apostilas e literatura ressaltando o preparo dos professores e o valor da própria Escola, esforçando-se o pastor Manoel da Silveira Porto Filho em demonstrar que a firmeza e identidade da igreja dependem, imprescindivelmente, da importância dada à Escola Dominical. Ele a denominava “a escola da igreja”. Toda uma geração de líderes, pastores e obreiros foi formada a partir dessa filosofia e se encontra espalhada pelo Rio de Janeiro e Brasil afora, trazendo consigo, nos corações, neurônios e retina o efeito benéfico dessa iniciativa.

Escola Dominical e sua relevância
            Cabe refletir se essa geração estava equivocada ao dar tanta importância à Escola Dominical. Assim como, então, cabe refletir o que a geração seguinte fez desse recurso tão fundamental para o preparo e crescimento espiritual dos crentes. Minha esposa e eu, professores filhos de professores, comentamos a crise atual da escola pública/particular e do ensino no Brasil, de um modo geral. Entram e participam dessa discussão nossos filhos, outros pais e membros da igreja, enfim, outros professores. Mas em nenhum momento pensamos como solução retirar nossos filhos da escola ou acabar, definitivamente, com ela. 

O que fazer da ex-Escola Dominical
           A pergunta então é por que os evangélicos decidiram que a Escola Dominical não mais cumpre com o seu papel, enfraquecida e, consequentemente, deixando de ter a Bíblia como livro por excelência a ser estudado e suas revistas menos lidas e valorizadas como recurso didático auxiliar. Nessa nova era de tecnologia digital, tornou-se necessário mudar a ‘cara’ da revista de EBD, embora a escola de 50 anos atrás, em sua dinâmica, utilizasse recursos ao seu alcance: giz e offset preto e branco, campanhas de novos alunos, passeios, mesmo aos domingos, para escolas ao ar livre, torneios entre as classes, para avaliar o rendimento dos alunos e, com isso, alcançava seus objetivos.

Por detrás, uma outra razão

            Provavelmente o descaso atual com a Escola Dominical reflita o descaso mais crucial e alarmante que é o próprio descaso com as Escrituras, o valor de seu estudo, o interesse por seu conteúdo e seu próprio uso como principal ferramenta de crescimento da igreja, para o amadurecimento dos crentes na fé, com objetivo e estratégia inteligente de divulgação de seus princípios na sociedade atual. Ocorreu a perda do ‘culto aula’, assim como da cátedra da Escola Dominical, local de leitura, estudo e busca de conteúdo. Ocorre o deslocamento para um outro eixo superficial, mais afeito às exigências de consumo de seu público atual, outra crise que assusta os pastores, o medo da perda de seu auditório cativo dos domingos. Nos dois casos, púlpito e EBD, a Bíblia foi afastada da vivência rotineira dos crentes, que perderam seu referencial de doutrina e fé.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015


 É assim que Deus disse?

         Is it even so? Ou, no hebraico, af ki-'amar 'elohim: (Atenção, 'dois pontos', em hebraico, equivale ao nosso ponto de interrogação e, vamos verificar, interrogação, aqui, neste caso, torna-se o fundamento da argumentação). Para início de conversa, isso na suposição de encontrarmos, pela frente, leitor(es) ateu(s), o diálogo acima deu-se lá no Jardim do Éden, entre a mais sagaz serpente e Eva, a mãe de todos nós.
          Refiro-me aos amigos assim denominados não por exclusão, mas incluindo-os nessa temática, pelo menos, provisoriamente, a suposição seria de que, então, nem tanto Deus exista, nem tanto a Serpente também. Mas, no contexto da história narrada no Gênesis, mesmo tomando-as como personagens mitológicas, fica clara a provocação dela, da serpente, por meio da referida sentença, em relação ao que, anteriormente, a outra personagem, no caso Deus, havia prescrito ao casal primordial.
        A expressão-título deste texto corresponde, provocativa e ironicamente, a um questionamento sugerido pela serpente em relação ao que fora prescrito. Fica óbvio que havia uma rivalidade anterior, previamente instaurada, mesmo antes da conversa entre as duas, serpente e mulher, e a certeza de que a pergunta em forma de questionamento era uma provocação.
          Bem, acreditando ou não na historicidade desse fato, destaque-se que as duas personagens, Deus e a Serpente, rivalizavam entre si. Ou, expressando de uma outra forma, a serpente havia se tornado uma ancestral rival do Altíssimo e, portanto, sua intenção era jogar uma contra Outro, ou seja, se havia uma rivalidade anterior, a Serpente desejava transmiti-la, igual, a sua, oportunamente, protagonista, a mulher, a quem ela queria tornar antagonista do Altíssimo, da mesma forma que de si mesma a serpente era.
          Pois. Uma excelente definição ou proposta de uma raiz para toda e qualquer rivalidade nutrida por alguém disposto a recolher para si mesmo essa mágoa ancestral da Serpente contra o Altíssimo é colocar em dúvida todas ou quaisquer palavras do Altíssimo, exatamente assumindo como sua a questão, eivada de malícia, precipuamente compreendida nesse tom: e aí, é assim que Deus disse?
       Em nossa argumentação, partindo-se do ponto de que há malícia na pergunta da serpente, que sempre deseja colocar em dúvida a credibilidade ou pertinência das palavras do Altíssimo, assumir essa premissa seria, de um modo geral, sempre admitir que todas e quaisquer palavras do Altíssimo devam ser questionadas, colocadas em dúvida e, quem sabe, até mesmo, por opção, rejeitadas.
       Ora, não deixa esse de ser um princípio a adotar. Fica claro, portanto, que à serpente coube sugerir que palavras do Altíssimo podem, sim, ser colocadas em dúvida e não ser atendidas ou ouvidas ou levadas em consideração. Raiz de todos os males assumir essa regra, sempre questionar qualquer palavra do Altíssimo, jamais submetendo-se a ela, mesmo que seja de súbito, questionar sempre, e primeiro, antes de mais nada, sempre supondo que, partindo do Altíssimo haverá, sempre, uma segunda intenção, nem sempre e/ou imediatamente a nosso, da humanidade, favor.
       Primeiro, é supor se, quando e como Deus fala. Mais uma vez, aqui, supondo que Deus exista. Sim, porque se, porventura, existindo, admitir-se que não pode falar conosco, ser ouvido por nós, seria absoluta inutilidade. Para mim, cessava toda polêmica. Se existe mas não se pode fazer ouvir, então é como se não existisse. Portanto, deve existir, da mesma forma, uma maneira direta e fácil de se fazer ouvir, senão, da mesma forma, torna-se inútil Sua existência.
       Aqui, outro princípio, nessa história toda: Deus existe e é facílimo ouvir sua voz. Problemática esta afirmação, visto que muitas vozes há e, muitas vezes, de novo, falou-se em Seu nome (e ainda assim ocorre) sem que fosse Ele mesmo quem houvesse falado. Mais um problema: se é fácil que Deus fale, mais, ou tão fácil, ainda, é autenticar, é identificar Sua palavra como verdadeira, destacada entre todas as demais, falsas, a partir dessa constatação. Se há falha nisso, não está no emissor, Deus, mas no receptor, os homens, genericamente falando, homens e mulheres.
      Pronto. Porém, certamente, o maior problema está no modo como Deus escolheu falar com os homens, que é por meio de outros homens, pelo menos é assim que o mesmo livro que conta a história do Gênesis assim indica. Aliás, a própria narrativa do diálogo da ancestral serpente, inimiga do Altíssimo, com a mulher, é-nos transmitida por um mediador. Então, no tempo em que Deus falou mais diretamente com o homem/mulher, prescreveu uma atitude frontalmente questionada pela serpente, como vimos nesse diálogo entre ela e a mulher.
        Aliás, e portanto, em decorrência disso, antecipamos aqui, tornou-se, daí para diante, mais difícil ouvir o que Deus diz, aliás, em contrapartida, tornou-se, então, mais fácil supor que nem mesmo Ele exista e que, muito menos, fale qualquer coisa. Recorrente, queremos dizer que, por causa desse questionamento inicial, raiz de todos os males, tornou-se muito difícil supor que Deus realmente fale e, uma vez, constatada essa suposição, ponha-se em, ou melhor, sob questionamento o que Ele, o Altíssimo, disse (ou diz), assim sugeriu a serpente.
        Estamos diante de um dilema: a suposta verdade desse diálogo já previne as razões por que é plausível supor que tudo, o diálogo em si ou toda a história pregressa a ele, sejam uma fraude? Ficou claro? Falando de outra maneira, está na raiz desse diálogo colocada a dúvida de que Deus deva ser ouvido, ou que fale ou mesmo que exista. O autor sagrado, assim identificado, não quereria, porventura, precaver-se contra supor-se desacreditado, então, para tanto, colocar a culpa (de novo) na serpente, caso fosse posta em dúvida toda a sua narrativa?
        Então, esse "é assim que Deus disse" aplica-se à própria narrativa em si, como se constasse, dirigido ao leitor, ei, você que está lendo, acredita mesmo que foi assim? Supõe você, que lê esta narrativa, estar diante de palavras de Deus? Isso posto, chegamos a um termo. Ser posta em dúvida a questão de que, se Deus existe, só serve se for fácil ouvi-Lo. Mas, como está posto também que Ele resolveu falar aos homens/mulheres por meio de outros homens/mulheres, será isto verdadeiro?
         Pois a sentença "é assim que Deus disse" põe em dúvida tudo o que Deus, porventura, tenha dito, diz ou venha a dizer. Aliás, essa sentença põe em dúvida, até mesmo, a perícope onde se insere como narrativa. Enfim, põe em dúvida o Gênesis inteiro e todo o Livro, até seu derradeiro Apocalipse: "É assim que Deus disse?"...